A sacrossanta eficiência do mercado, que os liberais tanto apregoam, significa uma disputa fratricida entre os grandes grupos farmacêuticos para abocanhar os maiores benefícios possíveis e não a vacinação universal da população.
Deixar ao mercado a solução para a produção e distribuição das vacinas, sendo este regido pela propriedade privada de patentes, contratos secretos e a busca cega do lucro, só poderia resultar naquilo que está a acontecer: guerra entre os vários interesses privados pelas melhores fatias de mercado, como forma de realizar lucros imediatos, prejudicando o combate à pandemia.
Fará, então, algum sentido entregar a produção e distribuição das vacinas à mercê dos mecanismos do mercado? Não, por várias razões.
Em primeiro lugar, é completamente irracional deixar que a resolução para qualquer problema de saúde seja entregue aos interesses comerciais dos grandes grupos farmacêuticos. É transformar as nossas vidas em mercadoria, às mãos das farmacêuticas. O caso assume contornos mais graves na situação de pandemia mundial que travessamos. Caso ainda não tenhamos percebido, e as classes dominantes esforçam-se por escondê-lo, foi precisamente a anarquia do mercado e a avidez pelo lucro, com as suas consequências sobre o ambiente do planeta, que nos trouxe a esta pandemia. Porque haveremos de confiar no mercado para encontrar de uma solução?
Em segundo lugar, devemos questionar-nos se queremos que a saúde seja um negócio. Os liberais, classes dominantes e até a extrema-direita têm vindo a reavivar o seguinte raciocínio: o serviço de saúde público tem muitas carências, pelo que a sua resolução passa precisamente pela substituição por serviços privados, em que cada um terá supostamente serviços de “qualidade”. Este raciocínio é falso, basta conhecer um pouco do sistema de saúde liberalizado dos EUA e as enormes lacunas que tem para oferecer. Não será um acaso que uma das mais importantes reivindicações sentidas nos EUA seja, de há anos para cá, a criação de um sistema de saúde público, universal e gratuito. Mas se isso não for suficiente, é do conhecimento público que, em Portugal, o sector privado da saúde se dedica a tratar doentes que representem lucro. O que não é lucrativo, é enviado para o sector público.
Em terceiro lugar, devemos questionar-nos sobre o sentido de manter privada a tecnologia das vacinas contra a COVID-19. Inicialmente, as farmacêuticas foram preparando o terreno para que a vacina apenas fosse encontrada num prazo de anos, se é que alguma vez chegasse a existir. A razão de as farmacêuticas demonstrarem tão pouco interesse pelo desenvolvimento de uma vacina contra a COVID-19 está no facto de o desenvolvimento de vacinas, especialmente nos casos de emergência aguda, não se ter revelado muito lucrativo no passado. A investigação exige muito investimento, existe uma elevada probabilidade em não se conseguir resultados satisfatórios e as vacinas, geralmente, são administradas uma vez. Portanto, as grandes farmacêuticas vêm muito risco e pouco retorno imediato.
O desenvolvimento de vacinas contra a COVID-19, em apenas 10 meses, só foi possível porque houve uma mobilização gigantesca de recursos públicos. Segundo a BBC, “somente quando governos e agências entraram em cena com promessas de financiamento é que elas [as grandes farmacêuticas] começaram a se mexer”1. Dois terços do investimento nas novas vacinas foi garantido por recursos públicos, ou seja, pelos nossos impostos. No total, os governos terão investido $8,6 mil milhões de dólares, os grandes grupos farmacêuticos apenas $3,4 mil milhões de dólares e $1,9 mil milhões de dólares terão vindo de “organizações sem fins lucrativos”2. Os liberais e classes dominantes bem que se apressaram a retirar daqui a conclusão de que a parceria entre público e privado é que nos permitiu alcançar a vacina tão rapidamente. Um absurdo. A parceria público privada para a criação das vacinas está a funcionar como qualquer outra: os custos ficam para todos nós e os benefícios ficam para as farmacêuticas privadas. Da fase de investigação e desenvolvimento aos seguros de risco, tudo foi garantido, pelos governos, às farmacêuticas.
Faz, portanto, algum sentido que a vacina seja propriedade exclusiva das farmacêuticas? Estes primeiros meses de vacina já nos dizem que não. Os países mais ricos estão a tratar de si: garantindo as patentes das vacinas para as suas farmacêuticas e guerreando, entre si, para ocupar mercado. Não está garantido um sistema que permita a mais rápida vacinação, do máximo de pessoas, em todo o planeta. A OXFAM, por exemplo, calcula que nove em cada dez pessoas dos países pobres não tenham acesso à vacina este ano. Com a exclusividade de patentes nas mãos, as grandes farmacêuticas estão também a tratar de si: vão assinando contratos secretos com os governos, através dos quais recebem chorudas importâncias, sem sequer se comprometerem com prazos de fabricação e entrega. O caso da AstraZeneca é elucidativo, tendo anunciado já um lucro de 2.592 milhões de euros em 2020, mais 159% do que em 2019!!3. A oferta está nas mãos das grandes farmacêuticas. Charles Michel, actual presidente do Conselho Europeu, “insinua que os laboratórios estão a gerir a produção e distribuição em função dos seus interesses comerciais”4. “Moderna e Pfizer prometeram aos seus acionistas encaixes da ordem dos 5 e 15 milhares de milhões”5.
É catastrófico. Quem detém as patentes é fornecido em primeiro lugar. Quem não tem acesso à tecnologia das vacinas pode contentar-se com a morte. Sem vacinação global, estará mais longe uma solução para a pandemia.
O poder das grandes farmacêuticas está a sobrepor-se à vida de milhões de pessoas e é precisamente este o poder que devemos enfrentar. Muitos dos que concordam com isto, não deixam de prestar reverência ao mercado, afirmando que “não se trata de nacionalizar ou expropriar”6. Tedros Ghebreyesus, diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, apelou às farmacêuticas para disponibilizarem a “receita” das vacinas. Infelizmente, a resolução deste problema não passará por apelos morais dirigidos às grandes farmacêuticas. Estas só compreendem a linguagem mercantil e só reagem às suas perspetivas de lucro.
É urgente enfrentar os poderes instalados das grandes farmacêuticas. Precisamos de tornar público aquilo que foi conseguido com os recursos públicos: a tecnologia das vacinas contra a COVID-19. Ou seja, precisamos de uma produção aberta, em muito mais fábricas, globalmente dispersa e a baixo preço. A abertura da tecnologia de produção da vacina pode ajudar a salvar milhões. “Mais: face à escalada de novas variantes, as vacinas necessitarão de permanentes atualizações, faltando ainda saber quantos anos vamos ter de administrar doses a quase toda a população mundial. Portanto, este esforço tem de ser open source e global”7.
Para tal, é preciso libertar as patentes das amarras dos interesses privados. A anarquia do mercado deu numa guerra pelas vacinas.
Fim das patentes privadas!
As vacinas têm de ser bens públicos globais!
Vacinas para todos!
Fontes:
7 idem