As possessões sul-africanas da Grã-Bretanha apenas constituem um “dominion” do ponto de vista da minoria branca. Do ponto de vista da maioria negra, a África do Sul é uma colônia escrava.
Nenhuma revolução social – e em primeiro lugar, nenhuma revolução agrária – é concebível com a manutenção da dominação do imperialismo britânico sobre o domínio sul-africano. A derrubada da dominação britânica na África do Sul é também necessária para o triunfo do socialismo tanto na África do Sul, como na própria Grã-Bretanha.
Se, como se pode supor, a revolução começar primeiro na Grã-Bretanha, a burguesia inglesa será batida tanto mais rapidamente na metrópole quanto menor for o apoio que ela puder encontrar nas suas colônias e domínios, inclusive numa possessão tão importante como a África do Sul. A luta para acabar com o imperialismo britânico, seus instrumentos, seus agentes, se inscreve assim, necessariamente, no programa do partido proletário da África do Sul.
A derrubada da dominação do imperialismo britânico na África do Sul pode ser o resultado da derrota militar da Grã-Bretanha e da desagregação de seu império; neste caso, os Brancos da África do Sul podem ainda manter durante um certo período – sem dúvida, não por muito tempo – sua dominação sobre os Negros. Uma outra variante, que pode estar ligada á primeira, seria a revolução na Grã-Bretanha e nas suas possessões. Três quartos da população da África do Sul – quase 6 milhões sobre 8 – são pessoas de cor. A revolução vitoriosa, inconcebível sem o despertar das massas indígenas, lhes dará, por sua vez, o que tanto lhes falta hoje: a confiança em suas próprias forças, uma consciência maior de sua personalidade, o desenvolvimento de sua cultura. Nestas condições, a República sul-africana se tornará antes de mais nada uma república “negra”: isso não exclui, é claro, nem uma completa igualdade de direitos para os Brancos, nem relações fraternais entre as duas raças (o que depende, sobretudo, da conduta dos Brancos). Mas é absolutamente evidente que a maioria esmagadora da população, libertada da dependência servil, marcará o Estado de forma determinante.
Na medida em que a revolução vitoriosa mudará radicalmente as relações, não apenas entre as classes, mas também entre as raças, assegurando aos Negros o lugar no Estado que corresponde ao seu número, a revolução social na África do Sul terá igualmente um caráter nacional. Não temos qualquer razão para fechar os olhos sobre este aspecto da questão, ou minimizar sua importância. Ao contrário, o partido proletário deve, em palavras e atos, aberta e ousadamente, tomar nas suas mãos a resolução do problema nacional (racial).
Mas a resolução desse problema só pode e deve ser realizada pelo partido proletário pelos seus próprios métodos.
O instrumento histórico da emancipação nacional só pode ser a luta de classes.
A Internacional Comunista, desde 1924, transformou o processo de “emancipação nacional” dos povos coloniais numa abstração democrática vazia, elevada acima das relações de classes. Para lutar contra a opressão nacional, as diferentes classes se liberariam – por um tempo – de seus interesses materiais e se tornariam simples forças “anti-imperialistas”. Para que essas “forças” imateriais cumprissem de boa vontade a tarefa que lhes dá a Internacional Comunista, se lhes promete em recompensa um Estado “nacional democrático” imaterial (com a inevitável referência à fórmula de Lênin sobre a “ditadura democrática dos operários e camponeses”)
As teses indicam que em 1917 Lênin abertamente liquidou, de uma vez por todas, a fórmula de “ditadura democrática dos operários e camponeses”, enquanto condição pretensamente necessária para resolver a questão agrária. O que é absolutamente exato. Mas, para evitar mal entendidos, é preciso acrescentar:
a) que Lênin falava sempre de ditadura revolucionária burguesa democrática, e não de um Estado “popular” imaterial;
b) que na luta pela ditadura burguesa-democrática, ele não propunha um bloco de todas as “forças anti-czaristas”, mas desenvolvia uma política independente de classe do proletariado. O bloco “anti-czarista” era uma idéia dos socialistas revolucionários russos e dos cadetes de esquerda, isto é, dos partidos da pequena e média burguesia. Contra eles, os bolcheviques sempre levaram uma luta implacável.
