Porque avanço na acusação contra Mário Machado e Ricardo Pais

Foi a 17 de fevereiro de 2022 que uma camarada e amiga me contactou, profundamente alarmada com as publicações no Twitter feitas por Mário Machado e Ricardo Pais, incitando à “prostituição forçada” – ou seja, à violação – das mulheres militantes dos partidos de esquerda em Portugal, com “direito a tratamento VIP” para mim, Renata Cambra, dizendo que serviríamos para “motivar as tropas na reconquista”. A ela, outras se seguiram, tanto camaradas de partido, como companheiras das lutas feminista e antifascista.

Ficámos todas, como é óbvio, zangadas e com medo, já que esta tentativa pública de diminuição e intimidação se deu no rescaldo imediato de umas eleições legislativas em que não só a esquerda perdeu força no parlamento, como ao seu declínio se contrapôs o aumento significativo de deputados em representação da extrema-direita ultraconservadora, machista e misógina. O à-vontade com que estes dois indivíduos resolveram apelar a um crime de ódio e violência, com base na discriminação política e de género foi, para nós, o primeiro sinal das consequências do fortalecimento e da normalização do discurso perpetrado pelas diversas organizações de ideologia fascista ou fascizante que hoje operam em Portugal e que, sem dúvida, se sentiram galvanizadas e legitimadas com o crescimento da bancada parlamentar do Chega.

Ficámos zangadas porque é revoltante, em pleno século XXI, sermos confrontadas com tentativas abertas de inferiorização e intimidação por parte da extrema-direita, que deliberadamente nos insulta e ameaça pelo papel político ativo que desempenhamos em prol de uma sociedade livre de todas as formas de exploração e opressão e, por isso, livre também da extrema-direita, que aqui e em todo o mundo procura regular os nossos corpos e fazer retroceder os nossos direitos reprodutivos, que nos objetifica e persegue porque nos quer caladas e submissas, longe da vida política. Ficámos com medo porque, mais do que um insulto, o apelo à prostituição forçada é um incitamento público à violação, feito numa rede social com milhões de utilizadores, com a envolvência de dois militantes de extrema-direita conhecidos, sobretudo Mário Machado, que, como é sabido, além de já ter sido condenado por vários crimes, é seguido por diversos grupos neonazis, organizados e violentos.

Eu, em particular, achei assustador ver o meu nome diretamente envolvido, mais ainda ao constatar que era o único lá sinalizado, de forma concreta, a nível individual. Sobretudo porque este episódio se deu um mês após a minha participação no debate da RTP entre os partidos sem assento parlamentar, como nova porta-voz do partido Movimento Alternativa Socialista (MAS) e sua candidata por Lisboa nas eleições legislativas, onde defendi repetidamente a necessidade de a esquerda combater o crescimento da extrema-direita, em consonância com a nossa campanha, que exigia a aplicação da lei e ilegalização imediata das organizações de extrema-direita que perfilham uma ideologia fascista. Foi na sequência dessa minha participação nas eleições legislativas que, nas semanas e meses seguintes, fui entrevistada ou citada várias vezes na comunicação social. No dia 17 de fevereiro, percebi que a minha voz me tinha tornado num alvo e que o meu corpo estava a ser colocado a prémio como castigo pelo atrevimento de ser mulher, militante e porta-voz de um partido de esquerda declaradamente antifascista. Como esquecer Pedro Arroja, mandatário do Chega, quando afirmou que mulheres nas direções são “sinal da degenerescência dos partidos”? 

Apesar do medo, decidi na altura avançar com uma queixa-crime perante o Ministério Público, com a mesma convicção com que decido hoje deduzir acusação particular, acompanhada por um pedido de indemnização cível: por mim, pela minha dignidade e segurança enquanto mulher, mas também pelas minhas camaradas do MAS e por todas as mulheres de esquerda, com e sem partido, que têm a coragem de lutar “por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres”, como em tempos escreveu Rosa Luxemburgo. Faço-o por saber que é urgente combater a normalização do discurso de ódio e de descriminação da extrema-direita, cuja ascensão representa um perigo real para todas nós, por me recusar a aceitar que tenhamos que viver com medo e por acreditar na importância de nunca desistirmos de lhes mostrar que não passarão, que o lugar da mulher é onde ela quiser e que a luta pela emancipação e igualdade de género veio para ganhar. 

Desde já, assumo publicamente o compromisso de distribuir o valor da indemnização cível entre três organizações que cumprem hoje, a meu ver, um papel fundamental nesta luta, sendo elas: 1) Rede 8 de Março, por ser a maior plataforma feminista a nível nacional, que consegue coordenar organizações e ativistas feministas e antifascistas por todo o país em torno da greve internacional feminista, para que possam organizar o primeiro Encontro Nacional de Mulheres em Portugal, à semelhança da experiência das nossas companheiras argentinas; 2) (***)*, por ser uma associação que, não tendo os devidos apoios por parte do Estado, é insubstituível no apoio a pessoas trans imigrantes, que, por serem intensamente discriminadas e excluídas, não só são alvos frequentes da extrema-direita, como são, muitas vezes, empurradas para situações limite como aquela relatada recentemente pela atriz Keyla Brasil; 3) Movimento Alternativa Socialista, por ser o partido que de forma mais consequente procura construir, à esquerda, a alternativa, independente e combativa, indispensável para barrar o crescimento da extrema-direita, para que possam desenvolver atividades e campanhas relacionadas com o feminismo e o antifascismo.

Ao avançar na acusação contra Mário Machado e Ricardo Pais, que conscientemente ameaçaram a integridade física e moral das mulheres de esquerda, quero defender o direito das mulheres de serem respeitadas e protegidas numa sociedade justa e igualitária, mas também garantir que a disseminação do discurso de ódio e intolerância da extrema-direita fascista e racista não seja tolerada numa sociedade civilizada, sendo nosso dever lutar contra qualquer ameaça à nossa liberdade e dignidade. Não podemos permitir que as vozes do preconceito e do conservadorismo silenciem quem luta por um mundo melhor e mais justo. Como bem se tem dito por aí, juntos somos mais fortes.


Renata Cambra
17 de fevereiro de 2023

*Para proteção das pessoas envolvidas, não irei, de momento, revelar o nome da
associação em causa.

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