“Por seu alto teor explosivo, a palavra “fascista” tem sido freqüentemente usada como arma na luta política. É compreensível que isso ocorra. Para efeito de agitação, é normal que a esquerda se sirva dela como epíteto injurioso contra a direita. No entanto, esse uso exclusivamente agitacional pode impedir a esquerda, em determinadas circunstâncias, de utilizar o conceito com o necessário rigor científico e de extrair do seu emprego, então, todas as vantagens política de uma análise realista e diferenciada dos movimentos das forças que lhe são adversas.”[1]
Como observamos no trecho em epígrafe, o saudoso Leandro Konder insistiu em seu livro Introdução ao fascismo que essa mania da esquerda chamar de “fascista” qualquer direita autoritária poderia ter legitimidade como recurso de agitação, mas era enganoso como instrumento de análise e pode produzir efeitos nefastos na luta política, pois desarma a esquerda no entendimento dos movimentos de seus adversários. É indiscutível que essa forma frouxa de considerar “fascista” qualquer direita produziu historicamente resultados desastrosos na vida dos trabalhadores e a desarticulação violenta da esquerda.
Afinal, o que é o fascismo?
Num dos títulos mais atualizados e disponíveis para o público brasileiro, o historiador americano Roberto O. Paxton defende que só seria possível conceituar corretamente o fascismo depois de uma longa exposição de seu desenvolvimento histórico no período do entre guerras.[2] Embora nos pareça bastante adequado o método defendido por Paxton, para o propósito da argumentação que segue nos arriscamos na apresentação do que seriam as características básicas desse fenômeno que marcou a história do século XX.
Além de movimento, o fascismo tornou-se poder na Itália e na Alemanha no período entreguerras, sendo assim uma forma específica de regime político do Estado capitalista. Não qualquer regime, não qualquer ditadura, mas uma ditadura contrarrevolucionária com características bastante específicas, diferente, por exemplo, tanto de ditaduras oligárquicas, como a de Porfírio Diaz no México anterior à Revolução, como das ditaduras militares encontradas na América do Sul nos anos 1960-1980. Deste modo, chamar qualquer regime político ditatorial de “fascista” pode ser legítimo no plano da retórica política de seus opositores, mas do ponto de vista analítico denota desconhecimento.
Surgido das contradições oriundas da eclosão da Primeira Grande Guerra e do desafio da Revolução Russa de 1917, o fascismo constitui-se como um movimento contrarrevolucionário, formado por uma base social na pequena burguesia, especialmente pela massa de ex-combatentes, que em países da Europa central foram recrutados pelas classes proprietárias que os financiaram para formarem grupos de bate-paus contra o movimento operário e a esquerda em geral.[3] Enquanto movimento, o fascismo representou historicamente um oponente violento das organizações da esquerda, da classe operária e dos subalternos sociais, bancado pelas classes dominantes para eliminar, inclusive fisicamente, qualquer coisa que pudesse ser associada à ameaça de “contagio vermelho”. E por isso o sucesso dos movimentos fascistas associava-se também à capacidade desses movimentos convencerem amplos setores sociais de que o conjunto das esquerdas poderia ser enquadrado como “comunista” e, por conseguinte, “antipatriótica”. Assim, dos revolucionários anarquistas até os social-democratas mais reformistas, passando naturalmente pelos próprios comunistas, as esquerdas em geral foram alvo desses movimentos contrarrevolucionários.
Surgido originalmente na Itália, movimentos fascistas se espalharam pela Europa entre os anos 1920 e 1930. Entre os primeiros a compreender o caráter internacional do fenômeno do fascismo, os marxistas tiveram também entre suas fileiras posições equivocadas que estão na base desse uso generalizado do termo “fascista” pelas esquerdas. É verdade que avaliações mais finas foram produzidas, por exemplo, pelos comunistas italianos ao longo dos primeiros anos do regime fascista, de que são exemplo os escritos de Antonio Gramsci anteriores à sua prisão e também nos seus escritos carcerários, particularmente no seu caderno 13 sobre Maquiavel e no 22, o afamado “Americanismo e fordismo”.[4]
Entretanto, a estalinização da Internacional Comunista e a adoção da teoria do “social-fascismo” no VI Congresso da Internacional Comunista em 1928 levaria a um empobrecimento do debate, assim como preparou desastres políticos, embora as melhores linhas escritas por marxistas que se opunham a esses esquemas tenham sido escritas neste contexto.[5] Na lavra do comunismo dirigido por Moscou, o termo “fascismo” passaria a ser utilizado na retórica política para caracterizar a mais ampla variedade de posições no espectro político, embasada na paupérrima definição segundo a qual: “O fascismo é uma ditadura terrorista aberta dos elementos mais reacionários, mais chauvinistas, mais imperialistas do capital financeiro.” Como esclareceu argutamente Ernest Mandel, tal definição genérica tinha uma precisa função: a de legitimar a teoria stalinista segundo a qual a socialdemocracia seria um “irmão gêmeo” do fascismo, igualmente serviçal do capital monopolista.[6]
Seria preciso esperar que as resultantes da aplicação dessa linha irresponsável levassem ao desastre alemão com a ascensão de Hitler em fins de janeiro de 1933 – pois como se sabe, os comunistas alemães se recusaram a qualquer tipo de ação comum de frente única com a socialdemocracia –, para que um debate minimamente sério sobre o fenômeno do fascismo fosse reaberto no âmbito da Internacional, a partir das contribuições do italiano Palmiro Togliatti e do búlgaro Georgi Dimitrov. Precisavam apresentar algo minimamente consistente para contraporem-se às sofisticadas e argutas análises que o principal opositor do stalinismo, Leon Trotsky, vinha fazendo desde que a Internacional havia elaborado a teoria (estúpida) do “social-fascismo”.
