Na última semana, veio a público a informação de que a actual líder do PAN, Inês Sousa Real, detém, directa ou indirectamente, através do marido, duas empresas de produção e comercialização de frutos vermelhos, destinados à exportação. Gerou-se toda uma discussão em torno da incoerência entre as práticas, mais ou menos ecológicas, dos negócios agrícolas de Inês Sousa Real e a política ecológica que defende.
No entanto, o caso evidencia muito mais que isso. A incoerência não se resume apenas às práticas de Inês Sousa Real, mas está enraizada no próprio PAN, enquanto projecto político. As notícias de que Inês Sousa Real também detém uma empresa de mediação imobiliária, através do marido, apenas o confirmam.
Ora, não será por acaso que a líder do PAN tem interesses tanto na agricultura, nomeadamente, num sector especialmente virado para a exportação, como no imobiliário. São precisamente dois sectores cuja rentabilidade, à boleia da sua financeirização, tem vindo a crescer exponencialmente no país. Está visto que Inês Sousa Real tem olho para o negócio. No entanto, a “ecologista” parece não querer saber que foi precisamente o “olho para o negócio” que nos trouxe até aos limites ambientais do planeta.
É precisamente aqui que reside a contradição, não só de Inês Sousa Real, mas do próprio PAN. O PAN propõe-se a ser um projecto político de defesa do ambiente. No entanto, defende a “economia de mercado” e o capitalismo como organização social, ignorando que estas são precisamente as causas da destruição ambiental. Para além das acções demonstrativas de Inês Sousa Real, o próprio PAN já o assumiu abertamente, nas palavras de André Silva, o seu ex-líder: “O PAN nada tem contra a economia de mercado, pelo contrário […]”1. Como é que o PAN se propõe a combater os problemas ambientais se é precisamente um agente activo de que a origem desses problemas – o sistema capitalista e a economia de mercado – se mantenha?
Afinal o que é o PAN?
Enquanto partido político, o PAN navega a confusão dos nossos tempos e reivindica-se como um projecto político “pós-ideológico”, supostamente “acima” das ideologias de esquerda e de direita.
Embora, atualmente, este palavreado tenha muita adesão, o seu conteúdo é oco. Se a ideologia é um sistema de ideias que pretende explicar o mundo e se o PAN é um projecto político “pós-ideológico”, ou, por outras palavras, “sem ideologia”, como é que irá resolver qualquer problema do mundo sem o entender?
Daí que o PAN nos presenteie com uma ideologia que tem de tudo, só não tem coerência alguma. A suposta isenção ideológica é conveniente porque não só colhe o sentimento dos tempos, como ainda permite catar qualquer sopro, venha ele da esquerda ou da direita. É desta forma que o PAN se disponibiliza a governar tanto com o PS como com a direita. No PAN, o que lhe falta em ideologia, parece sobrar-lhe em oportunismo.
O PAN surge como um projecto, acima de tudo, em defesa dos animais e, sobretudo, dos “animais de companhia”. Daí que a sua designação tenha começado como “Partido dos Animais e da Natureza”. Ora, um projecto destes nada tem a ver com a defesa do meio ambiente. No entanto, vivemos tempos em que, pelo menos em Portugal, as pessoas têm mais facilidade em ter “animais de companhia” que filhos, criando um habitat propício ao crescimento de um PAN.
Entretanto, por força dos tempos e à falta de um partido “Verde” (à semelhança do resto da Europa) ou de um partido verdadeiramente ecologista, que não seja um mero apêndice do PCP, o PAN cresce, elege deputados, o que o força a ocupar o espaço de um suposto partido ecologista. Isto obriga-o a ter uma resposta ao conjunto da sociedade e não apenas dirigida aos “animais de companhia”, o que acabou por influenciar a sua própria designação para “Pessoas-Animais-Natureza”.
O que resulta deste percurso não é propriamente um projecto político, mas sim uma concepção moral, cujas bases filosóficas assentam: (i) no pernicioso individualismo liberal, assente na muito difundida, mas falsa ideia de que a vontade individual gerará inevitavelmente o desejado “equilíbrio” social; (ii) nos fundamentos da economia de mercado, movida pelo lucro; e (iii) naquilo que se pode chamar de idealismo/ingenuidade animalista.
