Uma análise aos primeiros dois anos do Governo PS apoiado parlamentarmente por PCP, BE e Os VERDES.
CESCIMENTO ECONÓMICO COM BASE PRECÁRIA E MAL PAGA
O crescimento económico de 2017 situou-se nos 2,7%. É o melhor valor desde o ano 2000. De acordo com o INE, o fator que mais contribuiu para este crescimento foi o Investimento, nomeadamente, na construção, com um aumento de 9,2%. O consumo privado das famílias manteve a taxa de crescimento de 2016 (cerca de 2%). O consumo público, em 2017, permaneceu completamente estagnado. Já em 2016 se tinha verificado tal comportamento face a 2015. As exportações são praticamente anuladas pelas importações. Ainda assim, o que explica aquele aumento do investimento?
Existem alterações estruturais e factores conjunturais que contribuem favoravelmente para o crescimento do investimento em Portugal. É evidente que a “bazuca” do BCE permitiu criar uma conjuntura económica e financeira favorável, a nível internacional. É daí que o sector do turismo português, beneficiando da queda de outros destinos, se tem conseguido desenvolver, transformando Portugal numa montra para o mundo, arrastando consigo o investimento nos setores diretamente relacionados, como a construção, o imobiliário ou a restauração e acabando por animar também toda uma série de outros setores não diretamente relacionados, como a indústria transformadora.
Ainda que precisemos de tempo para perceber a influência exacta que estes fatores conjunturais estão a exercer sobre a estrutura do país, começa a ficar evidente que está a desenvolver-se uma economia ainda mais baseada em sectores com baixo potencial de crescimento produtivo, que requerem um baixo nível de qualificação e cujo valor acrescentado é, em geral, muito reduzido.
Por outro lado, existem já alterações estruturais consumadas que fornecem grande parte da explicação do crescimento actual: o novo nível de exploração da mão-de-obra através de um esmagamento dos direitos laborais cujo resultado é a precariedade generalizada e os baixos salários.
A reposição salarial na Função Pública foi concluída e o aumento do SMN atingiu o valor de €580, em 2018. Isto poderia levar-nos a concluir que os salários dos portugueses têm aumentado. Não nos precipitemos. A verdade é que os salários têm estagnado.
A PRECARIEDADE CONTRIBUI PARA ESTAGNAR OS SALÁRIOS
Continuamos a ter dos salários mais baixos da UE, problema que se tem vindo a consolidar nos últimos 2 anos do presente governo. Em Portugal, cerca de 21,6% (700 mil trabalhadores) da população empregada recebe o SMN, um aumento de 9,4%, face a 2016.Segundo um estudo do CES, o valor do salário bruto médio pago por contratos assinados depois de Outubro de 2013 é de €668. Um valor muito próximo do SMN.
O que se passa é que a precariedade herdada da Governação PSD/CDS-PP, não tendo sido revertida, continua a degradar as condições de contratação, puxando para baixo o nível salarial na sua generalidade. Tanto assim é que a diferença salarial entre os contratos permanentes e os contratos a prazo é cada vez menor. No entanto, o salário não é o único dos problemas do nosso mercado laboral.
Que emprego está a ser criado? Aquele mesmo estudo do CES, assinala que dos 3,3 milhões de contratos firmados desde Outubro de 2013, apenas se mantêm vigentes 1,1 milhões – cerca de um terço. Esta desproporção decorre da precariedade dos vínculos laborais. Para o demonstrar: 67% dos contratos, assinados depois de Outubro de 2013, são precários.
Portugal apresenta a terceira taxa mais elevada da UE de população precária. Em 2016, registámos 22,3% de população precária, face a uma média da UE de 14,2%. Quanto ao trabalho a tempo parcial, cerca de 400 mil trabalhadores tem aquele tipo de vínculo contratual. Os problemas do mercado de trabalho são ainda mais expressivos entre a juventude, o que terá graves implicações sobre a nova geração e o futuro da nossa sociedade. É oficial, a Troika e a austeridade não saíram do nosso mercado de trabalho.
É evidente que com o cumprimento do Programa de Governo do PS, mesmo com o alcance, em 2019, do SMN de €600, este continua a ser um salário miserável. Da parte do Governo PS, parece mesmo existir uma compreensão diferente daquela com que se comprometeu no seu próprio programa. A 14 de Março de 2018, o PS foi muito claro, tendo chumbado, ao lado de PSD e CDS-PP, as propostas da esquerda que propunha, mesmo que envergonhadamente, alguma reposição das leis laborais.