Aliás, Trotsky insistiu sempre na especificidade do fenômeno do fascismo como forma de regime do Estado burguês, que não poderia ser confundido com outras formas de regime ditatoriais, como o bonapartismo e ditaduras militares como as do general Primo de Rivera na Espanha. Na compilação de seus escritos sobre a Alemanha no início dos anos 1930, Revolução e Contrarrevolução na Alemanha, esse é um ponto forte e original a ser destacado.[7]
Contudo, mesmo com as alterações na linha política exigindo inicialmente uma conceituação mais rigorosa do fascismo, o esquematismo continuou a imperar na linha oficial do Comintern. Com a adoção da tática das Frentes Populares, aprovada no VIII Congresso da Internacional em 1935, o fascismo foi paulatinamente passando a ser reduzido a uma ditadura do capital monopolistacontra o resto da sociedade. Segundo essa perspectiva, para barrar o fascismo agora seria necessária uma aliança de todos os setores sociais “democráticos”, o que incluía, dessa vez, não só a socialdemocracia de base operária, mas também várias frações e segmentos da burguesia. Tal tendência interpretativa do fascismo consolidou-se após a Segunda Guerra Mundial, como esclareceu Ernesto Laclau no fim dos anos 1970:
“as frentes amplas preconizadas pelos Partidos Comunistas qualificaram de “fascista” as políticas potencialmente autoritárias do capital monopolista. Hoje em dia o termo “fascista” passou a ser sinônimo de “regime capitalista autoritário” no discurso político marxista; basta lembrar a aplicação do qualitativo “fascista” a regimes como o da Junta chilena, o da ditadura dos coronéis na Grécia, ou o regime do Xá no Irá que, obviamente, não tem a mais remota semelhança com os regimes de Hitler ou Mussolini.”[8]
Nos anos 1960 a geração estudantil revolucionária havia adotado o uso generalizado do termo “fascista” para se referir a toda sorte de regimes políticos existentes. Isso foi meio um espírito daquela época.[9] Por exemplo, a organização revolucionária guerrilheira Rote Armenn Fraktion (RAF) – mais conhecida pelo midiático termo Baader-Mainhof Gruppe – considerava “fascista” a Alemanha Federal de Adenauer. Como indicativo do que assinalou Laclau, numa consulta às fontes sobre os grupos de luta armada latino-americanos e dos Partidos Comunistas é comum encontrar o termo “fascismo” ou “fascista” para caracterizar as ditaduras militares dos anos 1960 e 1970, ainda que isso possa ser visto como apenas um recurso discursivo de denúncia do caráter terrorista daqueles regimes que mancharam de sangue o Cone Sul. Por sua vez, organizações de extrema-direita como a chilena Patria y Liberdad são usualmente consideradas fascistas, o que nos parece correto, embora considerar o regime militar de Pinochet (que o Patria y Liberdad apoiava) como “fascista” seja de fato um equívoco. Tal como as outras ditaduras militares existentes naquela época no Brasil e na Argentina, no Chile a ditadura foi sobretudo anti-mobilizadora, faltando-lhes, portanto, uma característica marcante presente nos regimes liderados por Mussolini e Hitler no entreguerras.
