Na última semana, têm sido notícia os encerramentos de urgências de ginecologia e obstetrícia em vários pontos do país, como Almada, Barreiro, Braga ou Caldas da Rainha. Esta situação obrigou a que utentes fossem encaminhadas de forma não planeada para outras unidades, o que comporta um importante acréscimo de risco para algumas situações de saúde agudas, dado o tempo adicional e o transporte necessários para serem avaliadas.
Motivada por falta de profissionais médicos em número suficiente para assegurar escalas, esta está longe de ser uma situação pontual. A verdade é que esta rutura representa apenas um entre muitos rasgões de um tecido frágil e esticado até ao limite.
Em primeiro lugar, a própria natureza de muitos dos serviços de urgência em Portugal, espaços que já podem ser por natureza problemáticos, mas onde, sobretudo, se tendem a acrescentar os problemas do resto do SNS. Seja a montante, por faltarem respostas a nível de cuidados de saúde primários, consultas hospitalares ou hospitais de dia ou outros circuitos para doentes crónicos, motivando que casos eletivos1 descambem em desequilíbrios urgentes por falta de acompanhamento, ou que situações não urgentes, mas que não deixam de merecer atenção, encontrem ali a única porta que o sistema deixa entreaberta. Seja a jusante, por hospitais lotados com casos sociais, clinicamente resolvidos, mas sem autonomia e apoio suficiente para poderem regressar à comunidade. Os serviços de urgência, que em Portugal têm números recorde de visitas por parte da população, segundo as estatísticas da OCDE, são assim o charco onde se acumula e transborda o caudal de doença de um sistema sem margens à medida.
Em segundo lugar, um SNS que se tornou muito pouco atrativo para fixar profissionais, tanto médicos como enfermeiros, sobretudo os mais jovens. Mesmo sem ter em conta a inflação, os salários da profissão médica são hoje mais baixos que em 2010, sendo o vencimento líquido de um médico recém-licenciado próximo dos €1.200. A somar, a falta de progressão na carreira, mas também de condições de trabalho no que toca a recursos e instalações, assim como margem para desenvolver projetos de melhoria de cuidados, de investigação e de inovação. A saída natural para muitos acaba por ser a emigração ou o trabalho, tendencialmente mais precário, mas melhor remunerado do sector privado.
Por último, um sistema que, fruto desta carência de profissionais, subsiste em dois pilares. Um é o trabalho extraordinário feito, muitas vezes, de forma não voluntária e extenuante, frequentemente ultrapassando os limites legais anuais logo no mês de Maio de cada ano. Em 2021, ano recorde, foram 22 milhões o total de horas-extra contabilizadas, um aumento de 26% face ao ano anterior. O outro, sendo o trabalho em regime de prestação de serviços, que totalizou 4,9 milhões de horas trabalhadas em 2021, na dependência de empresas de trabalho temporário que revendem mão-de-obra à peça de forma irregular e pouco previsível.
Para os problemas que o nosso SNS enfrenta, o Governo PS limita-se a aplicar a estafada, ineficaz e dispendiosa política da direita, tanto da dita liberal como da extrema-direita, para quem o liberalismo funciona tanto melhor quanto maior for o suporte do Estado à sacrossanta “iniciativa privada”. Nem nos últimos 6 anos de Geringonça o PS foi capaz de fazer diferente. Os serviços de saúde privados, sobretudo as suas “grandes superfícies” da Luz Saúde, José de Mello e Trofa sobrevivem, sobretudo, à custa do orçamento público, tanto no que toca a meios de diagnóstico contratualizados, a cheques cirúrgicos, internamentos convencionados ou mesmo aos sub-sistemas de saúde que mais pessoas seguram – ADSE, forças armadas e de segurança.
Para grandes males, o Governo PS apresenta os remédios mais convenientes aos grandes grupos privados de saúde, ajudando a expandir os seus negócios através do encaminhamento dos doentes das urgências para as unidades privadas, oferecendo vales e estabelecendo mais PPPs. Este modelo de sub-contratação permanente tem-se revelado dispendioso e pouco fiável, assente numa desresponsabilização constante dos “parceiros” privados que acabam por transferir os casos complexos e situações de maior custo para as unidades públicas. Se dúvidas havia quanto aos limites destas supostas “parcerias”, a pandemia pô-los a nú, com serviços a encerrarem e doentes a serem transferidos para os serviços públicos a meio de uma crise sanitária. O expoente máximo do liberalismo, na crise pandémica dos últimos dois anos, foram patentes e lucros recorde para as farmacêuticas que produziram vacinas utilizando conhecimento científico desenvolvido por entidades públicas, e, valas comuns nos locais onde mais profundamente se instalou a “iniciativa privada”, desconsiderando políticas estruturais de saúde pública.
A crise no nosso SNS não é conjuntural pelo que a solução nunca o poderá ser. Um remendo aqui não impede que o pano não volte a rasgar por ali. É necessário um investimento maciço no SNS, com valorização de carreiras e remunerações que permitam fixar profissionais, premiando a dedicação exclusiva. É necessário reorganizar e internalizar meios complementares de diagnóstico e terapêutica, actualmente contratados a estruturas privadas, assim como revitalizar os cuidados de saúde primários como principal porta de acesso a um sistema verdadeiramente universal e gratuito.
André Traça
Médico no Centro Hospitalar de Lisboa Central
1 Casos em que o procedimento médico é programado, ou seja, não é considerado de urgência ou emergência.