Na passada Quarta-feira foram votados no Parlamento quatro projetos-lei relativos à descriminalização da eutanásia, apresentados pelo PS, BE, PAN e PEV. Todos foram chumbados, sendo que o que reuniu mais votos, o do PS, ficou a 5 votos de ser aprovado. O CDS e, para espanto de muitos, o PCP, opuseram-se a todos os projetos e os deputados do PSD, apesar de terem “liberdade de voto”, votaram maioritário contra. Assim, o debate aberto pela entrega de uma petição assinado por mais de 8 mil pessoas, terminou com uma derrota para o PS e BE, que se empenharam em mudar a lei. Porém perdeu-se também uma oportunidade para avançar num direito individual importante.
Eutanásia e autodeterminação perante a morte
Não por acaso este debate surge na sequência de vários outros ligados ao direito dos cidadãos a decidirem sobre os seus próprios corpos, como foram o caso da IVG ou da mudança de sexo. Todas estas são questões que tratam do direito a decidir sobre as nossas vidas e os nosso corpos. Neste caso é um debate mais complexo, pois trata-se da relação com a morte e em particular no âmbito num contexto de degradação do SNS. Mas ainda assim trata-se do direito de autodeterminação de cada um sobre a sua vida e o seu corpo e acreditamos que os avanços na ciência e na medicina devem estar ao serviço desse direito e não de o cerceamento. O investimento e o desenvolvimento da medicina, tal como o reforço do SNS, são essenciais para que muito sofrimento e mortes desnecessárias sejam evitadas. Mas também deve permitir eliminar o sofrimento insuportável quando este não pode ser evitado.
Não se trata meramente de uma “liberdade individual”. Numa sociedade dividida em classes não há nenhuma “liberdade individual” que seja igual entre ricos e pobres. Já hoje, é possível, ou mais fácil, a quem tem posses ter fácil acesso a algum tipo de morte assistida ou até Eutanásia. Desde logo, porque os mais ricos tratam-se em Hospitais Privados, onde o controlo e a deontologia cedem muito facilmente perante aquilo que o doente e a família podem pagar. Além disso, ao contrários dos pobres e trabalhadores que frequentam o SNS, os ricos podem aceder a todos os cuidados paliativos que queiram. Podem ainda ser tratados no estrangeiro, em países onde a Eutanásia é legal. Pelo que descriminalizar a Eutanásia iria aproximar, pelo menos um pouco, o controlo que os mais ricos e os mais pobres tem sobre a sua própria morte. E, portanto, pela sua própria vida.
Moralismo retrógrado…
Grande parte da oposição à Eutanásia alicerça-se numa visão conservadora. Para a direita, impregnada de moralismo judaico-cristão, o sofrimento (dos pobres, como sempre) é visto não só como inevitável, mas como moralizador, e o destino de cada um pertence a Deus e não a si mesmo. Não por acaso Marcelo Rebelo de Sousa, Cavaco Silva e o CDS foram quem deu a cara contra a Eutanásia. Tal como o PSD que mesmo sem disciplina de votos, votou maioritariamente contra. A ideologia da submissão, da aceitação da dor e de uma visão moralista sobre a vida e a morte sempre foi um alicerce da Igreja, da direita e da classe dominante. Ela podia ter sido debilitada esta semana caso fosse aprovada a descriminalização da Eutanásia. Não por acaso a direita, com a inusitada ajuda do PCP, se mobilizou para que assim não fosse.
…e receios fundamentados
Porém os argumentos conservadores e moralistas não foram os únicos que se fizeram ouvir. Muita gente, até de esquerda, fica receosa de ver a possibilidade de que a vida de alguém seja retirada, não por vontade consciente da mesma, mas devido a degradação do SNS, do desgaste dos seus profissionais ou por meras considerações económicas. Este medo, é fundamentado. Para o capitalismo, a vida dos pobres só conta na medida em que possam trabalhar e consumir, para dar lucros à classe dominante. Por isso, nestes tempo de austeridade, os idosos e os doentes são deixados para trás, considerados um peso morto. Nesse sentido, muitos temem que a Eutanásia pudesse servir para poupar encargos ao Estado, levando a um uso abusivo desta prática.
É verdade que, enquanto não houver um Serviço Nacional de Saúde com o financiamento necessário, mas também focado na prevenção, no desenvolvimento da qualidade de vida física e psicológica da população e dos doentes, não há forma de garantir uma morte digna e eliminar o sofrimento desnecessário – com ou sem Eutanásia. Também é verdade que há riscos de mau uso desta prática. Mas isso é igualmente válido para outras práticas, como a Ortotanásia, que já se pratica hoje e que consiste em não administrar tratamentos que não curam o doente e prolongam artificialmente a vida. Só com um SNS público, gerido democraticamente, com profissionais que possam trabalhar em condições dignas é que esses riscos podem ser evitados. Porém isso não é motivo para negar ou adiar liberdades aos doentes, mas sim para lutar por um SNS para todos, gratuito e de qualidade.
Porque votou o PCP ao lado da direita?
Muitos ficaram surpreendidos com a posição do PCP, que não só não apoiou os projetos-lei que descriminalizavam a Eutanásia – como o do PEV – como não apresentou um projeto próprio, nem se absteve. O PCP votou contra, obstinada e ostensivamente. Entre a militância do PCP isso causou um grande incómodo, não só porque muitos militantes são favoráveis à descriminalização da Eutanásia, como não houve debate interno. Muitos militantes expressaram abertamente a sua discordância, até porque os argumentos do PCP são fracos.
