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Médico do SNS, André Traça, fala-nos do combate ao Covid19

Esquerdavírus: Como médico e profissional de saúde, após décadas de desinvestimento e pressão privatizadora sobre o nosso SNS, quais são as principais dificuldades que os profissionais de saúde encontram no combate à Covid-19?

AT: Partimos de um ponto em que o SNS, com muitas assimetrias locais e regionais, já se encontrava desprovido de recursos humanos e materiais suficientes, em qualidade e em quantidade, para atender às necessidades da população numa situação pré-pandemia.
A situação colocada pela COVID-19, com grande desvio de recursos para responder à mesma e às inúmeras contingências necessárias para evitar a disseminação do vírus em unidades de saúde, coloca o SNS numa situação bastante crítica.
Por um lado, as outras doenças não foram de “férias” desde que a COVID-19 chegou a Portugal e precisam de ser tratadas e prevenidas como antes. O desvio de recursos já previamente escassos e a necessidade de acautelar os circuitos dos utentes não-COVID fazem com que cuidados essenciais sejam postos em causa, já para não falar de uma redução ou suspensão de cuidados não-urgentes (consultas, cirurgias programadas, rastreios, etc), que existem precisamente para que as pessoas não cheguem a desenvolver doença aguda que necessite de cuidados urgentes.
Por outro lado, a capacidade de tratar um número crescente de doentes COVID é seriamente posta em causa pela falta de pessoal, espaço físico e orçamento para material fixo e consumível quer no que toca ao diagnóstico (capacidade laboratorial) quer ao tratamento (equipamento de proteção individual, ventiladores, etc).

E: Que medidas consideras que devem ser tomadas de imediato?

AT: Em primeiro lugar, uma linha de financiamento extraordinário e sem restrições para as instituições do SNS fazerem face a esta avalanche.
Em segundo lugar, os meios dos laboratórios e cuidados de saúde privados têm que ser requisitados para servir o SNS nesta epidemia. Vemos, no SNS, sérios constrangimentos na realização de testes a utentes que têm indicação, com laboratórios em hospitais centrais a demorarem por vezes até 12 horas a darem um resultado.
Enquanto isso, há laboratórios privados a cobrarem entre 100€ a 200€ a quem queira pagar para ser testado. Os últimos dados da Direcção Geral de Saúde (DGS) mostram, inclusivamente, um decréscimo do número de testes realizados no país para uma proporção crescente de testes com resultado positivo. Ou seja, há cada vez mais infectados e cada vez menos testes realizados. Isto é inaceitável, quando o que é preconizado é que se teste o maior número possível de casos suspeitos para que se possa reforçar o isolamento destas pessoas e rastrear os seus contactos.
Por último, é fulcral suspender toda a actividade laboral não essencial que implique aglomerados de trabalhadores (call-centers, alguma indústria) como forma de impedir a propagação do vírus.

E: Se o nosso SNS fosse privado teria tantas ou melhores condições de combater esta epidemia?

AT: Não, de todo. A Saúde, na lógica privada, em que os cuidados são prestados apenas com a finalidade de gerar lucro, é incompatível com a protecção da Saúde Pública e esta crise ilustra isso mesmo. Se os sectores mais pobres da sociedade não conseguem ter acesso a testes e tratamentos por não terem dinheiro para pagar seguros, para além da sua própria saúde já estar e causa, põem em causa também a dos restantes.
Para além disso, os privados não têm vocação para prestar cuidados em situações complexas, muito menos com números crescentes de doentes. É sabido que já há algumas seguradoras e hospitais privados a fazerem os possíveis por “sacudir a água do capote” e, pelo menos, até há poucos dias, em Portugal, todos os casos COVID diagnosticados em privados eram prontamente transferidos para o SNS, independentemente da conta bancária do doente em questão. Nos EUA, com o seu modelo assente em seguradoras e “utilizador-pagador”, temo que isto tudo contribua para uma situação muito problemática.

E: Como se explica que morram muito menos pessoas na Alemanha por causa da Covid-19?

AT: Há várias explicações. A primeira assenta no maior número de testes realizados. A Alemanha, desde o início da pandemia, tem desenvolvido e expandido uma capacidade notável de fazer com que os testes cheguem a uma grande fatia da população, sobretudo a quem tem sintomas. Havendo muitos mais infectados identificados mais precocemente, num estádio em que ainda sofrem de quadros clínicos sem gravidade, faz com que a taxa de mortalidade seja menor.
Outras explicações encontram-se no investimento público em Saúde que, ao contrário dos países do Sul da Europa, não decresceu na última década. Um dos reflexos disso mesmo é tornar a Alemanha um dos países com maior rácio de camas de cuidados de intensivos por população residente.

E: Tens conhecimento do que terá falhado em Itália, se é que falhou alguma coisa, para registarem uma taxa de letalidade tão elevada?