Fora do marxismo, num diálogo tenso e crítico com este, Foucault adotou um tom deveras frouxo em seu prefácio ao livro Anti-Édipo de Deleuze e Guattari (1972), ao querer encontrar o fenômeno do fascismo nas atitudes cotidianas dos “sujeitos” sociais, Foucault mirou particularmente a prática da militância revolucionária.[10] Num diálogo instigante com as ideias de Marx e do antológico trabalho de Wilhelm Reich Psicologia de massas do fascismo, Deleuze e Guattari lançam mão da sugestiva pergunta reicheana (“Porque as massas alemãs desejaram o fascismo?”), para igualmente estender a existência do fenômeno aos mais prosaicos atos cotidianos. No final da década anterior, e de um ponto de vista mais à direita, Jürgen Habermas acusou o líder revolucionário estudantil Rudi Dutschke de ser um “fascista de esquerda”, e imagino que Dutschke deva ter-lhe retrucado na mesma moeda, chamando Habermas de “fascista” tout court.
Em suma, não é de hoje esse uso generalizado do termo “fascista” para se referir aos opositores políticos da esquerda, e nesse caso deveria ser um truísmo afirmar que se chamamos tudo de “fascista” esse termo perde sua força explicativa. Se é para de fato levarmos o fascismo a sério, esse caminho generalizante não ajuda.
Desde as Jornadas de Junho de 2013, no âmbito da esquerda mais uma vez o uso do termo fascista é abusivamente adotado para se referir, por exemplo, aos governos estaduais, à instituição Polícia Militar e mesmo ao governo federal. E como não lembrar do infeliz comentário da filósofa Marilena Chaui, diante de uma platéia da Academia da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro em fins de agosto de 2013 quando caracterizou os “Black blocs” como “inspirados no fascismo”?[11] Bolsonaro indiscutivelmente é um fascista, mas quando também chamamos Aécio Neves, Marina Silva, Michel Temer e até Lula da Silva de “fascistas”, para que isso nos serve? Afinal, estamos falando do quê?
Não se trata de “defender as biografias” dessas figuras da República, mas de nos situar que o termo “fascista” não os define politicamente. Não parece também serem propriamente “fascistas” alguns dos novos movimentos das direitas brasileiras, como o “Vem Pra Rua” e o “Movimento Brasil Livre”. O que quero dizer? Quero dizer que, seguindo Konder, é preciso pensar que o fascismo é uma direita bastante específica. Na história do século XX, exceto nos casos clássicos da Itália de Mussolini e da Alemanha de Hitler onde constituíram regimes políticos, os fascistas participaram do poder ao lado de outras direitas, como na Espanha de Franco e em Portugal de Salazar, assim como é possível perceber a presença de grupos propriamente fascistas participando do poder em outras experiências, ou apenas exercendo funções subalternas, como nas ditaduras militares latino-americanas dos anos 1960/1980, como acabamos de nos referir.
Hoje há sim um crescimento de grupos fascistas, do discurso propriamente fascista na esfera pública e mesmo a emergência de personalidades políticas que podemos definir como fascistas. Não é um fenômeno brasileiro, pois se observa esse crescimento na Europa e em outras latitudes. Historicamente, no Brasil, o fascismo serviu às classes dominantes como tropa de choque para tentar liquidar física e politicamente com a esquerda, como o foi o caso da Ação Integralista Brasileira (AIB) nos anos 1930. Grupos como o Movimento Anti-Comunista (MAC), que operava já antes do golpe de 1964, assim como Comando de Caça aos Comunistas (CCC) no fim dos 1960 podem ser caracterizados como organizações de viés fascista, embora não tenham, ao contrário do Integralismo, produzido uma ideologia fascista com o propósito de criar uma mobilização social.
O crescimento eleitoral do Front National de Marine Le Pen na França é um sinal evidente do crescimento desta tendência. O fascismo está cada vez mais presente na Alemanha, e nas eleições recentes na Áustria alcançou quase 50% dos votos.[12] Em regiões que no passado viveram a experiência traumática da ocupação nazista, como é o caso da Grécia, o aumento da votação em partidos fascistas como Aurora Dourada parece momentaneamente bloqueado na preferência do eleitorado. E como não lembrar da aparição de grupos identificados explicitamente com o nazismo na conturbada Ucrânia? E como definir a ação do terrorista norueguês Anders Breivik, que executou 77 pessoas em julho de 2011 num ataque sanguinário ao acampamento da juventude do Partido Trabalhista, um atentado cometido após Breivik ter divulgado um manifesto onde definia como ameaças ao Ocidente o “marxismo cultural”, o feminismo e o Islã?[13] Como não lembrar também do discurso de algumas das estrelas da nova direita brasileira, como Olavo de Carvalho e sua plêiade de seguidores? E como classificar a natureza política de um fenômeno como o ISIS? O termo fascista parece bastante adequado nesses casos, exceto talvez para aqueles sensíveis à culpa inerente a algumas perspectivas teóricas da moda, para as quais nenhuma categoria “européia” teria capacidade heurística no mundo não-Ocidental.[14] Longe desse beco-sem-saída-epistemológico ficamos melhor para combater o fascismo.
