Ainda os 80 anos da IV Internacional

 

David North, WSWS, Comité Internacional da QI.

Relatório apresentado inicialmente numa reunião em 2008 no Michigan, em vésperas da eleição de Obama. Publicado originalmente no site World Socialist Web Site.

Tradução e adaptação de José Oliveira, Lisboa.

 

A 3/Set./1938 a Quarta Internacional (QI) foi fundada num congresso em Paris, realizado em apenas um dia, devido às circunstâncias clandestinas em que ocorria, no contexto da permanente perseguição ao movimento trotskista levada a cabo pelo estado burguês da França, pelos assassinos armados e sempre impunes dos grupos fascistas, e sobretudo pela polícia política soviética, encarregada por Estaline de eliminar Trotsky e os seus colaboradores.

O relator iniciou os trabalhos com a denúncia de mais um assassínio, o de Rudolf Klement, sec. geral da QI. Foi a 4ª figura mais importante do movimento a ser eliminada nos dois anos anteriores. Os outros foram Ewin Wolf em 1937 em Espanha, Ignace Reis em 1937 na Suíça e Leon Sedov, filho de Trotsky em 1938 em Paris. O que o relator não sabia é que Mark Zborovski, também agente da GPU (polícia política russa) e que teve papel central em todas essas execuções, esteve presente no congresso em representação da Rússia.

Estes assassínios, juntamente com os julgamentos-fantoche realizados em Moscovo, faziam parte da campanha de Estaline para destruir Trotsky, o trotskismo (e toda a oposição interna, real ou imaginária).

Historiadores como Dmitri Volkogonov, embora hostil a Trotsky, reconhecem o ódio de Estaline para com ele:

“Estaline continuou a odiar Trotsky, apesar de já não estar presente. Tinha um carácter muito diferente. O seu estatuto intelectual, a sua capacidade de organização e o seu talento de orador e escritor davam-lhe uma superioridade clara face aos burocratas e ao próprio Estaline. Este queixava-se junto do seu círculo mais próximo que um dos maiores erros da sua vida tinha sido o facto de deixar escapar Trotsky entre os dedos. Esse ódio ainda cresceu mais depois de ler “A escola estalinista da falsificação”, “Carta aberta aos membros do Partido Bolchevique”, “O Thermidor estalinista” e a “Revolução traída”. Tudo isso contribuiu para fortalecer a decisão de Estaline de remover Trotsky do caminho e em liquidar todos os seus potenciais inimigos internos”.

Trotsky compreendeu muito bem a escala dos perigos que ele e os seus seguidores tinham pela frente e declarou em 1938:

“Os carrascos, na sua estupidez e cinismo, pensam que podem meter-nos medo. Estão errados. Com os golpes, nós tornamo-nos mais fortes. As políticas bestiais de Estaline são actos de desespero. É possível liquidar alguns soldados do nosso exército, mas isso não nos mete medo”.

As origens da QI radicam na luta iniciada por Trotsky e pela oposição de esquerda em 1923, contra a crescente burocratização do estado soviético e do partido. Essa luta começou até antes do surgimento em cena de Estaline. Para Trotsky, a ascensão de Estaline não foi a causa da degeneração do estado e do partido, mas antes uma manifestação política do fortalecimento da reacção política no seio da URSS, em resultado das derrotas sofridas pela classe trabalhadora internacional, após a revolução de Outubro. Para Lenine e Trotsky, o destino do socialismo na Rússia dependia da vitória da revolução socialista internacional. A ideia de que o socialismo se poderia desenvolver apenas na Rússia, um país isolado e atrasado economicamente, era incompatível com as premissas mais básicas da teoria marxista.

Mas essa ideia era bem reveladora da orientação essencialmente nacionalista da perspectiva e do programa da burocracia reinante na Rússia. Essa burocracia liderada por Estaline entendia o socialismo como um regime marcado pela autarcia económica nacionalista que salvaguardasse os rendimentos e privilégios de que gozava, na base do seu controle dos meios de produção. As perseguições a Trotsky e a toda a oposição de esquerda caminhavam a par com a falsificação e o distanciamento das fundações marxistas internacionalistas do partido Bolchevique. O regime estalinista passou a subordinar os interesses do movimento revolucionário internacional às necessidades da sua burocracia.

O resultado da traição ao programa da revolução socialista internacional está na origem de uma série de derrotas do movimento em Inglaterra em 1926, na China em 1927 e mais desastrosamente na Alemanha em 1933. A catastrófica orientação de Estaline para o PC alemão levou à ascensão de Hitler em 1933, evento que está na origem da II Guerra e dos milhões de mortes e destruição que causou.

Com a entrada de Hitler, Trotsky e a oposição de esquerda alteraram a sua política, até aí orientada para a reforma do partido da União Soviética e a 3ª Internacional.  Agora, Trotsky apela à criação de uma QI e a uma revolução política na URSS, tendo definido a burocracia estalinista como uma agência do imperialismo no seio do movimento dos trabalhadores.

