A experiência histórica não vale para os pequenos burgueses,
que não conhecem história.
A ilusão é o alimento mais tenaz da consciência coletiva.
A história ensina, mas não tem alunos. (1)
Uma das características fundamentais do fascismo, em suas distintas experiências históricas, é o fato de que embora se constitua como expressão dos interesses do grande capital (como as políticas concretas dos regimes fascistas comprovam fartamente), sua ascensão é impulsionada fundamentalmente por setores intermediários, muito especialmente a pequena burguesia. Esta característica, que hoje se observa nitidamente nos dados das pesquisas eleitorais (ainda que diluídos nos critérios de “faixa de renda” usados pelos institutos de pesquisa) e também na conformação de milícias e grupos de ação violenta, foi observada também durante a ascensão do nazismo, por Wilhelm Reich, que observando os dados eleitorais comprovou o apoio majoritário da pequena burguesia urbana e rural ao nazismo, (2) enquanto os trabalhadores mantiveram-se majoritariamente fiéis à social-democracia ou aos comunistas. Da mesma forma, esse fenômeno não passou desapercebida na análise de Gramsci, como indicaremos adiante.
O termo “pequena burguesia”, na tradição marxista, não designa uma burguesia de menor porte, como o nome pode erroneamente sugerir, mas um estrato com características particulares que implicam em uma contradição insanável: este vasto estrato social que reúne pequenos comerciantes, artesãos e pequenos proprietários rurais tem em comum com a burguesia o fato de que são proprietários, e com a classe trabalhadora o fato de que necessitam do próprio trabalho para viver. De um lado, eles se identificam com a condição de proprietários, pois detêm o controle dos recursos produtivos do qual depende seu negócio (seja ele uma loja, restaurante, serralheria, oficina ou uma pequena propriedade rural). De outro, ao contrário da grande burguesia e assim como os trabalhadores, tiram a sobrevivência do seu próprio trabalho (e na maior parte dos casos, também do trabalho de sua família). Seu negócio de pequeno porte , mesmo que eventualmente conte com alguns trabalhadores assalariados, não tem escala suficiente para que possam viver apenas da extração de mais valia alheia. Esta condição contraditória determina a impossibilidade de sustentarem um projeto de sociedade próprio e autônomo (uma sociedade de pequenos proprietários é de tal forma anacrônica que mesmo em termos ideológicos sua eficácia é limitadíssima), e portanto sua ação política se dá necessariamente atrelada a uma das classes fundamentais – burguesia e trabalhadores. O fascismo é relevante precisamente porque permite historicamente colocar a pequena burguesia a serviço da grande burguesia, e mais ainda, por conformar tropas de choque em defesa de seus interesses.
É impressionante a atualidade da definição gramsciana sobre o significado do fascismo em um contexto de crise econômica e do papel da pequena burguesia nisto:
O que é o fascismo, visto em escala internacional? É a tentativa de resolver os problemas da produção e da troca através de rajadas de metralhadoras e de tiros de pistola. (…) Criou-se uma unidade e simultaneidade de crises nacionais, que fazem com que a crise geral seja extremamente aguda e incontornável. Mas existe em todos os países um estrato da população – a pequena e média burguesia – que considera ser possível resolver estes gigantescos problemas com metralhadoras e pistolas. É este estrato que alimenta o fascismo, que fornece seus efetivos. (3)
Em janeiro de 1921, Gramsci observava o fenômeno então novo da realização de grandes manifestações de rua reacionárias, e o relacionava à “perda de importância da pequena burguesia”, “afastada de qualquer função vital no terreno da produção” e que tentando reagir a este processo “busca de todos os modos conservar uma posição de iniciativa história: ela macaqueia a classe operária, também faz manifestações de rua”. (4)
A referência ao “povo dos macacos”, na novela O Livro da Selva, de Rudyard Kipling, (5) enseja uma ácida analogia de Gramsci sobre o sentimento de superioridade de classe e brutal incoerência dos discursos moralizantes da pequena burguesia: “o povo dos macacos, que acredita ser superior a todos os outros povos da selva, que acredita possuir toda a inteligência, toda a intuição, todo o espírito revolucionário, toda a sabedoria de governo, etc., etc. Ocorreu o seguinte: a pequena burguesia, que se pusera a serviço do poder governamental por meio da corrupção parlamentar, modifica a forma de prestação de serviços, torna-se antiparlamentarista e busca corromper as ruas”. (6) Curiosamente, toda agressividade, violência e militarismo de sua ação, que buscam expressar força e potência, na realidade expressaria justamente sua incapacidade orgânica:
