Itália: neofascismo chefiará governo. Esquerda alternativa precisa-se

O fascismo provém de duas condições: de um lado, de uma grave crise social; de outro lado, da fraqueza revolucionária do proletariado […]. A fraqueza do proletariado, por sua vez, tem duas causas: primeiro, o papel histórico particular da social-democracia, que ainda é uma agência poderosa do capitalismo nas fileiras do proletariado; em seguida, a incapacidade da direção centrista [da esquerda] de unir os operários sob a bandeira da revolução

Leon Trotsky

A história repete-se de forma bizarra, agora sob novos contornos. A 31 de Outubro de 1922, Mussolini e o movimento fascista subiam ao poder, em Itália. Após 100 anos, com uma precisão quase milimétrica, a 25 de Setembro de 2022, Giorgia Meloni, líder do partido neofascista Fratelli d’Italia, inspirado pelo bafiento mote “Deus, Pátria e Família”, vence as eleições, com 26% dos votos, o que lhe permitirá chefiar um governo de coligação com a restante direita italiana, atingindo a maioria absoluta (44% dos votos), tanto no Parlamento como no Senado.

Este avanço da extrema-direita, em Itália, é uma grave ameaça aos direitos democráticos, assim como às condições de vida de todos os trabalhadores italianos e europeus. As propostas de Meloni de corte nos apoios sociais às famílias, concentração de poderes no presidente da república ou a ilegalização do aborto são disso exemplo. Toda a extrema-direita europeia ganha um novo alento. Como chegámos até aqui?

1. A falência do sistema capitalista também se faz sentir em Itália. Itália é o segundo produtor industrial da UE, apenas atrás da Alemanha, e é o terceiro maior exportador de mercadorias. No entanto, a sua queda de produtividade, sobretudo depois da adesão ao Euro, e a crónica estagnação de uma economia gerida por uma oligarquia particularmente corrupta têm feito disparar a desigualdade entre as classes dominantes e os trabalhadores italianos. O resultado é uma juventude com uma taxa de desemprego de 25%. O endividamento tem sido crescente e a dívida pública italiana já ascende aos 152% do PIB, à qual se vai somando o actual crescimento das taxas de juro. O custo da electricidade, em Itália, dependente em 40% do gás russo, é o segundo mais elevado em toda a Europa, impulsionando um duro aumento do custo de vida da juventude e trabalhadores. Itália é, neste momento, um país dependente do pacote de €200 mil milhões da UE, em troca das devidas restrições orçamentais, para reactivar a sua economia, e da acção do BCE para conter uma nova crise de dívida pública. Este é o resultado da falida política neoliberal adoptada pelos sucessivos governos dos partidos tradicionais, seja de direita ou supostamente de esquerda, numa constante transferência de rendimento dos bolsos de quem trabalha para os cofres dos grandes empresários e accionistas;

2. A crise agudiza a incapacidade das classes dominantes italianas e do seu sistema parlamentar para produzir governos estáveis, empurrando o descontentamento popular para a procura activa de soluções fora dos partidos tradicionais ou para a abstenção (36%, a mais elevada da democracia parlamentar italiana). Esta procura resulta, em Itália, numa sucessão interminável de governos, muitos deles sem passar sequer pelo crivo das eleições. O Governo tecnocrático de salvação nacional de Mario Dragui foi tão só o terceiro da XVIII Legislatura, iniciada em 2018. 

3. O descontentamento e desespero popular crescentes, uma vez que não encontram uma verdadeira alternativa à esquerda, são forçados a encaminhar-se para a influência dos sectores mais nacionalistas e autoritários das classes dominantes. Os Fratelli d’Italia, sendo o único dos principais partidos que não apoiou o Governo Draghi, conseguiu colocar-se como a alternativa anti-establishment e capitalizar eleitoralmente o descontentamento generalizado com todos os restantes partidos.

A antiga e poderosa esquerda italiana, corporizada pelo extinto Partido Comunista Italiano (PCI), transformou-se e adaptou-se, facilitando a sua digestão pelas classes dominantes italianas. A partir da década de 1970, o PCI definiu como estratégia a de se fazer evidenciar como uma domesticada força de governação meramente parlamentar, abandonando as aspirações da classe trabalhadora, o que culminou com o apoio ao governo do líder democrata-cristão Giulio Andreotti, em 1978. Com a restauração capitalista na ex-URSS, em 1991, o PCI dissolve-se, sintoma da sua já completa falência. Ao longo do processo de transformação da sua composição social, do seu programa e da sua estratégia, naquilo que ficou conhecido como eurocomunismo, uma parte considerável do PCI acaba por dar origem ao actual Partido Democrata (PD), partido gestor do capitalismo italiano que procedeu à privatização de empresas públicas, desregulamentação do mercado de trabalho e destruição salarial. Este movimento da esquerda foi semelhante em toda a Europa, mas particularmente grave em Itália. A esquerda tradicional italiana teve a hipótese e a confiança popular para fazer diferente desde a queda de Mussolini, em 1945. Abdicou dessa oportunidade e, hoje, toda a esquerda paga o preço de tamanho crime. Tanto assim é que a esquerda italiana não consegue qualquer representação parlamentar em nenhuma das últimas três eleições gerais, desde 2008. 

Ainda assim, a tentativa de reorganização da esquerda italiana não cessou completamente. A 9 de Julho de 2022, foi formada a União Popular, um projeto político eleitoral para as eleições que estavam previstas para meados de 2023, unindo várias pequenas organizações da esquerda italiana: Potere al Popolo, Rifondazione Comunista (dissidência minoritária do PCI, aliado do BE português, que chegou a integrar o segundo Governo de Romano Prodi, em 2006, e com essa opção se pulverizou), DemA, Manifesta e Paese Reale, além de representantes dos movimentos sociais. O esforço é meritório, mas ainda muito embrionário e limitado, tendo conquistado apenas 1,43% dos votos.

A profunda crise capitalista e a política neoliberal de desigualdade aplicada pelos sucessivos governos dos partidos tradicionais; a incapacidade das classes dominantes e do sistema parlamentar para produzir governos estáveis; a promiscuidade da esquerda tradicional com a política neoliberal das elites tradicionais; a profunda dificuldade em construir uma esquerda alternativa que conquiste a confiança de amplos sectores da juventude e trabalhadores, tudo isto conforma um importante conjunto de elementos que contribuem para o crescimento do neofascismo e da extrema-direita, tal como há 100 anos atrás. 

No entanto, existe um importante elemento na actual situação política italiana, diferente de há 100 anos, que não nos autoriza nem a render-nos ao desalento, nem a entregar-nos ao desespero de acreditar no reforço da política das supostas elites “progressistas”, precisamente a política que no trouxe até aqui. 

Mussolini subiu ao poder depois de impor uma dura derrota sobre a forte mobilização que a classe trabalhadora italiana desenvolvia no início dos anos 1920. Hoje, pelo menos de momento, o ascenso de Meloni passa, sobretudo, por dentro do sistema eleitoral e o boletim de voto não decide a luta social. Não estamos na presença de uma derrota física e duradoura da classe trabalhadora italiana, factor ao qual acresce a previsível instabilidade do governo, num sistema já de si turbulento. Para defender os nossos salários e serviços públicos, para defender os nossos direitos democráticos duramente conquistados, para defender uma transição energética socialmente digna, é tempo de construir uma esquerda alternativa.

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