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Encontros de Trump: o que menos interessou foi o caso da intervenção russa


Muitos têm pintado um Trump desmiolado, intempestivo, imprevisto, despropositado, impulsivo, irrefletido, dando a entender que a sua eleição foi um completo fruto do acaso. Esta é uma caracterização que sobrevaloriza o estilo e a forma da actual Administração dos EUA, concedendo muito pouca importância ao seu conteúdo. A verdade é que Trump não só não é fruto do acaso como tem uma estratégia delineada para responder às dificuldades que se impõem à maior economia do mundo.

Vivemos um período muito semelhante ao início do séc. XX, o período anterior à I e II Guerras Mundiais. Na altura, um período marcado pela perda e disputa da hegemonia imperialista, por parte do Reino Unido. Hoje, um período marcado pela perda e disputa da hegemonia imperialista, por parte dos EUA.

Neste momento, o desafio que está colocado aos EUA é a reconquista da capacidade produtiva e dos centros de acumulação de capital, deslocalizados, predominantemente, para a Ásia e América do Sul. Isto implica que os EUA têm de (i) manter a América do Sul sob o seu domínio quase exclusivo, onde se deve incluir o México; (ii) recuperar o domínio do Médio Oriente e Norte de África; e (iii) combater e destabilizar os seus principais concorrentes, nomeadamente, a China, a UE e, eventualmente, o Japão e o Canadá.

Este é o cenário que permite entender o encadeamento de acontecimentos e a estratégia, sob a designação de “America first”, seguida por Trump. Um dos últimos exemplos é o conjunto de encontros, com início na NATO, passagem pelo Reino Unido e finalização com Putin, na Finlândia, todos eles antagónicos entre si.

 

Reunião da NATO: aliviar o orçamento dos EUA, destabilizar a UE

Trump tem vindo a ameaçar os seus principais aliados militares com a possibilidade de abandonar a NATO. Segundo ele, os custos suportados pelos EUA com a NATO são muito elevados, quando comparados com o esforço financeiro das restantes potências imperialistas, pertencentes à NATO, nomeadamente, a Alemanha.

Após a reunião da NATO, Trump chegou mesmo a apelidar os seus principais aliados militares da UE como “um inimigo, devido ao que nos fazem no comércio”.

É um comportamento completamente inédito e aparentemente descompensado. No entanto, olhemos com mais cuidado. Trump conseguiu com que as principais potências da UE, cedessem ao compromisso de aumentar os seus orçamentos militares.

Este compromisso é vantajoso para os EUA em vários sentidos. Primeiramente, o aumento dos gastos militares por parte das restantes potências da NATO, alivia a pressão sobre o orçamento dos EUA. Depois, abre portas à indústria das armas dos EUA e, por fim, pressiona ainda os frágeis orçamentos dos vários Estados da UE, destabilizando-os financeira e politicamente.

 

Encontro com o Brexit de Theresa May: explorar fissuras para retirar benefícios

Com os aliados da NATO sob pressão, Trump seguiu para o Reino Unido, a braços com o Brexit.

Chegou ao Reino Unido a ameaçar que as actuais opções de Theresa May, no sentido de um Brexit-leve, fazem com que seja pouco provável um acordo comercial entre Londres e Washington, pois prevê-se que o Reino Unido mantenha fortes ligações económicas com a UE, mesmo após a formalização da saída do bloco comunitário.

À saída, Trump teceu ainda largos elogios a Boris Johnson, que acabou de se demitir do cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros, em rutura com o Brexit-leve, referindo que daria um excelente chefe de Governo, humilhando e desacreditando o actual Governo de Theresa May.

Como se não bastasse, Trump referiu ainda que não se sente bem em Londres e a culpa é do autarca da cidade, de origem muçulmana, tentando capitalizar o descontentamento existente através da ligação com o tema da imigração: “permitir que milhões e milhões de pessoas entrem na Europa é muito, muito triste. Acho que estão a perder a vossa cultura”.

Novamente, Trump identifica as fragilidades com a desagregação da UE e as fissuras dentro do próprio Governo britânico, ameaça com a ruptura das relações existentes, e faz questão de enfiar um pé de cabra naquelas fissuras para expor fragilidades e daí retirar os possíveis benefícios, nomeadamente, com um possível futuro governo mais alinhado com o Brexit-duro.

 

Encontro com Putin: antagonizar a UE e a NATO, destabilizar as potências do Atlântico Norte

A série de encontros terminou com Putin, onde é evidente uma espécie de aproximação.