SALVAR A BANCA TEM SERVIDO PARA VENDER A SOBERANIA
Este é provavelmente dos temas que mais tem custado aos portugueses. O salvamento da banca nacional através de capitais públicos foi a gota de água que fez entrar a Troika em Portugal. Está na origem de fortes desequilíbrios orçamentais e, consequentemente, da monstruosidade da dívida pública portuguesa e de um pagamento anual de juros que equivale, por exemplo, ao nosso sistema nacional de educação.
Para além disso, os problemas que a banca nacional atravessa ditam que a soberania do país vá sendo entregue nas mãos de capitais estrangeiros.
Para compreender o problema da banca nacional e o plano que tem sido seguido é necessário termos presente que a crise mundial, iniciada em 2007, alterou a relação de forças entre vários elementos e setores da classe dominante. As falências em massa ditaram a queda de importantes setores da burguesia e o surgimento de novos setores para ocupar o seu lugar.
O mesmo é aplicável ao nível do sistema de Estados, a nível mundial. Assistimos a uma perda relativa de poderio económico e financeiro dos EUA e UE e a abertura de uma disputa entre estes velhos países dominantes e o surgimento dos possíveis novos, como a China. Isto determina alterações do papel dos países até então dominantes e dos países que vivem nas suas periferias, com relações de maior ou menor grau de dependência. Portugal é uma pequena economia, bastante dependente, da periferia da UE. A crise ditou que a manutenção da hegemonia alemã só poderia manter-se se o grau de dependência das economias que vivem na sua periferia fosse aprofundado. Esta não é condição suficiente mas é condição necessária.
Neste contexto e sabendo que a banca e o sistema financeiro de qualquer país desempenham um papel fundamental para a soberania nacional, pois têm a capacidade de contabilizar, gerir e determinar o plano de desenvolvimento de um país, foi precisamente este o sector que maiores alterações sofreu e sofre nos últimos anos. O sector financeiro português foi afastado de uma das suas grandes fontes de lucro, o mercado angolano, encurtado e vendido a capitais estrangeiros. Hoje temos um sector financeiro predominantemente nas mãos de capitais estrangeiros. O BCP é controlado por capitais chineses e angolanos. O BPI está nas mãos de capitais espanhóis. O Banif foi vendido, já pelo presente Governo, aos espanhóis do Santander Totta. O Novo Banco foi vendido, também pelo presente Governo PS, a capitais americanos. Não existiu qualquer plano, nem por este Governo nem pelos anteriores, para manter e desenvolver a banca no sector público do Estado.
Quanto à CGD, como sabemos, o Governo PS, sob a observação da UE, e um surpreendente acordo de BE e PCP, determinou que parte da capitalização da CGD fosse feita com o recurso a empréstimos obrigacionistas concedidos por entidades privadas.
Se antes da Troika tínhamos um sector financeiro, predominantemente, nas mãos de capitais nacionais, hoje, está quase completamente nas mãos de capitais estrangeiros. O que tem sido desenvolvido com o “generoso” patrocínio de capitais públicos. A fatura total da banca já deverá alcançar os €20.000 milhões. Só o Governo de António Costa já enterrou na banca cerca de €10.000 milhões: 4.000 milhões na recapitalização da CGD, €3.825 milhões em custos com o salvamento do Banif, €1.500 milhões de empréstimos e perdas com o Fundo de Resolução e €300 milhões com os lesados do BES. Mas pior que a intervenção pública na banca é esta servir constantemente para limpar os buracos financeiros, afetar os prejuízos às contas do Estado e acabar por vender as partes boas do sistema financeiro a estrangeiros, ainda para mais a preço de saldo.
Ora, a entrega do sistema financeiro português em mãos estrangeiras têm efeitos muito profundos sobre a economia de qualquer país. Determina que o poder político e soberano não consegue definir ou influenciar a forma como a economia do país se desenvolve, pois o sistema financeiro passa a estar dominado por interesses que lhe são alheios.
Por exemplo, Portugal precisa investir em mais e melhor indústria. Que banco em mãos de capitais estrangeiros quererá financiar tais projetos se isso não representar grandes taxas de lucro? Como é que o Governo PS pensa transformar a nossa indústria intensiva em mão de obra, mal paga e pouco produtiva em indústria que consiga tirar benefício da geração mais bem preparada de todos os tempos? Será apenas através da transformação de Portugal num importador de bens não transacionáveis e prestador de serviços, nomeadamente, turismo? Pode encher os olhos no imediato mas não nos parece viável a longo prazo. Olhemos para países dependentes, como os da América Latina, para a forma como as suas economias são controladas por interesses estrangeiros e o resultado sobre as condições de vida dos seus povos.
