Artigo de Paulo Aguena, de São Paulo, publicado no Esquerda Online.
Há exatos 80 anos, em 03 de setembro de 1938, “em algum lugar da Suíça”, – na verdade na casa de Alfred Rosmer (1), nos arredores de Paris -, na mais absoluta clandestinidade, foi fundada a IV Internacional.
Nessa pequena reunião que passaria para a história, participaram 30 delegados de dez seções (URSS, Grã-Bretanha, França, Alemanha, Polônia, Itália, Grécia, Holanda, Bélgica e EUA), além de um delegado representando a América Latina (o brasileiro Mário Pedrosa). Aderiram, sem poder enviar representantes, as seções da Espanha, Tchecoslováquia, Áustria, Indochina, China, Marrocos Francês, União Sul-Africana, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Dinamarca, Noruega, Palestina, Lituânia, Romênia, além de várias organizações da américa Latina e outras. Por questão de segurança, Trotski não participou da reunião. Enviou um discurso gravado (2) saudando a fundação da IV Internacional.
A conferência que durou apenas um dia – considerada como I Congresso da IV Internacional – aprovou seus documentos fundacionais: o programa da nova internacional sob o título “A agonia mortal do capitalismo e as tarefas da IV Internacional” – conhecido como “Programa de Transição” -, os estatutos, um manifesto contra a guerra imperialista e a saudação de Trotski.
A derrota da revolução selou o destino da III Internacional
Após a derrota da Oposição Unificada no XV Congresso do PCUS em 1927, Trotski e Zinoviev foram expulsos do partido junto com 8.000 oposicionistas. Em 1928, Trotski é exilado em Alma-Ata, no Cazaquistão. Em fins de 1928 é banido da Rússia. Ao chegar no primeiro exilio no exterior na ilha de Prinkipo, na Turquia, no início de 1929, ele imediatamente procurou estabelecer contatos através de cartas visando organizar uma oposição à direção da III Internacional.
Em abril de 1930, em Paris, conseguiu conformar a Oposição de Esquerda Internacional. O objetivo era ainda lutar para reformar a Internacional Comunista. “Só uma imensa catástrofe histórica”, dizia Trotski, “poderia provocar a morte da III Internacional” colocando na ordem do dia a necessidade de fundar uma nova internacional.
Essa catástrofe, todavia, logo ocorreu com a derrota da revolução alemã. O PC Alemão ao se negar a constituir a frente única com a socialdemocracia para enfrentar o nazismo, terminaria traindo a revolução alemã facilitando a ascensão de Hitler. Em março de 1933, logo após Hitler obter plenos poderes, Trotski publicou um artigo dando por morto o PC alemão. Assim, abandonou a estratégia de reformá-lo e chamou a formação de um novo partido revolucionário na Alemanha. Ele explicou esta mudança dizendo: “Assim como o doutor nunca abandona o paciente que tem um sopro de vida, tivemos como tarefa a reforma do PCA, na medida em que ainda existia uma mínima esperança. Mas agora seria um erro continuar atado a um cadáver” . (3)
Ainda que o perigo do fascismo não conseguisse despertar o Partido Comunista alemão para os erros cometidos, Trotski esperava uma possível reação da Internacional Comunista. Entretanto, em 7 de abril de 1933, a resolução da Executiva da IC afirmava que “A linha política do CC do PCA, com Thaelmann à cabeça, foi completamente correta, antes e depois do Estado de Hitler”. (4) Com isso Trotski concluiu que a III Internacional estava assinando seu atestado de óbito enquanto internacional revolucionária. O stalinismo havia conseguido destruir o partido bolchevique e a Internacional comunista. Era necessário reconstruir o que fora perdido. O período de lutar por reformas do PCUS e da IC tinha ficado definitivamente para trás.
Com vistas a fundar uma nova Internacional, em agosto de 1933, foi realizado um Pleno da Oposição de Esquerda Internacional. Ele aprovou as últimas modificações num projeto de programa de 11 pontos que havia sido elaborado por Trotski e que chamava a criar uma nova internacional e novos partidos comunistas. (5) Para expressar essa mudança, a Oposição de Esquerda Internacional mudou seu nome para Liga Comunista Internacionalista (LCI-Bolcheviques-Leninistas). (6)
A fundação da IV: momento de retrocesso, perseguição e extermínio
Trotski queria que a IV Internacional fosse fundada na Conferência Internacional realizada em julho de 1936. Nesse momento, o stalinismo, após abandonar sua orientação esquerdista que levou a derrota na Alemanha, estrangulava a revolução na França e na Espanha através da Frente Popular, uma orientação política oportunista de conciliação com a burguesia e o imperialismo, aprovada pela Internacional Comunista no VII Congresso, realizado em 1935.