Quando as teses dizem que a palavra de ordem de “República Negra” é tão nociva (“equaly harmful”) para a causa da revolução quanto a de “a África do Sul para os brancos”, não podemos estar de acordo com esta afirmação. Por parte dos Brancos, trata-se da manutenção de uma dominação infame; por parte dos Negros, dos primeiros passos para sua emancipação. É preciso reconhecer absolutamente e sem reservas o direito total e incondicional dos Negros à independência. É apenas sobre a base de uma luta comum contra a dominação dos exploradores brancos que poderá se elevar e se reforçar a solidariedade entre os trabalhadores negros e trabalhadores brancos. É possível que após a vitória, os Negros considerem inútil a criação na África do Sul de um Estado negro particular. Naturalmente, nós não lhes imporemos um separatismo de Estado. Mas que eles o reconheçam livremente, com base na sua própria experiência, não debaixo do chicote dos opressores brancos. Os revolucionários proletários não devem nunca esquecer o direito das nacionalidades oprimidas a dispor de si próprias, inclusive o seu direito à completa separação, e o dever do proletariado da nação que oprime a defender este direito, inclusive, se necessário, com armas na mão!
As teses sublinham, de forma justa, o fato que foi a revolução de Outubro que trouxe a solução para a questão nacional na Rússia. Os movimentos nacionais democráticos foram em si mesmos impotentes para acabar com a opressão nacional do czarismo. Foi apenas graças ao fato que os movimentos das nacionalidades oprimidas, bem como o movimento agrário do campesinato, terem dado ao proletariado a possibilidade de conquistar o poder e estabelecer sua ditadura, que a questão nacional, assim como a questão agrária, encontraram uma solução ousada e radical. Mas a própria combinação dos movimentos nacionais com a luta do proletariado pelo poder só foi possível politicamente porque o Partido Bolchevique, ao longo de sua história, tinha levado uma luta implacável contra os opressores grão-russos, e apoiado sempre e sem reserva, o direito das nações oprimidas à sua independência, até e inclusive a separação com a Rússia.
A política de Lênin diante das nações oprimidas não tinha, portanto, nada de comum com a dos epígonos. O Partido Bolchevique defendia o direito das nações oprimidas a disporem delas próprias, através dos métodos da luta de classe proletária, rejeitando claramente os blocos “anti-imperialistas” charlatanescos com os numerosos partidos “nacionais” pequeno-burgueses da Rússia czarista (o PPS, o partido de Pilsudsky na Polônia, os “dachnaki” na Armênia, os nacionalistas ucranianos, os sionistas junto aos judeus, etc.). O bolchevismo desmascarou sempre impiedosamente nesses partidos, da mesma forma com os “social-revolucionários”, sua dupla natureza e aventureirismo, e sobretudo a mentira de sua ideologia pretensamente acima das classes. Ele sequer suspendia sua crítica impiedosa quando as condições obrigavam a passar tal ou qual acordo episódico, estritamente prático, com eles. Não poderia ser questão de uma aliança qualquer permanente com eles, sob a bandeira do “anti-czarismo”. Foi apenas graças a uma política de classe implacável, que o bolchevismo conseguiu, nas condições da revolução, descartar os mencheviques, os social-revolucionários, os partidos nacionais pequeno-burgueses, e soldar em torno do proletariado as massas camponesas e as nacionalidades oprimidas.
“Nós não devemos, dizem as teses, fazer concorrência com o Congresso Nacional Africano no domínio das palavras de ordem nacionalistas com o objetivo de conquistar os camponeses indígenas.” A idéia, em si própria, é justa, mas exige ser concretizada. Não conhecendo de modo preciso a atividade do CNA, só posso esboçar nossa política a seu respeito por analogia, precisando, por outro lado, que estou pronto a fazer as correções que sejam necessárias às minhas proposições.
Os bolcheviques-leninistas estão pela defesa do Congresso, tal como ele é, em todos os casos em que ele receba golpes dos opressores brancos e de seus agentes nas fileiras das organizações operárias.
Os bolcheviques opõem, no programa do Congresso, as tendências progressistas às tendências reacionárias.
Os bolcheviques desmascaram aos olhos das massas indígenas a incapacidade do Congresso em obter a realização de suas próprias reivindicações, por causa de sua política superficial, conciliadora, e lançam, em oposição ao Congresso, um programa de luta de classe revolucionária.
Se acordos temporários com o Congresso forem impostos pela situação, eles só podem ser admitidos no quadro de tarefas práticas estritamente definidas, mantendo a completa independência de nossa organização e nossa total liberdade de crítica política.
As teses lançam como palavra de ordem política central não o “Estado nacional democrático”, mas o “Outubro” sul-africano. Elas mostram – com perfeita evidência:
a) que as questões nacional e agrária na África do Sul coincidem quanto ao conteúdo;
b) que estas duas questões só podem ser resolvidas pela via revolucionária;
c) que a resolução revolucionária dessas tarefas leva à ditadura do proletariado, dirigindo as massas camponesas indígenas;
d) que a ditadura do proletariado abre a era do regime soviético e da edificação socialista. Esta conclusão constitui a pedra angular de todo o edifício do programa. Sobre isso, nossa solidariedade é total.