DESPESA PÚBLICA CONGELADA.
INVESTIMENTO PÚBLICO DELAPIDADO. FMI E BANCA ESTRANGEIRA AGRADECEM
Se dúvidas ainda houver quanto ao comportamento da despesa pública com serviços públicos, os valores do investimento público são ainda mais evidentes: pelo segundo ano consecutivo, o Governo PS corta profundamente no investimento público. Com a entrada em funções do Governo PS, o valor desceu de €4.084 milhões, em 2015, para €2.734, em 2016, e €3.224 milhões, em 2017, não atingindo o valor de 2015 e rompendo com as sucessivas promessas feitas já em 2 anos consecutivos.
Com o ambiente económico e financeiro tão favorável e o melhor crescimento dos últimos 18 anos, porque é que a despesa e o investimento públicos não aumentam? A verdade é que o investimento público que foi prometido para 2017 sendo atingido teria como consequência o aumento do “défice em 0,4 pontos percentuais, colocando-o acima dos 1,5% previstos inicialmente no OE/2017”. O mesmo raciocínio é aplicável ao aumento da despesa.
Uma vez que a prioridade é o pagamento da dívida pública e dos seus juros – recordamos que só em 2017 foram pagos adiantadamente, ao FMI, €10.000 milhões mais €7.000 milhões em juros à banca internacional. Para que estes pagamentos sejam feitos, outras despesas e investimentos terão de manter-se em valores da Troika. Não há página da austeridade que vire com as prioridades alinhadas precisamente com a manutenção dos níveis de austeridade da UE.
TRABALHADORES REFUGIAM-SE NO TRANSPORTE PRIVADO
No caso dos transportes, o Governo começou com a anulação da subconcessão dos transportes públicos de Lisboa e do Porto a privados, mas este último já foi novamente entregue à Barraqueiro. A privatização da ANA, da TAP ou com o conjunto de PPPs ainda se mantêm. Só com as PPPs rodoviárias o Governo gastou €1.181 milhões, em 2017, prevendo manter sensivelmente estes gastos em 2018. Por outro lado, é precisamente sobre os transportes públicos de Lisboa e Porto que o Governo chegou a acordo com o Santander Totta para a retirada das ações judiciais sobre os contratos swap vendidos pelo banco àquelas empresas, cumprindo com todos os seus requisitos.
É sabido que o desinvestimento foi grande no período da Troika mas não se consegue perceber exatamente se existiu alguma recuperação desse desinvestimento. O que sabemos é que a diminuição do desemprego e aumento exponencial do turismo fizeram aumentar as necessidades de mobilidade.
Este aumento de procura só tem sido acompanhado por um aumento dos preços, nos últimos 2 anos, sempre acima da inflação. Já a oferta e a qualidade dos serviços deixa muito a desejar. As empresas registam défice de oferta, défice de meios de transporte, frota fora de serviço, défice de profissionais, demasiados transbordos nos vários transportes, défice de manutenção dos meios materiais e infraestruturas, pondo em risco passageiros e trabalhadores, precariedade e baixos salários. Estes são problemas sentidos tanto nas grandes como nas pequenas cidades, até ao interior do país, em todos os tipos de transporte.
O insuficiente sistema de transportes públicos faz aumentar a utilização de automóvel particular, sobretudo nas grandes cidades, com efeitos nefastos sobre o ambiente e a saúde públicas.
EDUCAR BEM EXIGE INVESTIMENTO
Na Educação o cenário não é muito diferente. De acordo com os dados da execução orçamental, fornecidos pelo PORDATA, a despesa do Estado com a Educação alcançava €8.559 milhões, em 2010, antes da entrada da Troika em Portugal. Esta, com a ajuda do Governo PSD/CDS-PP, encurtou a despesa pública em cerca de €1.803 milhões, 21%.
Os dados da execução orçamental do ano de 2016, o primeiro ano da Governação PS com o apoio de BE e PCP, mostram que o patamar de despesa da Educação é sensivelmente o deixado pela Troika – cerca de €7.177 milhões, mais €421 milhões que deverão pertencer igualmente, em boa medida, à recuperação de rendimentos no Estado.
