Testemunho sobre a violência policial e o racismo nos subúrbios de Lisboa

Fui detido pela PSP, no dia 13 de Junho de 2007. Fui acusado de ter agredido os polícias que nessa tarde me “abordaram”, em Alfragide.
Mas esta estória começa em janeiro de 2007. Nesse período, eu ainda vivia na Damaia e costumava ir com alguns amigos conversar e beber uns copos em Alfragide. Nesta zona, por baixo de uns prédios bem altos, existia um local que estava protegido da chuva e tinha uma excelente vista para o rio Tejo.
Numa sexta-feira de Janeiro de 2007, ao sair do trabalho, desloquei-me a esse local em Alfragide para ir ter com os meus amigos. Chegado lá, deparo-me com o cenário dos meus amigos encostados à parede e 5 polícias, alguns com shotguns na mão, a revistá-los. A revista tinha o objetivo de encontrar “ganzas”. Ao aproximar-me do local onde estavam, a ordem aos berros para que eu me encostasse à parede foi instantânea. Perante o regurgitar de insultos como por exemplo “Vocês são como os pretos, escumalha!”, “São da Damaia? Então o que estão a fazer em Alfragide? Escumalha de merda”, decidi cometer a ousadia de questionar o conteúdo desses comentários bem como a actuação desproporcionada por parte da polícia. As minha palavras foram algo do género “Desculpe Sr. agente, mas você não pode estar a falar assim connosco. Nós temos os nossos direitos”. Um dos polícias que estava mais exaltado e que mais insultava aproximou-se de mim e encostou a cabeça à minha deixando o aviso: “Oh camarada, tens direitos? A tua sorte é que o meu turno acaba daqui a meia hora e eu quero sair a horas. Mas eu não me esqueci da tua fronha. Caso te veja outra vez em Alfragide vais levar no focinho”.

Passado uns meses, no dia 13 de Junho, estava eu com um amigo à conversa em Alfragide quando passa um carro patrulha da PSP. Rapidamente, o carro dá meia volta e vem na nossa direcção. O polícia que me tinha ameaçado encontrava-se de novo à minha frente. Fui agredido com uma chapada e levado pelo chão para o carro de patrulha. Chegado à esquadra da PSP de Alfragide, um outro polícia que tinha estado no episodio de janeiro, assim que me vê diz “Olha quem é ele. O camarada”. Este rapidamente se junta ao polícia que me tinha detido e levam-me para outra sala onde me obrigam a despir e a retirar os óculos. Perante a minha nega em retirar os óculos, as agressões começam com eles mesmo postos.

Neste momento, chegam à esquadra os meus pais e os meus amigos que tinham sido alertados do que se passava comigo. Tive sorte, pois os polícias pareciam com vontade e empenho no que estavam a fazer.

A partir desse momento a situação começou a alterar-se. O polícia que me havia ameaçado, detido e agredido começou a mudar o seu comportamento. Sobretudo quando me veio perguntar: “Habilitações? 12º ano?” ao que respondi “licenciatura”. O polícia, meio incrédulo, questiona, “Mas estás desempregado?”, ao que eu respondo “Não, trabalho na PT”. A cara de pânico do polícia ao perceber que eu tinha uma licenciatura e trabalhava, demonstrou que este se tinha dado conta que tinha “metido a pata na poça”. E porque? Porque sabia que, provavelmente, eu teria condições de ser defendido por um advogado e que um homem branco e licenciado acusar um policia de violência, infelizmente na nossa sociedade, é diferente do que ser acusado por um homem branco desempregado ou, pior ainda, por um homem negro. Nestes últimos casos já se sabe que a versão da polícia sobre algum tipo de acontecimento é a que prevalece sem quaisquer duvidas.

É o que temos assistido sobre a violência policial no Bairro Jamaica e na Av da Liberdade. Basta a polícia dizer “arremessaram pedras” e está justificado, não é preciso mais nada. Nem vídeos, nem testemunhas sobre o que realmente se passou importam. Salvo raras excepções, os jornais e televisões passam os comunicados da policia como se de noticias se tratassem.

Como devem calcular, sempre que assisto a casos como estes duvido muito da versão da polícia. Porque o episódio de violência policial de que fui alvo teve como consequência, além das humilhações e agressões na esquadra de Alfragide e uma noite passada nos calabouços da PJ, em Lisboa, ir a tribunal sob a acusação de agressão a agentes da PSP. E também porque na cela na PJ, onde estive, a grande maioria dos detidos que tinham ferimentos provocados pela PSP tinham a acusação de agressão a agentes da PSP. E também porque vivi na Damaia, durante 25 anos, 18 deles com uma esquadra da PSP na minha praceta. Vi muitas agressões, ouvi muitos comentários de agentes da PSP sobre a comunidade negra da Damaia. As negras e negros eram vistos como animais, como gente inferior e desprezível. Sei bem como a PSP actua de forma diferente nos subúrbios do que no centro da cidade de Lisboa. Sobretudo se os alvos forem negros. Aliás, sendo negros até no centro de Lisboa, em plena Av. da Liberdade se dispara na sua direcção balas de borracha.

Já fui a muitas manifestações e algumas delas na Av. da Liberdade. Já estive também em manifestações onde existiu violência e em nenhuma houve disparos de balas de borracha. Isso só aconteceu porque a maioria dos manifestantes ontem era negra e bastava a versão da policia (“arremessaram pedras”) para a opinião pública se colocar do lado da polícia.

É uma vergonha. Dever-nos-ia indignar a todos/as. O mínimo exigido perante tal situação seria hoje ou amanhã existir uma manifestação na Av da Liberdade em defesa das negras e negros portugueses e não-portugueses que vivem no nosso país.

NOTA: Sobre o processo em causa importa dizer que fui ilibado. Entrei com um processo contra o polícia ao mesmo tempo. Depois de eu já ter gasto 1.000 euros em custos judiciais e honorários e do processo se arrastar durante 3 anos, disse ao advogado que me defendia que já não podia continuar. Graças ao advogado, que se sentiu sensibilizado com o meu caso, este prosseguiu com o processo e prescindiu dos honorários. Passado 6 anos do ocorrido o polícia foi condenado a indemnizar-me em 500 euros.

Artigo de Tiago Castelhano

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