De acordo com a declaração de princípios do PAN2, a sua pós-ideologia explica-nos que a degradação ambiental tem origem no “antropocentrismo e especismo dominantes na história da civilização”. Ou seja, o problema da humanidade residirá num suposto conflito entre a espécie humana e as restantes espécies de animais, uma vez que a consciência individual do ser humano o coloca como ser superior, “sacrificando os não-humanos com prazer e indiferença”.
Segundo o PAN, “a diversidade da inteligência humana, […] permite-lhe uma maior liberdade de decidir como agir”, pelo que “o ser humano [é] responsável por optar pelo egocentrismo especista, ou por não questionar as suas ideias, comportamentos e hábitos especistas”. Para resolver tal problema, o PAN receita-nos, evidentemente, uma “tomada de consciência moral e ética”.
Não só isto não tem qualquer comprovação científica ou adesão à realidade, como seriamos, portanto, uma espécie anti-natural que nasce com um traço biológico para rejeitar o seu próprio habitat. É um absurdo.
O PAN faz divagações sobre a influência das escolhas individuais na degradação ambiental e perde pouco tempo a entender como é que essas escolhas individuais são condicionadas pelo sistema de produção capitalista e pelos interesses das classes dominantes do sistema em que vivemos. Quanto a nós, é precisamente aqui que reside a fonte de todos os nossos problemas.
A semelhança entre a “pós-ideologia” do PAN e a ideologia capitalista é muito evidente. Ambas procuram afastar as responsabilidades pelas alterações climáticas da produção capitalista, apontando para uma suposta responsabilidade pessoal, de cada um de nós, uma vez que não fazemos as escolhas certas. Ambas ocultam que a classe dominante é a principal responsável pelos problemas ambientais, culpabilizando as escolhas dos indivíduos das classes mais pobres. Ambas protegem, oportunamente, os benefícios pessoais das classes mais favorecidas, acima dos benefícios da comunidade no seu geral.
O caso de Inês Sousa Real é apenas o subproduto desta ideologia levada à prática: fazer uso do oportunismo individual para escolher os melhores meios que lhe permitam extrair o seu quinhão de benefícios pessoais da financeirização de importantes sectores de produção, mesmo que esta seja responsável pela destruição ambiental.
Não há ecologia sem uma perspectiva anticapitalista
Sem um programa e uma estratégia anticapitalistas, sem uma perspectiva e luta por uma revolução social não há forma de salvar os animais, humanos e não-humanos, nem o próprio planeta. É urgente mudarmos a forma como interagimos com o planeta, mas o sistema capitalista não suporta a mudança radical de que precisamos. O capitalismo deu origem a uma “rutura metabólica” entre as nossas sociedades e a Natureza no seu conjunto, pois os processos que lhe servem de base, de caráter descartável e cada vez mais acelerado, não são compatíveis com os ciclos longos do sistema terrestre, o que torna a atividade humana, com este sistema, insustentável. Ao mesmo tempo, a indústria de combustíveis fósseis tem sido uma das pedras basilares de todo o sistema produtivo capitalista, primeiramente com o carvão e depois com o petróleo e o gás.
A relação do capitalismo com os combustíveis fósseis é de tal forma umbilical, que a mudança drástica e imediata de que precisamos para resolver a crise climática não está ao nosso alcance dentro deste sistema, que coloca e colocará sempre o lucro à frente da vida das pessoas. O controlo de emissões exige, além da nacionalização de setores estratégicos como a energia, os transportes e a saúde, que a prioridade de investimento seja a transição energética. É necessário reconverter fábricas e edifícios e requalificar trabalhadores, requisitando às grandes multinacionais os lucros que estas têm obtido à custa de hipotecarem o nosso futuro. Tudo isto, a fim de que sejamos capazes de, no tempo que nos resta, substituirmos o capitalismo por um sistema que neutralize as emissões de forma socialmente justa, planificando a produção, organizando a distribuição e criando emprego ambientalmente sustentável. Afinal, justiça climática é justiça social.
O MAS tem juntado esforços a esta luta. Vem conhecer-nos, junta-te ao MAS.
1 https://www.cmjornal.pt/politica/detalhe/pan-recusa-entrar-no-governo-diz-andre-silva