Nos últimos dois meses, o Sudão tem sido abalado por mobilizações sem precedentes desde a sua independência, em 1956. Esta vaga de protestos, quase diários, é a maior desde que Omar al-Bashir subiu ao poder através de um golpe, em 1989.
A revolta teve início no passado dia 19 de Dezembro no norte do país, na cidade de Atbara, um aglomerado da classe trabalhadora e o berço do sindicalismo sudanês. Desencadeada pela escassez e pela subida dos preços de bens e serviços essenciais, como o pão, o trigo, a electricidade e os combustíveis, rapidamente se espalhou por outras cidades. A meio de Janeiro, contabilizaram-se protestos em 15 dos 18 estados do Sudão[1]. Da mesma forma, as reivindicações adquiriram rapidamente um carácter mais profundo, exigindo a queda do regime e o fim de três décadas de repressão económica, política e social. Nas manifestações cantam-se palavras-de-ordem como “liberdade, paz e justiça”, “a revolução é a escolha do povo” e a célebre “o povo quer a queda do regime”, popularizada durante as revoltas da Primavera Árabe, em 2011.
O Governo respondeu aos protestos com uma repressão brutal, prendendo mais de 1.000 pessoas, incluindo manifestantes, líderes da oposição, activistas e jornalistas[2]. Para dispersar as manifestações, utilizou gás lacrimogéneo, granadas de atordoamento e munições reais, recorrendo a snipers e milícias. Os números mais recentes, divulgados pela oposição, contabilizam 57 mortos desde Dezembro, algo que o regime nega, como seria de esperar, falando apenas em 31[3]. A 29 de Janeiro, face à crescente mobilização e à pressão externa, o chefe do Serviço Nacional de Inteligência e Segurança (NISS) ordenou a libertação de todos os detidos[4]. Desde então a resposta do regime tem oscilado entre a repressão nas ruas e promessas vazias de mudança, crescimento económico e paz, num tom mais conciliatório. Omar al-Bashir mantem-se intransigente, afirmando que a mudança apenas poderá vir das urnas, em 2020. Por sua vez, a oposição, numa declaração conjunta, recusa-se ao diálogo, afirmando que os protestos irão continuar até à queda do regime[5].
Revoluções, golpes militares e guerra civil
O Sudão é terceiro maior país africano, tendo um subsolo rico em minérios valiosos e importantes reservas de petróleo. No entanto, desde a independência do Sudão do Sul, em 2011, impulsionada pelos EUA, perdeu três quartos dessas reservas que pertencem, hoje, ao novo país. A isto junta-se uma inflação de quase 70%, ao ano, e uma severa crise cambial. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) estima que quase metade da população, ou seja, cerca de 20 milhões de pessoas, vive abaixo do limiar da pobreza[6].
Por duas vezes desde a independência do país, a mobilização do povo sudanês derrubou regimes militares, em Outubro de 1964 e em Abril de 1985. Em ambos os casos, as liberdades democráticas conquistadas foram esmagadas através de golpes militares em 1969 e 1989, respectivamente.
O regime sudanês, resultante do golpe de 1989, dirigido pelo general Omar al-Bashir e apoiado por forças fundamentalistas islâmicas, reprimiu toda a oposição sindical e política. Dominado pelo Partido Congresso Nacional (NCP), o regime apoia-se na força dos serviços de segurança (NISS) e em milícias para exercer essa repressão. Da mesma forma, utiliza a opressão étnica e racial para se manter no poder e alimentar as divisões através de uma guerra civil com o sul e nas regiões de Darfur, Kordofan do Sul e Nilo Azul. Em 2009, Omar al-Bashir foi acusado pelo Tribunal Penal Internacional por genocídio no Darfur, sendo o primeiro Chefe de Estado em funções a ser alvo de um mandado internacional de captura. Desde 2010, organizou duas farsas eleitorais que o reconduziram ao poder, estando actualmente a preparar uma alteração à legislação para que se possa recandidatar, novamente, em 2020.