Para limpar terreno, as declarações de Trump sobre a intervenção russa nas eleições dos EUA, em 2016, geraram muito alarido mediático mas talvez não sejam aquilo que tem mais importância, pois se Trump não caiu até agora com este escândalo será difícil que venha a cair. Trump já substituiu os seus principais conselheiros e a direcção do FBI por causa deste assunto e manteve-se no seu lugar. De qualquer forma, é esta ponta solta que os Democratas e os Republicanos descontentes vão pegando, potenciando a sua mediatização, para ir desgastando a Administração Trump.

Passando aos temas relevantes, a declaração de Trump de que “os EUA e a Rússia são duas grandes potências nucleares, sem paralelo, repartindo entre si 90% do armamento nuclear do mundo”, quer exatamente dizer que, os interesses comuns entre os EUA e a Rússia, neste momento, se devem sobrepor às divergências. Questões como a Crimeia, o apoio russo ao Irão, o apoio russo ao Governo de Bashar Al-Assad ou o reforço militar americano ao Governo ucraniano foram assumidos como discórdias, mas secundarizados face aos interesses comuns.

Existem várias frentes em que os objetivos de Trump e Putin são coincidentes, começando desde logo, no que diz respeito à instabilidade da NATO e da UE. Segundo a concepção de cada um dos dois, quanto maior for a instabilidade nas potências do Atlântico Norte, melhor, pois pode abrir boas oportunidades a nível comercial e militar.

No que diz respeito ao Médio Oriente e Norte de África, nem os EUA, nem a Rússia querem entrar numa guerra directa e aberta entre si. Então, estando o movimento revolucionário derrotado, é muito provável que este encontro tenha servido para avançar nas negociações bilaterias dos interesses dos EUA e da Rússia naquela região, quanto mais não seja, terão começado a apalavrar a defesa dos interesses de Israel, apoiado pelos EUA, em contraponto à defesa dos interesses do Governo Assad, apoiado pela Rússia, negociando zonas de interesse e de controlo sob cada uma das potências.

Para além disso, Trump não pode deixar a Rússia à mercê da China, pelo que mais vale manter alguma concertação de interesses comuns com a Rússia que abrir espaço à consolidação de um bloco entre a Rússia e a China.

 

Qual a leitura política destes encontros?

A Administração Trump tem uma estratégia consciente para recuperar a sua antiga posição hegemónica no mundo. Atualmente, as dificuldades e instabilidade impostas pela crise mundial impõem que a recuperação dos EUA implique uma perda de poder por parte dos seus concorrentes diretos, nomeadamente, a China, a UE, Japão, ou a Rússia, Irão e Coreia do Norte, a nível regional.

Deste enquadramento, Trump vai tirando partido da sua relação de domínio, ainda existente, para substituir muitos dos velhos acordos multilaterais, com os mais diversos Estados e blocos comerciais, por uma multiplicidade de negociações bilaterais, isolando cada um dos seus concorrentes à mesa das negociações. Esta é a forma que, atualmente, os EUA melhor conseguem assegurar a defesa dos seus interesses.

Para além das negociações bilaterais, Trump faz ainda questão de não desperdiçar nenhuma manobra ou tática ao seu dispor. Cria ou explora as, já existentes, fragilidades dos seus inimigos comerciais ou militares. Utiliza os inimigos dos seus inimigos como sendo seus amigos, quando lhe é conveniente.

Daí que Trump se vá desdobrando em aproximações e afastamentos sucessivos, com os mais variados países, parecendo um movimento errático, mas com os quais vai satisfazendo os seus interesses imediatos em função da estratégia de recuperação hegemónica.

No presente conjunto de encontros, Trump veio, sobretudo, aproveitar-se dos elementos de crise e instabilidade na UE e na NATO, ou seja, nas potências imperialistas suas concorrentes, expor as suas fragilidades e acirrar disputas. Lançada a instabilidade na NATO e UE, Trump demonstrou a possibilidade de conjugação dos seus interesses com os de Putin e abriu negociações sobre o Médio Oriente, conjugando e negociando interesses com a Rússia também naquela região. Por fim, acabou ainda por disputar espaço de influência da China sobre a Rússia.

Não é por acaso que já depois do encontro com Putin, Trump tenha nomeada especificamente a Alemanha, ou seja, a “direção” da UE, como “inimiga”, pois tem com a Alemanha um dos piores défices comerciais. Expôs as fragilidades e contradições alemãs, nomeadamente, a sua dependência energética face à Rússia, país considerado como a maior ameaça à segurança europeia. E acabou por ameaçar a maior potência europeia com o fim das importações dos automóveis alemães.

Como resposta, a UE assinou um importante acordo comercial com o Japão e reafirmou a manutenção do acordo internacional sobre o programa nuclear do Irão, ambos Estados desalinhados com a política de Trump e dos EUA. As disputas mundiais vão-se acirrando!

 

Flávio Ferreira

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