Os anos entre 1933 e 1938 foram dedicados à preparação teórica e política do congresso de fundação da QI. Trotsky avaliou este seu trabalho como o mais importante da sua vida, mais ainda que o seu papel na Revolução de Outubro.

Nesta altura, pelos anos 30, não havia mais ninguém com a capacidade necessária para construir novos quadros de revolucionários e preservar a continuidade do movimento. Logo, Trotsky reconheceu que, naquele momento era indispensável. Não se trata apenas do seu génio. Seria insuficiente. Há três elementos da sua personalidade política que é preciso sublinhar.

1 – Trotsky era o último representante do marxismo clássico, ou seja, o expoente de uma escola de pensamento que já vinha de Marx e Engels e que inspirava as massas trabalhadoras revolucionárias. Trotsky protagoniza uma concepção da teoria revolucionária enraizada filosoficamente no materialismo histórico, dirigida para a cognição da realidade objectiva, orientada para a educação e mobilização política das massas trabalhadoras e estrategicamente preocupada com a luta revolucionária contra o capitalismo.

2 – Trotsky compreendeu mais profundamente que qualquer outro pensador político do séc. XX as dimensões globais e as dinâmicas da revolução socialista, a interacção dialética dos processos socioeconómicos internacionais e as condições nacionais historicamente determinadas. Esta compreensão expressou-se na teoria da revolução permanente, formulada por Trotsky pela primeira vez em 1905, para enfrentar os problemas específicos gerados pelo confronto entre as tradicionais táticas burguesas e as lutas dos trabalhadores num país atrasado.

3 – Trotsky assimilou as lições essenciais da luta de Lenine contra os mencheviques centristas. Tendo tido disputas com Lenine sobre princípios políticos nesse período formativo crucial, Trotsky compreendeu e apreciou a extraordinária capacidade de Lenine em opor-se a todas as formas de oportunismo no partido SD russo e mais tarde, aquando da guerra imperialista de 1914. As lições tiradas por Trotsky dessa sua experiência histórica constituem as bases para a fundação da QI.

A contribuição teórica de Trotsky tem sido frequentemente minimizada, no contexto da predominância de escolas de pensamento mais ou menos ligadas a correntes idealistas. É o próprio Trotsky que explica assim a abordagem do materialismo científico de Marx:

“O Homem, tendo estabelecido a ciência como o conhecimento dos factos objectivos da natureza, tem tentado estúpida e persistentemente excluir-se a si próprio da ciência, reservando para si privilégios especiais quer na forma de relações com o Transcendente (religiões) quer em preceitos morais (Idealismo). Marx despiu o homem desses privilégios definitivamente, encarando-o como uma ligação natural no processo evolutivo da natureza material. É completamente impossível procurar as causas das ocorrências da sociedade capitalista na consciência subjectiva – intenções ou planos dos seus membros. Essas ocorrências objectivas foram formuladas antes de a ciência começar a pensar seriamente nelas. Hoje, a maioria dos homens nada sabe sobre as leis que governam a economia capitalista. A força do método marxista reside na sua abordagem dos fenómenos económicos, não do ponto de vista subjectivo, mas do ponto de vista objectivo do desenvolvimento da sociedade como um todo, justamente da mesma maneira como um cientista aborda o estudo de uma colmeia. Para a ciência económica, o ponto decisivo é como as pessoas actuam e não o que elas pensam sobre as suas acções. O método marxista é materialista porque procede da existência para a consciência, não o oposto. O seu método é dialético porque olha tanto para a natureza como para a sociedade na sua evolução e concebe-a como resultado constante das forças que se conflituam”.

Assim, a aplicação do método marxista requer que a política revolucionária se baseie primeiro e antes de tudo numa análise das condições socioeconómicas objectivas. O partido revolucionário tem de basear-se não nos humores e ilusões das massas, mas sim na realidade das contradições socioeconómicas do capitalismo. O partido revolucionário só pode superar essas ilusões se combater no seio da classe trabalhadora para corrigir a compreensão da crise capitalista e das suas implicações políticas.

Trotsky exprimiu assim os objectivos do programa revolucionário:

“O atraso de consciência da classe trabalhadora americana é muito grande. Mas o programa deve reflectir a sociedade como ela é e não esse atraso. Trata-se de um instrumento para vencer e superar  o referido atraso. Por isso, deve expressar a total agudeza das crises da sociedade capitalista. Não podemos modificar as condições objectivas que não dependem de nós, mas devemos expressar a situação tal como ela é. É essa a tarefa do programa”.

Em 1939, Trotsky também escreveu:

“Reformas parciais e remendos nada resolvem. O desenvolvimento histórico chegou a um ponto em que só a directa intervenção das massas pode afastar as obstruções reacionárias e estabelecer um novo regime. A abolição da propriedade privada dos meios de produção é o primeiro pré-requisito para uma economia planificada, isto é, para a introdução do racionalismo na esfera das relações humanas, primeiro à escala nacional e depois à escala global. A Humanidade libertada alcançará o seu potencial”.

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