“Toda a mulher tem direito ao melhor padrão atingível de saúde, o qual inclui o direito a um cuidado de saúde digno e respeitoso”
Organização Mundial de Saúde, 2014
Antes de começar a escrever este texto, muni-me de informação de especial relevo, na tentativa de ser o mais clara e objetiva possível. Acontece que, no meio desse processo, apercebi-me que o melhor relato que podemos fazer é o nosso; que a partilha da nossa experiência, porque sentida, pode ser muito esclarecedora; que há tantas (imensas!) mulheres com histórias semelhantes. Por isso mesmo, é a minha história que vou contar, tantas e tantas vezes repetida, de forma mais ou menos agressiva; mais ou menos traumatizante. Mas sempre, sempre, marcante!
Em primeiro lugar importa esclarecer que fui mãe numa altura em que, pelo menos em Portugal, era “obrigatório” ser mãe (recordo que o aborto só foi legalizado em 2007). Nunca tive intenção de ser mãe por uma razão muito simples: considerava não reunir as condições necessárias para assumir uma responsabilidade de tal envergadura. Tive uma gravidez mais ou menos tranquila, pelo que este texto tem a intenção de relatar o parto e o período pós-parto.
Entrei no hospital na madrugada de um sábado porque o saco amniótico tinha rebentado. Esperei a minha vez e fui “vista” por um médico. Não falou comigo. Achei que pudesse estar cansado por ser tão tarde. Ou tão cedo. Colocaram-me soro. Não fazia ideia porquê e não havia ninguém disponível para me explicar. Depois de insistir muito, explicaram-me que não tinha dilatação e o soro servia para isso mesmo.
Ocasionalmente passava alguém para “medir” o meu nível de dilatação. Para quem nunca teve filhos/as, importa esclarecer que a este procedimento se chama “exame de toque” e que consiste na colocação de dois dedos do/a profissional de saúde no canal vaginal para avaliar o colo do útero. Uma prática que tem tanto de invasiva, como de humilhante. Perdi a conta ao número de pessoas que me fizeram o “exame”.
Ali perdi o meu estatuto de pessoa, de mulher, para dar lugar a um outro: o de futura mãe, a quem é possível fazer tudo em prol do bem-estar de alguém que ainda está para chegar. Estive 14 horas deitada na mesma cama. As dores começaram a ser insuportáveis. Houve uma altura em que tive certeza que não era possível aguentar mais. Mas foi sempre possível. Até à exaustão. Até ao limite.
Chega a hora do parto. A médica que está do meu lado esquerdo grita “não está a fazer força nenhuma!” Que culpa senti na altura! Que mãe horrível não colabora no parto da sua própria filha?! Cometi o grave erro de comprar roupa tamanho 0, que não serviu à minha filha, pelo que acharam conveniente dar-me um sermão sobre boas práticas logo após o nascimento.
No dia seguinte, chamaram-me para o primeiro banho. Quando disse que o pai é que ia ficar responsável por essa tarefa criou-se à minha volta uma espécie de clínica psiquiátrica virtual com um argumento extremamente válido: “tem que ser a mãe”. Acontece que eu tinha receio de a deixar cair. Para mim era tão agressivo obrigarem-me a dar-lhe banho como se esforçarem tão arduamente para deixar claro que uma atitude destas era inaceitável.
Agora era preciso amamentar a criança. Como o leite materno não ficou imediatamente disponível achou-se que era necessário forçar a sua subida. Este foi um processo ao qual muita gente já assistiu, só que em animais!
Percebo com pesar que, por esta altura, muitas mulheres já tenham dito ou pensado, a determinada altura, “também me aconteceu”. E é com o mesmo pesar que eu digo que há mais, muito mais para contar. E esta é só a minha história! É preciso que todas contem as suas, as denunciem e saibam que tudo isto está errado e tem nome: violência obstétrica.
Apenas em 2021 foi aprovada, pela Assembleia da República, uma Resolução que recomenda ao Governo a eliminação de práticas de violência obstétrica e a realização de um estudo sobre as mesmas. Nesta Resolução consta que, antes do trabalho de parto, deverá ser partilhado com a grávida um documento onde sejam explicados todos os procedimentos que poderão ocorrer durante o trabalho de parto e o parto.
Já é tempo de que todas as instituições hospitalares passem a adotar as recomendações dessa Resolução. Importa ainda recordar que o Consentimento Informado não é apenas um documento a ser assinado na entrada hospitalar, é um processo a ser usado de forma continuada, ao longo de toda a prestação de cuidados.
É urgente que todas deixemos claro que não aceitamos mais ter que mendigar ao Serviço Nacional de Saúde os direitos que nos devem ser garantidos no que diz respeito à saúde reprodutiva; que temos direito ao aborto, apesar de todas as vossas objeções; que exigimos ter assegurado um serviço de ginecologia/obstetrícia coeso, de confiança e que não nos trate como incubadoras. Que, se resistimos a um parto nestas condições, resistiremos contra todas as tentativas de nos humilharem ou diminuírem.
Partilho este episódio para demonstrar que a violência de género, a misoginia e a perpetuação dos papéis de género estão bastante presentes nestes momentos. É importante repensar urgentemente a gestão que tem sido feita em relação aos serviços públicos, que “facilita a vida” aos serviços privados.
Necessitamos de um SNS forte, coeso e capaz de atender, com qualidade, as necessidades de todos nós. Afinal, queremos e merecemos um serviço de saúde público, universal e gratuito, livre de quaisquer práticas obstétricas que falhem em colocar a mulher no centro das decisões, assegurando um parto humanizado, realizado com base nas melhores evidências científicas.
Com a inflação, o Estado arrecadou, em impostos, mais de 2 mil milhões de euros não previstos. É necessário canalizar esses fundos para reabilitar e investir no SNS, garantindo:
- a reabertura e reforço dos blocos de parto, das urgências e dos serviços de ginecologia/obstetrícia;
- a implementação de políticas de saúde de proximidade, na gravidez e pós-parto, que priorizem a dignidade e a integridade corporal das mulheres;
- o fim da precariedade dos profissionais de saúde, através do aumento dos salários e valorização das carreiras.
O MAS chama toda a gente a participar na manifestação nacional “Esta é a Luta Que Vos Pariu”, convocada pelo Observatório de Violência Obstétrica em Portugal (OVOpt), para dia 6 de novembro, às 17 horas, nos seguintes locais:
- Lisboa – Assembleia da República
- Algarve – Faro – Jardim Manuel Bivar
- Porto – Aliados
- Viseu – Rossio
- Leiria – Jardim Almuinha Grande
- Coimbra – Maternidade Dr. Daniel Matos
- Viana do Castelo – Av. Dos Combatentes
- Bragança – Praça Prof. Cavaleiro Ferreira