Depois de ter corrompido e arruinado a instituição parlamentar, a pequena burguesia corrompe e arruína também as demais instituições, os sustentáculos fundamentais do Estado: o exército, a polícia, a magistratura. Corrupção e ruína realizadas a fundo perdido, sem nenhuma finalidade precisa (a única finalidade precisa deveria ser a criação de um novo Estado: mas o “povo dos macacos” se caracteriza precisamente pela incapacidade orgânica de criar para si uma lei, de fundar um Estado. (7)
Ao mesmo tempo, a grande burguesia abdica de qualquer veleidade democrática e adere alegremente à barbárie proposta pelas tropas de choque que o fascismo coloca à sua disposição: “A classe proprietária repete, em face do poder executivo, o mesmo erro que cometer em face do Parlamento: acredita que pode se defender melhor dos assaltos da classe revolucionária abandonando as instituições de seu Estado aos caprichos histéricos do “povo dos macacos”, da pequena burguesia”. (8) O artigo é escrito quase dois anos antes da Marcha sobre Roma, marco da ascensão do fascismo ao poder, e por isto é particularmente interessante observar a clareza que Gramsci tinha sobre a verdadeira impotência que movia a pequena burguesia, crescentemente subordinada subjetiva e objetivamente ao grande capital, por mais que disfarçasse esta subordinação com tiros de pistola ou proclamações pretensamente “contra a ordem”. Seu balanço é arrasador:
A pequena burguesia, mesmo nesta sua última encarnação política que é o “fascismo”, revelou definitivamente sua verdadeira natureza de serva do capitalismo e da propriedade agrária, de agente da contra-revolução. Mas revelou também que é fundamentalmente incapaz de desempenhar qualquer tarefa histórica: o povo dos macacos enche as crônicas, não faz história; deixa traços nos jornais, não oferece material para livros. A pequena burguesia, depois de ter arruinado o Parlamento, está arruinando o Estado burguês: ela substitui, em escala cada vez maior, a “autoridade” da lei pela violência privada; exerce (e não pode agir de outro modo) essa violência de modo caótico, brutal, e faz com que se ergam contra o Estado, contra o capitalismo, segmentos cada vez mais amplos da população. (9)
Se a última frase expressava o “otimismo da vontade” de Gramsci com a possibilidade de derrotar o fascismo através da concretização da revolução socialista, o restante assemelha-se assustadoramente com o processo que estamos vivendo no Brasil. Até recentemente podíamos ressalvar que ainda não se evidenciava a constituição de uma base militante organizada nos moldes de tropa de choque e a escalada da violência que a caracteriza. Não é possível mais ter a mesma segurança, e portanto é urgente reconhecer o fenômeno do fascismo, os elementos que o particularizam e a exigência imediata de seu enfrentamento.
Artigo de Gilberto Calil*, publicado originalmente no Esquerda Online
*Gilberto Calil é doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor do curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), integrando o Grupo de Pesquisa História e Poder. É autor, entre outros livros, de “Integralismo e Hegemonia Burguesa” (Edunioeste, 2011) e pesquisa sobre Estado, Poder, Direita, Hegemonia, Ditadura e Fascismo. gilbertocalil@uol.com.br
Foto: Mussolini discursa em Roma, em 1925.
NOTAS
1 – GRAMSCI, Antonio. “Itália e Espanha”. In: Escritos Políticos. Volume 2, 1921-1926. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 48.
2 – REICH, Wilhelm. Psicologia de massas do fascismo. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
3 – GRAMSCI, “Itália e Espanha”. In: Escritos Políticos, op. cit.. p. 46-7. Grifo meu.
4 – GRAMSCI, “O Povo dos Macacos”. In: Escritos Políticos, op. cit., p. 31.
5 – RUDYARD, Kipling. O livro da selva: as histórias de Mogli. São Paulo: Scipione, 2009. A edição original é de 1894.
6 – GRAMSCI, “O Povo dos Macacos”. In: Escritos Políticos, op. cit., p. 31-32.
7 – Idem, p. 32. Grifo meu.
8 – Idem, p. 33.
9 – Idem, p. 34.