Entretanto, debates internos sobre a conveniência de fundar ou não a IV Internacional levara ao seu adiamento, aprovando no lugar a constituição do Movimento pela IV Internacional. Uma conferência de fundação seria realizada em outubro de 1937, mas as dificuldades geradas pelas circunstâncias não permitiram que ela se desse. Ela acabou ocorrendo somente em setembro de 1938, quando então um novo adiamento já era incontornável, apesar de seguir os argumentos em contrário, incluindo o historiador Isaac Deutscher.
As condições de fundação da IV Internacional revelavam o momento histórico em que ocorreu. Ao longo da década de 30 o movimento operário na Europa tinha vivido derrotas terríveis na Alemanha, na Áustria, França, Espanha e, na Itália, Mussolini ainda se mantinha no poder. O movimento operário estava, portanto, no auge de seu retrocesso. Além disso, era iminente o estalar da Segunda Guerra Mundial.
O stalinismo, diretamente responsável pela derrota na Alemanha e Espanha, somava à sua política contrarrevolucionária e de conciliação, a mais implacável perseguição a qualquer vestígio de oposição. Pouco antes da fundação da IV havia sido concluído os “processos de Moscou”, a gigantesca farsa jurídica através da qual Stalin acabou de exterminar a oposição na URSS. (7) Nesse período a burocracia stalinista intensificou a repressão lançando o “Grande Terror”. Do expurgo passou-se às prisões e dessa às execuções. Não menos que 20.000 a 30.000 trotskistas soviéticos e centenas de milhares, chegando a milhões, de oposicionistas foram mortos.
Na medida em que avançavam os preparativos para a fundação da IV, o cerco se intensificou. No período prévio à fundação, em agosto de 1937, assassinaram na Espanha Erwin Wolf (Nicole), o secretário de Trotski na Noruega. (8) Pouco depois foi assassinado na Suíça Ignaz Reiss, (9) membro da GPU que rompeu com o stalinismo e anunciou sua adesão com a IV. Em fevereiro de 1938, foi assassinado em Paris, León Sedov (10) , filho e principal colaborador de Trotski, responsável pelo Boletim da Oposição (Bolletin Oppositsi) e pelo Secretariado Internacional (SI). Por fim, dois meses antes da fundação, foi assassinado, também em Paris, o novo secretário do SI e responsável pela preparação da Conferência, Rudolf Klement. (11) Muitos dos informes e documentos preparatórios desapareceram com seu sequestro.
O debate sobre a fundação da IV Internacional
Os argumentos em contrário à fundação da IV se apoiavam na situação mundial desfavorável e na debilidade das forças quartistas. Entretanto, subjetivamente, já em 1936, as condições eram de extrema debilidade e a situação não foi amenizada desde então. Pelo contrário, elas pioraram e tendiam a piorar ainda mais. Na verdade, Trotski já trabalhava com a possibilidade de que ele também poderia ser eliminado pelo stalinismo, o que viria a ocorrer dois anos depois, na Cidade do México. Desde o ponto de vista objetivo ele considerava que a aproximação da Segunda Guerra era o fator determinante para a fundação da IV. Somente uma internacional poderia resistir às pressões da guerra imperialista que nos anos seguintes viria produzir a maior carnificina da história deixando em torno de 6 milhões de mortos, com os seus desdobramentos convulsivos na luta de classes.
Assim, a fundação da IV obedecia a objetivos defensivos e, ao mesmo tempo, ofensivos. Por um lado, pretendia unir os marxistas revolucionários em torno a um programa que sintetizasse toda a aprendizagem do movimento marxista mundial desde o Manifesto Comunista e, especialmente, a formação do partido bolchevique e o triunfo da revolução russa. Somente uma firme organização internacional poderia preservar essas conquistas dos ataques do stalinismo e dos demais aparatos contrarrevolucionários que tentavam apagá-las da memória histórica dos trabalhadores e sua vanguarda. Tinha também como objetivo defender a URSS ante a ameaça crescente do nazismo. Por outro lado, tinha o objetivo ofensivo de preparar os marxistas revolucionários do mundo para o inevitável ascenso que se abriria como a partir da guerra imperialista.
O significado do acerto da fundação da IV Internacional
Em que pese a grande debilidade das forças que fundaram a IV Internacional, o erro do prognóstico de que a guerra abriria as condições para que a “IV fosse uma força revolucionária decisiva no mundo”, e que a IV Internacional ainda hoje segue sendo numericamente muito débil, sua fundação foi um imenso acerto histórico. Caso ela não se desse corria-se o risco do trotsquismo, enquanto fio de continuidade do bolchevismo-leninismo, viesse a desaparecer. Os distintos grupos e organizações trotsquistas separados e isolados em cada país, sem um vínculo político e organizativo internacional, seguramente cairiam na dispersão e sucumbiriam sob a ofensiva do stalinismo e das forças imperialistas em meio à guerra.
Graças à fundação da IV Internacional foi possível manter grandes conquistas teóricas e programáticas do marxismo revolucionário acumulados pelo bolchevismo e a Internacional Comunista sob Lênin. A elas se somam as lições das experiências revolucionárias dos 20 e 30, incluindo a própria URSS.