Os avanços existentes na Educação parecem ser, para além da reposição salarial, ainda mais tímidos que no sector da Saúde. Houve, de facto, uma redução do financiamento do Estado aos colégios privados. Foi decretado o fim da PACC para os professores e estabelecida a gratuitidade de manuais para o 1º ciclo. Foi previsto um investimento total, durante os 4 anos de legislatura, de €350 milhões em infraestruturas, cujo cumprimento é impossível avaliar. No entanto, o Governo PS faz depender a generalização da redução dos alunos por turma, para todas as escolas e anos letivos, do impacto orçamental que isso terá com a contratação de mais professores. Para além disso, a redução aprovada é muito curta, apenas 2 alunos turma. As deploráveis condições alimentares nas escolas têm sido reportadas pelos próprios alunos. Mantêm-se problemas com o amianto nas escolas. E o descongelamento das carreiras dos professores, deste 2011, ainda não avançou, pois o Governo PS propõe que sejam apenas descongelados 2 dos 9 anos, 4 meses e 2 dias em que as carreiras foram congeladas.
Para além de tudo isto, o regime fundacional das universidades mantém-se e aprofunda-se, criando as condições à empresarialização do ensino superior, colocando-o debaixo da alçada de interesses que são alheios ao interesse público, nomeadamente, o lucro privado, aumentando a precariedade de docentes e não-docentes, diminuindo os apoios sociais, diminuindo o papel de estudantes e funcionários nas próprias universidades e, abrindo portas à sua paulatina privatização completa.
Os rankings das escolas completam o cenário, transmitindo a ideia de que o ensino de qualidade tem de ser privado e que o ensino público está associado a maus resultados, más condições de aprendizagem e problemas sociais. Ideias completamente falsas.
SNS EM RUPTURA
De acordo com os dados da execução orçamental, fornecidos pelo PORDATA, em 2010, antes da entrada da Troika em Portugal, a despesa do Estado com o SNS alcançava €9.777 milhões. O Governo PSD/CDS-PP encurtou a despesa pública com o SNS para €8.518 milhões, em 2015. Ou seja, o SNS foi encurtado em cerca de €1.260 milhões, quase 13%.
Os dados da execução orçamental para o ano de 2016, o primeiro ano da Governação PS com o apoio de BE e PCP, mostram que o patamar de despesa do SNS é sensivelmente o deixado pela Troika – cerca de €8.812 milhões, apenas mais €290 milhões que deverão pertencer, em boa medida, à recuperação de rendimentos no Estado. É certo que houve alguns avanços através do alargamento de médicos de família (ainda não cumprido na totalidade), algum reforço de profissionais (a maior parte ainda em formação), um limitado investimento em infraestruturas, algum aumento nas comparticipações de medicamentos.
A despesa pública em saúde está mesmo entre as mais baixas da UE. Pode dizer-se que a austeridade se mantém mas hoje é feita através de um ardiloso esquema de cativações orçamentais.
Isto significa uma contínua degradação da prestação de serviços públicos de saúde, trabalhadores mal pagos, contratos precários, deploráveis meios materiais em muitos casos, desmesurados tempos de espera, difícil ingresso em consultas de especialidade, recorrentes infeções hospitalares, etc. Mas há mais: o recurso a trabalho temporário, nos serviços de urgências é recorrente; sobrelotação dos serviços, dificuldades de internamento, pressão para altas antecipadas, redução de exames de diagnóstico, falta de macas, constantes macas em corredores, falta de profissionais, falta de meios materiais, etc. Estes são os problemas amplamente sentidos no SNS.
Segundo um estudo de Eugénio Rosa, os cortes da Troika na despesa pública têm sido suportados pelo aumento das despesas das famílias com a saúde, o que não foi revertido pelo actual Governo. O Observatório Português dos Sistemas de Saúde, no seu Relatório de Primavera 2017 refere que: “em Portugal os mais pobres continuam a ter menor utilização de consultas de especialidade, nomeadamente em termos de saúde oral, saúde mental e medicamentos”.
Outra das consequências do sub-financiamento do SNS é uma crescente e consciente expansão dos serviços de saúde privados, seguros de saúde privados, PPPs assim como a empresarialização dos hospitais públicos. Esta é uma tendência em desenvolvimento já há vários anos que o presente Governo PS não alterou. Ou seja, o Estado encurta nas suas despesas com saúde no sector público, abre espaço para o surgimento de serviços privados no seu lugar e, como se não bastasse, acaba por ser o maior financiador dos serviços de saúde privados.
Publicado em Revista Ruptura 151, Abril|Maio|Junho 2018