Testemunho do Milton Rocha sobre a violência policial

Muito já se tem dito e escrito sobre o tema do racismo e da violência policial nos últimos dias/horas, sendo a minha opinião uma gota no mar da discussão, parecendo-me no entanto relevante expô-la:

Sou negro, nascido em Portugal, filho de pais cabo-verdianos que tudo fizeram para que eu não “saísse dos eixos”. Tenho licenciatura e mestrado e nunca tive problemas com a polícia ou qualquer outra autoridade. Contudo, tenho que reconhecer que infelizmente a maioria dos afrodescendentes nascidos por terras lusas não tiveram a mesma sorte e as mesmas oportunidades que eu tive, sendo brutalmente marginalizados, alguns obrigados a crescerem sozinhos, estando os seus progenitores enclausurados em andaimes ou a limpar casas de patrões de índole, por vezes, duvidosa, não tendo outra solução, devido à discriminação sócio-racial senão a de estabelecerem-se em enclaves próprios urbanos de modo a formarem uma rede de apoio entre si. Sim, foi assim que surgiram os chamados bairros problemáticos da periferia de Lisboa: o meio social estabelecido não querendo abraçar esta população, vinda dos PALOPs, limitou-se a “empurrá-la” para longe da vista, (havendo, no entanto, a ideia por parte de alguns que esses bairros caíram do céu) e, hoje, essa mesma sociedade critica as consequências dessa exclusão. A minha posição privilegiada de forma alguma me coloca palas nos olhos de maneira a ignorar este facto. A autoridade tem que ser respeitada e obedecida? Sem dúvida, mas para que isso aconteça essa mesma autoridade não pode tratar e ver certas franjas da sociedade como párias invasores ou não-humanos e esperar respeito e obediência em troca.

Aos que dizem que bandidagem é para malhar, que bom seria se isso se aplicasse também a quem comete crimes financeiros e que bom seria se a população se indignasse com os mais de 16 mil milhões de euros gastos pelo Estado no resgate de bancos, nos últimos 5 anos (dinheiro este oriundo dos meus e dos vossos impostos), tanto quanto se indigna com o facto de não-brancos, que vivem em guetos, receberem RSI e, sobretudo, que ótimo seria se todos gozassem da mesma simpatia em idênticas situações, pois certamente recordam-se da onda de solidariedade que o adepto do benfica agredido em Guimarães teve direito, certo? Ninguém nessa altura quis saber o que se passou antes da filmagem, pois não? Custa-me a crer que o factor etnia não tenha tido influência na situação do bairro da Jamaica. Porque não têm eles direito a solidariedade? Porque é que neste caso é necessário saber o que se passou antes e em Guimarães não? Não considero Portugal um país racista em si, mas existe, sim, muito racismo em Portugal. Os comentários chocantes que tenho visto nas redes sociais são disso prova. Posto isto, digo aos “pretos”: por favor parem de causar situações que apenas vos/nos prejudicam, sei das dificuldades e da discriminação por que passam, mas se querem lutar contra isso, organizem-se social e economicamente, estudem e consciencializem-se. Aos “brancos”: parem de meter todos no mesmo saco e de discriminar cegamente, destilando veneno, pois apenas estão a pôr gasolina no fogo da revolta da juventude negra. A todos: somos humanos, tratem-se como tal.

Artigo de Milton Rocha

Anterior

A Identidade que nos é roubada

Próximo

Testemunho sobre a violência policial e o racismo nos subúrbios de Lisboa