AT: Em primeiro lugar, um atraso significativo na aplicação de medidas de contenção pelos governos regionais da Lega Nord (extrema-direita) que negligenciaram o perigo do que chamavam o “vírus chinês”. Só recentemente, há poucos dias, e depois de números que remetem para um autêntico massacre, com perto de 800 mortos num único dia, é que se decidiu suspender a produção industrial não essencial.
Em segundo, deve-se a uma organização de cuidados de saúde que, mesmo sendo publicamente regida, é sub-concessionada, em muitos casos, a sectores privados e cooperativos.
Por último e não menos importante, uma população muito envelhecida, sendo as faixas etárias mais elevadas a sofrer a maior letalidade do vírus.

E: Esta pandemia já nos traz alguma luz sobre aquilo que, estrategicamente, deve ser o SNS, não só em Portugal mas em qualquer país?

AT: Qualquer SNS deve ser um sistema de gestão e recursos públicos, adequadamente financiado e com capacidade de motivar profissionais que contribuam para a inovação técnica, para a definição e implementação das melhores práticas e com melhor qualidade nos cuidados prestados.

E: Foi noticiado que Trump tentou ter o exclusivo de uma vacina para a Covid-19 em que está a trabalhar o laboratório alemão CureVac, associado a um instituto científico tutelado pelo Ministério da Saúde alemão, com financiamento do Governo alemão. Em termos de investigação para o desenvolvimento de uma vacina para a Covid-19, tens conhecimento daquilo que está a ser feito a nível europeu?

AT: Esse dado foi escandaloso, embora, infelizmente, não seja surpreendente. A esmagadora maioria da indústria farmacêutica não se rege pela saúde de quem adoece mas pelos lucros dos seus accionistas, o que não é, em muitos casos, compatível.
Habitualmente, são organismos públicos que vivem de bolsas públicas que desenvolvem o núcleo duro da investigação e do conhecimento sobre os mecanismos das doenças e do que as pode tratar. A indústria parte deste conhecimento, que é partilhado em congressos e revistas científicas, para testar moléculas (vacinas ou medicamentos) ou dispositivos (ex: pacemakers, próteses) que, uma vez demonstrada a sua utilidade, são patenteados e vendidos com elevadas margens de lucro.
Trump achou que chegava com um saco de mil milhões de dólares e abarbatava a vacina. Existe investigação extensa em fármacos que já existiam com outras indicações e que agora estão a ser testados em doentes com a COVID-19, assim como vacinas experimentais. É absolutamente fundamental que a investigação em saúde desde os seus estádios mais básicos até aos ensaios clínicos (fases finais em que se prova a segurança e eficácia das intervenções) seja financiada publicamente para o que daí vier, possa ser produzido e distribuído com a finalidade de servir o interesse público. O mais irónico é que isto representaria uma poupança brutal, tanto para os utentes como para o Estado, uma vez que só tinham que ser cobertos os custos de produção dos medicamentos e vacinas e não seria preciso pagar os milhares de milhões que todos pagamos, hoje em dia, para sustentar os lucros dos accionistas da indústria farmacêutica e os bónus dos seus administradores.

E: Por fim, será possível combater uma pandemia deste género de forma tão desordenada e desigual como está a acontecer? Que acções é que os diferentes estados deveriam estar a desenvolver em conjunto?

AT: Num mundo globalizado, em que os vírus viajam com as pessoas entre cidades, regiões, países e continentes, constantemente, só faz sentido que a pandemia seja combatida de forma coordenada. E embora existindo pequenas diferenças subtis entre indivíduos, a nossa biologia enquanto humanos é extremamente idêntica. Mais uma vez, a doença de uns implica a saúde de todos os outros e não adianta irmos na conversa do “vírus chinês”, como a Lega em Itália, o Trump nos EUA, o Bolsonaro no Brasil ou o Correio da Manhã e Ventura, em Portugal, insistem em chamar-lhe.
É incrível como a União Europeia, suposto bastião da democracia e da prosperidade, é tão coordenada no que toca a políticas de austeridade sobre os povos, no que toca a políticas monetárias, a políticas de livre circulação de capitais, a políticas de protecção dos mercados e da banca, assim como políticas de gestão de fronteiras externas e não tem uma política coordenada no que toca à Saúde Pública, demitindo-se da gestão desta crise e deixando-a a cargo de cada um dos Estados-membro. Política monetária comum, política agrícola comum, ditadura do défice comum, mas zero política de saúde comum. Máxima organização, coordenação e firmeza a acudir bancos e grandes negócios em apuros, mas completa negligência pela saúde (e mesmo sobrevivência!) das pessoas que habitam o velho continente.
Faria sentido, sim, mais do que nunca agora, existir coordenação e cooperação entre os povos no que toca a monitorizar e actuar na crise da COVID-19, nomeadamente, para fazer deslocar meios materiais e profissionais de saúde para onde são mais necessários.

 

Entrevista em três publicações na página do EsquerdaVírus:

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