Indo ao ponto. Qual deve ser a principal atenção que devemos dar a esse fenômeno? O que tem sido bastante evidente é que a emergência recente do fascismo (ou neofascismo, como se queira) produz um efeito imediato que é o deslocar o eixo do debate político para a direita, eventualmente forçando a que as posições políticas da direita tradicional comprometida com a agenda neoliberal endureça suas posições de modo a disputar aqueles setores fascistizantes do eleitorado. Não tem sido incomum a incorporação da agenda anti-imigrantes, tipicamente fascista, no programa de partidos da direita liberal e ou conservadora europeia, e mesmo nas alas mais moderadas da socialdemocracia (já entregue, há muito, ao neoliberalismo na variante social-liberal) observa-se essa incorporação. Se o fascismo pode novamente chegar ao poder, assumir o governo pelas vias legais (como foram os casos clássicos de 1922 e 1933) e estabelecer novas formas de ditadura, só o tempo dirá. Para o que nos interessa imediatamente no Brasil, embora seja evidente a existência de uma onda conservadora, o fascismo ainda ocupa um percentual inferior desta. Mas como recomendavam os velhos comunistas, é bom dormir com um dos olhos aberto.
Artigo de Demian Melo publicado originalmente no Blog Junho
Notas
[1] KONDER, Leandro. Introdução ao fascismo. Rio de Janeiro: Graal, 1977.
[2] PAXTON, Robert O. A anatomia do fascismo. São Paulo: Paz e Terra, 2007.
[3] Sobre esse ponto, vale bastante assistir o documentário Fascismo S. A. https://www.youtube.com/watch?v=K80XYjF3lHE
[4] Um crítico cultural indiano é certeiro quando afirma: “Certamente, é verdade que Gramsci disse muitas coisas mordazes sobre a democracia parlamentar e sobre o “Ocidente”; também é verdade que seu interesse pela linguística histórica, pelo teatro, pelo folclore e pela literatura popular, e por figuras culturalmente hegemônicas, como Maquiavel, Dante e Croce, foi de fato extenso. Mas o ponto crítico da obra reside, creio, em outra parte – e reside exatamente naquela coisa que é sempre reconhecida como a condição de sua prisão mas é sempre deslocada como a cavilha de roda de suas reflexões –, a saber, no fascismo.” AHMAD, Aijaz. Fascismo e cultural nacional: lendo Gramsci nos tempos da Hindutva. In. Linhagens do presente. São Paulo: Boitempo, 2002, p.261. Ver também: ADAMSON, Walter. Gramsci’s interpretation of Fascism. Journal of the History of Ideas, vol. 41, n.4, pp.615-633, out-dez, 1980.
[5] As mais relevantes contribuições de Leon Trotsky, por exemplo, foram produzidas naquele contexto. Ver. TROTSKY, Leon. Revolução e Contrarrevolução na Alemanha. Lisboa; Porto; Luanda: Centro do Livro Brasileiro, s.d.
[6] MANDEL, Ernest. Sobre o fascismo. Lisboa: Antídoto, 1976, p.44. Ver também, CLAUDIN, Fernando. A crise do movimento comunista. Vol.1. São Paulo: Global, 1985, p.143-147.
[7] Curiosamente, o stalinismo difundiu a lenda de que para Trotsky o fascismo seria uma variante do fenômeno do bonapartismo, teoria na verdade defendida por outro dissidente do comunismo sovietizado, o alemão August Thalheimer. Cf. THALHEIMER, August. Salvador: Centro de Estudos Victor Meyer, 2009.
[8] LACLAU, Ernesto. Política e Ideologia na Teoria Marxista. Capitalismo, Fascismo e Populismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979 [1977], p.94.
[9] Cf. JAMESON, Frederic. Periodizando os anos 60. In. HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.). Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1993, p.96.
: uma introdução à vida não-fascista. Disponível em http://bit.ly/20CMZtu
, 27/08/2013. Disponível em http://bit.ly/27SKzN2
[12] Nas eleições de maio de 2016 o candidato Norbert Hofer do Partido da Liberdade (FPÖ na sigla em alemão) obteve 49,7% dos votos, perdendo por pouco para o candidato à esquerda (independente/verde) Alexander Van der Bellen (50,3).
. Londres, 2011. Disponível em http://bit.ly/1TXazg8
[14] Uma crítica marxista consistente às teorias pós-coloniais que defendem tal ponto de vista pode ser lida em CHIBBER, Vivek. Postcolonial theory and the specter of capital. Londres/Nova York: Verso, 2013.