Os argumentos do PCP oscilam entre uma posição moralista que se aproxima do conservadorismo da direita e o “espantalho” do uso da Eutanásia para eliminar idosos pobres por motivos economicistas. O argumento da “defesa da vida” não passa de uma versão laica da moral conservadora, onde a decisão sobre a vida e a morte de cada qual pertence apenas a Deus. Quanto ao receio de um uso abusivo da Eutanásia, convém lembrar que todos os projetos-lei apresentados previam que a morte só podia ser antecipada com pedido expresso do doente na posse das suas faculdades mentais, prevendo diversos e consecutivos mecanismos de verificação dessa vontade. Se considerava insuficientes os mecanismos de verificação presentes nos projetos-lei apresentados, o PCP poderia ter apresentado propostas próprias. Porém, optou pelo simples chumbo.
Para o PCP não se trata da vontade expressa do doente nem das várias verificações dessa mesma vontade. No seu site, o PCP alerta:“ Experiências noutros países demonstram que a legalização da eutanásia tem exposto os mais pobres à pressão direta e indireta para precipitar a morte.” sendo que “idosos com maiores rendimentos que emigram para as zonas de fronteira com a Alemanha para evitarem a possibilidade de serem eutanasiados”! Trata-se de uma confusão propositada. Antes de mais, é necessário clarificar que a experiência citada é a da Holanda, onde não existe serviço público do saúde e onde estas eventuais pressões se dão no sistema privado, regido pelo lucro. Uma das formas para impedir este tipo de pressão por motivos puramente economicistas da medicina privada, seria precisamente permitir que o SNS pratique a Eutanásia ou até restringi-la aos Hospitais Públicos. Talvez o PCP ache que a degradação do SNS é de tal forma avançada que se tornaria uma prática dos seus profissionais pressionar “idosos pobres” para “serem eutanasiados”. Se é assim, deve parar de aprovar sucessivos Orçamentos de Estado do PS, que deixam o SNS sem dinheiro, para injetar milhões na banca. O PCP apresenta como alternativa à Eutanásia o reforço dos cuidados paliativos, porém continua a aprovar Orçamentos de Estado sem verbas para esse reforço. A posição justa seria a oposta: não se opor a um direito individual como é a Eutanásia e, simultaneamente, lutar de forma coerente pelo reforço do SNS e dos cuidados paliativos. Infelizmente, ao apoiar o Governo PS que mantém o SNS sem fundos, o PCP cai numa contradição insanável.
Independentemente dos argumentos usados, a posição do PCP parece ter outros fundamentos. Por um lado, parta da base social e eleitoral do PCP é em muitos terrenos, conservadora e o PCP tem medo de a perder. Assim anula o seu próprio papel de partido “comunista”: em vez de educar a sua base para ultrapassar os preconceitos e o conservadorismo, o PCP adapta-se a eles para não perder votos. O mesmo acontece noutros temas, como os direitos LGBT, a Legalização da Cannabis e os direitos dos imigrantes. Por outro lado, o PCP depois de quase três anos a apoiar o governo de António Costa, parece querer demarcar-se artificialmente dos seus parceiros de Geringonça, já com os olhos postos nas eleições. Acabou por isolar-se, inclusive face aos seus militantes. Seria melhor demarcar-se do PS e do BE votando contra o próximo Orçamento de Estado, já que António Costa anunciou que não aumentará os salários da função pública – porém, neste caso, ao contrário da Eutanásia, tudo indica que PCP votará ao lado de PS e BE.
Ao lado do PS não se consegue saúde nem direitos
Também a posição do PS é hipócrita, por maioria de razão. O Governo de António Costa mantém o SNS à beira da ruptura, causando muito sofrimento, e até a mortes, desnecessários. Tão pouco o PS investiu minimamente em cuidados continuados ou paliativos que é, antes da Eutanásia, a primeira forma de diminuir o sofrimento de doentes incuráveis ou prolongados. Na verdade, o PS pretendia tapar o sol com a peneira: enquanto mantém milhares de doentes em condições degradantes nos Hospitais quer pousar como “humanista” ao descriminalizar a Eutanásia. O BE, propositadamente ou não, ajuda o PS a fazer este papel. Ao não fazer uma oposição consequente ao Governo e à sua política de asfixia do SNS e ao desligar o debate sobre a Eutanásia da defesa do SNS e dos seus profissionais, o BE faz um mau serviço aqueles que pretende representar. Na verdade, por detrás do debate da Eutanásia no parlamento está já a perspetiva das próximas eleições. PS pretendia aparecer como progressista e moderno, ao mesmo tempo que reforça o abraço (do urso) ao BE, preparando uma eventual “Geringonça a dois”. Porém, correu mal e, em certa medida, foi a direita, sobretudo o CDS, que saiu reforçada. Demonstra-se que o parlamento é um terreno pantanoso para a luta por direitos individuais e coletivos
A defesa da Saúde, da dignidade dos doentes, do reforço dos cuidados paliativos e tudo o que está associado, faz-se na luta. Mesmo que a Eutanásia fosse descriminalizada, nada disto estaria garantido. A prioridade, por isso, deve ser a luta pelo financiamento do SNS, pelos direitos dos seus profissionais e utentes. Isso faz-se ao lado dos médicos, enfermeiros, técnicos e auxiliares que têm protagonizado diversas greves e protestos. Defender o SNS, passar por recusar mais um Orçamento de Estado que prioriza o financiamento da banca e não da saúde. É ao lado dos profissionais de saúde, dos utentes do SNS e da população pobre – e não de braço-dado com o Governo – que a esquerda pode conquistar avanços.