Mas é necessário conduzir as massas à esta fórmula “estratégica” em geral, através de uma série de palavras de ordem “táticas”. Só podemos elaborá-las, em cada etapa, sobre a base de uma análise das condições concretas da vida e da luta do proletariado e dos camponeses, assim como de toda a situação nacional e internacional. Sem entrar neste domínio, quero somente deter-me brevemente sobre a questão da correlação entre as palavras de ordem nacionais e as palavras de ordem agrárias.
As teses sublinham várias vezes que é preciso lançar não reivindicações nacionais, mas sim reivindicações agrárias. É uma questão muito importante, que merece séria atenção. Rejeitar para o último plano as palavras de ordem nacionais, ou atenuá-las para não afastar os chauvinistas brancos do seio da classe operária seria, bem entendido, um oportunismo criminoso, absolutamente estranho aos autores e partidários das teses, como decorre delas próprias, claramente impregnadas que estão de internacionalismo revolucionário. Desses socialistas que lutam pelos privilégios dos Brancos, as teses dizem, com justeza, que: “É preciso ver que esses “socialistas” são os piores inimigos da revolução.”
Resta outra explicação, indicada de passagem no próprio texto: as massas camponesas atrasadas ressentem de modo mais imediato a opressão agrária do que a opressão nacional. É possível: a maioria dos Negros são camponeses, e a maior parte das terras está nas mãos de uma minoria branca. Na sua luta pela terra, os camponeses russos colocaram por muito tempo suas esperanças no czar, e se mantinham cuidadosamente afastados de todas as conclusões políticas. Da palavra de ordem tradicional da intelligentsia revolucionária “Terra e Liberdade!”, o mujique por muito tempo só reteve a primeira parte. Foi preciso dezenas de anos de agitação agrária e de influência dos operários das cidades para que o camponês viesse a ligar essas duas palavras de ordem.
O bantú pobre e escravo alimenta esperanças no rei da Inglaterra ou em MacDonald. Mas seu extremo atraso político se expressa também pela sua falta de consciência nacional. E, ao mesmo tempo, ele ressente vivamente a servidão agrária e fiscal. Nessas condições, nossa propaganda deve e pode sobretudo partir das palavras de ordem da revolução agrária, afim de levar, passo a passo, sobre a base de sua experiência da luta, os camponeses às conclusões políticas e nacionais necessárias. Se estas considerações políticas são exatas, não se trata da questão do programa em si, mas a de saber por qual caminho fazer penetrar este programa na consciência das massas indígenas.
Levando em conta a fraqueza numérica das forças revolucionárias e a extrema dispersão dos camponeses, não será possível, pelo menos no próximo período, agir sobre estes últimos de outra forma, a não ser através da vanguarda operária. Por isso é tão importante educar esta última no espírito da clara compreensão da importância da revolução agrária para os destinos da África do Sul.
O proletariado do país compreende os párias negros atrasados e uma casta privilegiada arrogante de Brancos. Aí reside a principal dificuldade em toda esta situação. Os abalos econômicos da época do capitalismo em apodrecimento, como indicam justamente as teses, devem sacudir profundamente as velhas divisões e facilitar o trabalho de agrupamento revolucionário. O pior dos crimes seria, para os revolucionários, fazer a menor das concessões aos privilégios e preconceitos dos Brancos. O que dá o dedo mínimo ao chauvinismo está perdido. A todo operário branco, o partido revolucionário deve colocar a seguinte alternativa: ou bem com o imperialismo britânico e a burguesia branca da África do Sul, ou bem com os operários e camponeses negros contra os feudais e escravistas brancos e seus agentes no seio da própria classe operária.
A derrubada da dominação britânica sobre a população negra da África do Sul não significará, bem entendido, a ruptura econômica e cultural com a antiga metrópole, se esta se libertar dos saqueadores imperialistas que a oprimem. Por intermédio dos Brancos que ligarão nos fatos, numa luta comum, sua sorte à dos escravos coloniais atuais, a Inglaterra soviética poderá exercer sobre a África do Sul uma poderosa influência econômica e cultural, desta vez, não mais sobre a base de uma dominação, mas dos princípios de ajuda mútua proletária.
Mas, a influência que a África do Sul soviética exercerá sobre todo o continente negro será, talvez, ainda mais importante. Ajudar os negros a alcançar a raça branca, afim de elevar-se, de mãos dadas, a novas alturas da cultura, tal será uma das mais nobres e grandiosas tarefas do socialismo.
Leon Trotsky, 20 de Abril de 1935
Foto: Otto Huiswould e Claude McKay, dois dos primeiros dirigentes da Internacional Comunista (Comintern). Moscovo, 1922