Desde que assumiu o cargo, Omar al-Bashir estabeleceu relações importantes com potências regionais e internacionais, como os Emirados Árabes Unidos, o Qatar, a Turquia e a China, que têm grandes investimentos no país. O Sudão tem sido um aliado da Arábia Saudita e dos Emirados na guerra sangrenta do Iémen, para onde tem enviado milhares de soldados. Desde o início dos protestos, o regime sudanês tem recebido declarações de apoio das monarquias do Golfo, da Turquia e do Egipto. Em Janeiro, também a Rússia se prestou a ajudar economicamente o regime criminoso sem pestanejar, ao lado dos Emirados, da Turquia e do Qatar[7].
Os ventos tardios da Primavera Árabe
Envolto na divisão do país, em 2011, o Sudão não foi abalado nesse ano pelas grandes mobilizações que enfrentaram os regimes ditatoriais do Norte de África e Médio Oriente. Quando o povo se mobilizou, em 2013, contra a subida dos preços dos combustíveis, o regime respondeu com uma dura repressão que fez 200 vítimas[8]. A suspensão parcial das sanções que os Estados Unidos mantinham há quase 20 anos, em Setembro de 2017, causou expectativa de mudança na situação económica, expectativa defraudada quando foi apresentado o orçamento para 2018. Desde então, o país tem passado por várias mobilizações, que culminaram nestes dois meses de protestos.
As organizações dos trabalhadores e a esquerda têm desempenhado um papel importante. Desde o primeiro momento que a Associação de Profissionais do Sudão está na linha da frente dos protestos, dando respaldo às reivindicações das ruas e servindo como instrumento organizativo do movimento. Médicos, jornalistas, farmacêuticos, professores e estudantes estão unidos contra o regime. Organizações como o Partido Comunista Sudanês (SCP), assim como a União de Mulheres Sudanesas (SWU) e outros grupos feministas também têm tido um papel dirigente importante na revolta, mobilizando-se contra décadas de opressão das leis islâmicas.
Até ao momento é difícil prever qual será o desfecho destas mobilizações. Num país que atravessa vários conflitos armados, o regime tenta chantagear a oposição com o fantasma da guerra em curso na Líbia, resultado da revolução usurpada pelo imperialismo que temia que o poder caísse nas ruas. No entanto, aqueles que se manifestam contra al-Bashir fazem-no também pelo fim dos conflitos armados que o regime alimenta. No passado dia 14 de Fevereiro, a SPA chamou a protestos em solidariedade com a população afectada pelas guerras no Darfur, Kordofan do Sul e Nilo Azul, havendo relatos de protestos contra o regime nos campos de refugiados de Darfur[9].
Se, por um lado, os regimes da região agitam os fantasmas das guerras na Líbia, Síria e Iémen para convencer o povo de que a revolução não é uma solução, aquilo que mais temem é acordar o gigante adormecido. Essa é a principal razão para o apoio de Sissi (do Egipto) a Omar al-Bashir, pondo de lado velhas disputas sobre territórios fronteiriços pelo Egipto e pelo Sudão. Além disso, o presidente sudanês foi o primeiro Chefe de Estado da Liga Árabe a viajar à Síria e a prestar apoio a Bashar Al-Assad, depois de o país ter sido suspenso da organização internacional. Poucos dias depois, os Emirados Árabes Unidos reabriram a sua embaixada no país. O derrubar da ditadura no Sudão pode alimentar, novamente, as esperanças de milhões na região e dar um novo folgo às lutas em curso, na Tunísia, e à oposição que tem sido reprimida pelo ditador egípcio, apoiado pelos EUA, e é isso que une, hoje, os vários regimes da região, ainda que tenham disputas em curso.
Deste cenário, não pode ser excluída a hipótese de um golpe ao estilo egípcio, que removeu a Irmandade Muçulmana do poder, depois de ter sido eleita democraticamente, devolvendo o poder aos militares. Em todo o caso, não foram só os regimes que aprenderam com a designada Primavera Árabe. Por mais que tentem apagar a memória e chantagear com a guerra, o que se passou na Tunísia e no Egipto continua a ser uma inspiração para as populações e activistas[10] que cantam hoje “o povo quer a queda do regime!”.
Fora Omar al-Bashir!
Toda a solidariedade com a luta do povo sudanês!
Artigo de Pedro Godinho