Visibiliddade Trans

Por uma sociedade trans-inclusiva

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“Não há orgulho para alguns sem liberação para todos”, dizia Marsha P. Johnson, uma mulher trans negra muito ativa no movimento que saiu de Stonewall. Mesmo assim, em ambientes e grupos ditos “progressivos”, que deveriam acolher e agregar a luta trans, existem vertentes que tomam a posição de segregação de corpos trans binários e não-binários.

Este sentimento é expressado, por exemplo, na corrente do Feminismo Radical (ou feminismo trans-exclusivo): utilizando o discurso de que “mulheres trans tiveram uma socialização masculina enquanto crianças, crescendo, portanto, com privilégios e com uma mentalidade masculina”, excluem-nas das suas organizações.

Mas este raciocínio ignora que muitas crianças sofrem já de violência psicológica – e, muitas vezes, até física – por não se enquadrarem no género que lhes é imposto. Desenvolvem-se com a dúvida de quem são, a disforia, até que tenham acesso a informação e redes que partilhem desse mesmo sentimento. Assim, este argumento imagina as pessoas como estáticas, sem capacidade de questionar o ambiente em que crescem.

Mas todos sabemos que não é assim. Só porque eu cresci numa família evangélica e homofóbica, então isso significa que eu não posso ser quem eu sou e lutar contra essa mentalidade retrógrada em que cresci? Levado ao extremo, isto tornaria fútil a luta pela emancipação. Se a mentalidade não muda ao longo do tempo, se está tudo dependente da socialização com que crescemos, então porque é que estamos todos a lutar em todos os movimentos?

O pensamento de que “homens trans tendem a ser mulheres que, para escapar da misoginia, acabam por adotar uma identidade masculina”, rejeita o facto de a identidade de género não ser uma escolha e desvaloriza a forma como a misoginia se alia à transfobia para apagar e oprimir pessoas a quem foi atribuído o género feminino erroneamente.

Além de não serem lidos como quem são, ainda lhes é imposta a opressão que é também imposta às mulheres ao nascer, abrangendo desde a maternidade compulsória, violência obstétrica, assédios, estupros corretivos, entre tantos outros., o que acaba até por contradizer o anterior argumento: afinal porque é que as mulheres trans, se cresceram no seio do privilégio masculino, iriam procurar uma opressão para si?

A postura dos críticos de género é desleal, pois toma como pressuposto automático que pessoas trans, sejam binárias ou não, não são os géneros que realmente são, isto é, os géneros que afirmam ser. Essa postura não é somente um ato de transfobia, mas um ato factualmente incorreto.

Também se argumenta que “a mulher trans reforça papéis de género e da feminilidade no que é ser mulher”. Como pode observar-se, a mulher trans nunca é vista como aceitável a um crítico de género, pois quando não é “passável” é apontada como uma aberração que não representa o feminino, e quando é “passável” diz-se que ela reforça estereótipos. Essas incongruências argumentativas demonstram a má fé dos questionadores.

De resto, uma mulher trans “não passável” será sempre uma mulher, pois é a autodeterminação que a caracteriza como tal; e uma mulher trans “passável” não reforça estereótipos de género – simplesmente por ser trans já os quebra com força, visto que teve que transicionar, o que é uma das maiores quebras de estereótipos que há, independentemente do quão “passável” a pessoa se torne. Se não os quebrasse, não seria, aliás, fonte de tanto ódio pela sociedade ciscêntrica.

Alguns feministas radicais insistem também que “o Feminismo Radical é materialista”. Mesmo alguns partidos estalinistas usam o “ser materialista” como uma camuflagem pseudo-marxista da sua transfobia – como é o caso de alguns setores no PCP. Apelam à biologia, mas ignorando, por exemplo, aquilo que a biologia diz sobre a natureza biológica-social e neurológica mais complexa do género, não totalmente vinculada ao sexo, que por si só se demonstra como um espectro também, considerada a existência de pessoas intersexo.

A verdade é que a ferramenta que Marx e Engels nos deixaram – o materialismo dialético – é bem mais completa e permite entender que a sociedade está em permanente mudança; que coisas como expressões de género são também reflexo das condições materiais das sociedades. Estes pseudo-marxistas ignoram toda a diversidade de pessoas não-cisgénero noutras culturas – e a repressão que sofreram com o avançar do colonialismo e imperialismo –, como as pessoas dois-espíritos nas tribos indígenas americanas ou as Hijra da Índia, até mesmo com as travestis na América do Sul.

A verdade é que a condição humana é bem mais diversa que a visão simplista que o capitalismo nos impõe. Corpo trans é revolução!

Devemos pensar no corpo trans como algo além do sofrimento que atualmente tanto permeia as narrativas presentes no meio comum, ou seja, não reconhecer a transgeneridade somente como o resultado de uma dor, disforia de género, mas como uma alegria proveniente de se saber quem realmente se é, euforia de género. Também existe a necessidade de se superar o corpo trans como um objeto passivo, afirmando-o sim como aquele corpo inerentemente contra os padrões ciscêntricos da sociedade, como uma fonte direta de controvérsia até nos seus momentos mais inertes.

Esta é uma luta que precisa urgentemente de ser reconhecida e representada pelos nossos, para que seja ampliada nos meios não só de ação direta mas também políticos, a fim de alcançar um reconhecimento que se deve dar através do apoio mútuo entre pessoas cis e trans, dando a visibilidade devida às pessoas transgénero, assim como às pessoas racializadas, deficientes, neurodivergentes e todos os grupos que podem ser acolhidos pela interseccionalidade.

Uma luta que só tem sentido completo se tomar também como sua a tarefa de negar um modelo de sociedade que considera o seu desenvolvimento a partir da exploração da população mais vulnerável e da necessidade de criação de dor e ajudar a construir, como alternativa, uma sociedade voltada para o amparo e ações conscientes que visam melhorar o mundo para todos os que precisam. Ou seja, a luta pela emancipação tem de se afirmar, consequentemente, como luta anticapitalista, contra todas as formas de exploração e opressão.

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