Trotski foi um dos principais dirigentes da revolução russa ao lado de Lênin. Foi o principal responsável pela construção do Exército Vermelho. Estudou como ninguém os fatores que levaram à degeneração dessa que foi a primeira revolução proletária da história. Defendeu a necessidade de uma revolução política que tirasse a burocracia do poder trazendo de volta a democracia operária e poder aos soviets. Previu que a teoria da burocracia do “socialismo num só país”, contrária ao caráter internacional da revolução socialista, poderia levar à crise e a restauração do capitalismo na URSS, como de fato veio a ocorrer. Mas na sua opinião, a maior obra de sua vida foi ter fundado a IV Internacional. A ela devemos, por exemplo, a nossa própria existência. Viva a IV Internacional!
NOTAS
1 – Rosmer, Alfred (1877-1964). Sindicalista revolucionário francês, internacionalista durante a Primeira Guerra, momento em que se ligou politicamente a Trotsky, apoiou a revolução russa e a política dos bolcheviques. Representante dos comunistas franceses ante a Internacional Comunista em seus primeiros anos, foi membro da ala esquerda do PCF, sendo expulso em 1925. Participou da organização da corrente trotsquista na França, se retirando da vida política nos anos 30. Manteve-se para sempre suas simpatias política e amizade com Trotsky.
3 – Trotsky, Leon. “Partido comunista Alemão ou um novo partido? (I)”, 12 de março de 1933.
4 – Broué, Pierre. “O partido Bolchevique”. Editora Sundermann. São Paulo, 2014. Pág. 334.
5 – Alexander, Robert. “International Trotskysm – 1929-1985”. Pág. 256.
6 – Pathfinder Press, Documents of the Fourth International, The Formative Years (1933-40), Introdução dos editores, pg 8; Alexander, Robert. “International Trotskysm – 1929-1985”. Pág. 260.
7 – De 1936 a 1938, três grandes julgamentos foram realizados em Moscou, nos quais o papel de promotor foi representado pelo ex-menchevique Vishinsky, que se tornou ministro das Relações Exteriores após a guerra. As investigações iniciaram usando um fato concreto: o assassinato de Sergey Kirov (1934). No primeiro julgamento, os acusados (Zinoviev, Kamenev, I.N. Smirnov, etc.) “confessaram” ter tramado contra Stálin por ganância pelo poder. No segundo julgamento, os réus (entre os quais Piatakov e Iagoda, organizadores do primeiro julgamento) “confessaram” que eles e os acusados no julgamento anterior haviam conspirado para restabelecer o capitalismo na União Soviética. No terceiro julgamento, os acusados (Bukharin, Rakovsky, etc.) “confessaram” que todos eles, incluindo os executados após os julgamentos anteriores, haviam sido há muito tempo espiões a serviço da Gestapo (alemã), do Serviço de Inteligência (britânico), do Mikado japonês, etc. Além desses “julgamentos”, esse período viu a execução, também como conspiradores, dos chefes mais importantes do Exército Vermelho. (Tukhachevsky, Gamarnik, Putna, etc). Em todos esses julgamentos, os principais acusados foram Trotski e seu filho Leon Sedov. Trotski foi retratado como um agente contrarrevolucionário – desde há muito tempo.
8 – Wolf, Erwin (1902-1937): comunista checoslovaco, quando estudava em Berlim se uniu à Oposição de esquerda. Foi secretário de Trotski durante sua estadia na Noruega, em 1935. Desenvolveu uma grande atividade contra os processos de moscou, sobretudo na imprensa britânica. Em 1º de agosto de 1937 foi sequestrado em Barcelona pelos agentes da GPU. Nunca mais apareceu.
9 – Reiss, Ignaz (1899-1937): comunista polaco, membro do serviço de informação do Exército vermelho, logo responsável da GPU (polícia secreta soviética) na Europa ocidental, rompeu com o stalinismo, em julho de 1937, anunciando através de uma carta sua adesão à IV Internacional. Foi assassinado pela GPU na Suíça.
10 – Sedov, Léon (1906-1938). Militante da Kosomol, as juventudes comunistas soviéticas. Se uniu às filas da Oposição de Esquerda desde sua formação e foi responsável da “seção russa” da oposição de Esquerda internacional e do Boletim da Oposição (biulleten Oppozitsii). Em 1936 publicou “O livro vermelho” sobre os processos de Moscou. Foi assassinado em Paris por agentes da GPU.
11 – Klement, Rudolf (1910-1938). Militante do PC Alemão, se uniu à Oposição de Esquerda. Foi secretário de Trotski na Turquia e na França. Membro do Secretariado Internacional do movimento pela IV Internacional e do comitê de preparação da Conferencia de Fundação da IV Internacional, foi sequestrado e assassinado em paris pela GPU pouco antes da conferencia. Seu cadáver apareceu esquartejado no rio Sena.