O debate sobre a concepção de revolução em Lênin passou por inúmeras controversas. Entre elas, ganharam destaques duas questões. Quais os elementos de (des)continuidade entre a concepção de revolução de Lênin e os fundadores do marxismo? Qual a proximidade da teoria revolucionária de Lênin e Trotsky?
Os acontecimentos de 1905 na Rússia deram origem a uma série de interpretações sobre o caráter e as tarefas colocadas à revolução que se aproximava. Destacava-se entre essas interpretações a de Lênin, que sustentava a teoria segundo a qual a próxima revolução estabeleceria uma “ditadura revolucionária democrática dos operários e camponeses”, contrariando tanto a posição dos mencheviques de que a revolução seria dirigida pela burguesia, quanto a de Trotsky, que defendia o caráter permanente da revolução, que desembocaria na “ditadura do proletariado”. Havia também outra teoria, defendia por Parvus, segundo a qual a revolução seria democrático-burguesa, mas, igual a Trotsky, dirigida pelos operários e com um partido não centralizado.
O substitucionismo social, compreendido como o processo pelo qual uma classe social substitui uma outra nas tarefas históricas colocadas em determinado momento histórico, era uma tese comum entre os revolucionários de então, salvo os mencheviques, que estavam presos ao esquema de que uma revolução burguesa só poderia ser dirigida pela burguesia.
A propósito da posição bolchevique, Lênin (1977), em sua brochura “Duas táticas da social-democracia na presente revolução”, defendia que o eixo central era a derrubada revolucionária do czarismo. Os 3 elementos centrais de seu programa, conhecidos na época como as “três baleias do bolchevismo” (TROTSKY, 2007a, p. 297), eram: pela República democrática, confisco de terras dos nobres e redução da jornada para 8 horas. Além disso, defendia uma ditadura revolucionária democrática do proletariado e do camponês, sendo os sujeitos sociais da revolução o proletariado e os camponeses, em cujo eventual governo provisório não estaria descartado a participação bolchevique em seu interior.
Apesar de ser um clássico, o livro “Duas táticas” ainda guardava uma concepção de que na revolução russa estava colocada apenas as tarefas democráticas, embora a classe dirigente não fosse, como presumiam os mencheviques, a burguesia, mas o proletariado e os camponeses. A essa concepção teórica chamamos revolução por etapas ou “etapismo”, que corresponde à compreensão segundo a qual uma revolução democrática não pode, senão depois de um longo período, se transformar em revolução socialista. Em outras palavras, é a teoria que divide as revoluções burguesas e socialistas em dois momentos distintos, em duas etapas objetivamente separadas no tempo e no espaço. A primeira etapa corresponderia às tarefas democráticas, durante a qual o proletariado se firmaria como classe social e politicamente organizada, para posteriormente lutar pelo poder.
Para compreender a posição de Lênin na querela teórica, é preciso voltar os olhos para Marx e Engels, de quem se inspirou para elaborar sua teoria revolucionária.
A influência de Marx e Engels
Embora não seja possível nos limites deste texto discutir todas as vicissitudes pelas quais passaram Marx e Engels ao longo de suas elaborações, queremos demarcar alguns elementos presentes no processo de formulação de sua concepção de revolução e como elas influenciaram Lênin.
Primeiro é importante assinalar que nem Marx e nem Engels criaram uma teoria sistematizada e acabada de revolução. Suas posições sofreram ao logo dos tempos oscilações, foram se enriquecendo com a realidade, com as experiências teóricas, práticas e históricas.
As primeiras elaborações de Marx e Engels ainda estavam presas a um esquema claramente etapista de revolução. A idéia segundo a qual as revoluções começariam nos países mais industrializados do Ocidente foi a principal marca dos fundadores do marxismo durante muitos anos. Para eles, o desenvolvimento do capitalismo industrial e a revolução burguesa seriam as etapas preliminares e obrigatórias que todo processo histórico deveria passar antes da luta do proletariado pelo socialismo. Essa concepção estava baseada na idéia de que o surgimento de uma nova formação social estaria condicionado em última instância ao desenvolvimento das forças produtivas. Nas palavras de Marx (1983, p. 25), uma “organização social nunca desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela é capaz de conter”.
Essa visão de etapismo econômico acompanhou as elaborações de Marx e Engels durante muitos anos. Basta ver que mesmo em 1895, Engels (1990, p. 512) ainda afirmava que a história “mostrou claramente que nessa altura o nível do desenvolvimento econômico de modo algum estava amadurecido para a eliminação da produção capitalista”.
Marx e Engels durante muitos anos defenderam uma concepção etapista de revolução. Para eles, as formações sociais não poderiam surgir se os fundamentos econômicos que as sustentavam não tivessem ainda se esgotado historicamente.
Entretanto, do ponto de vista da luta pelo poder, os fundadores do marxismo também enriqueceram sua teoria com as experiências reais da luta de classes. A revolução francesa seguramente incidiu sobre essas elaborações. Mas, da mesma forma que essa revolução foi uma referência, ela também abriu uma grande interrogação: seria possível ela se repetir na Europa?
Depois da revolução Inglesa, a Revolução de 1848 colocou finalmente um ponto final na idéia de que a burguesia pudesse ainda cumprir um papel revolucionário. Marx e Engels, então, passam a desenvolver a idéia de “revolução permanente”. Em que consistia essa idéia? A expressão apareceu pela primeira vez em 1844, no livro “A Questão Judaica”, como parte de uma discussão sobre a Revolução Francesa, mas que não guarda qualquer significado com suas elaborações posteriores. Depois disso, a idéia de uma “revolução permanente”, que não cessaria até a revolução mundial, foi se esboçando nas obras de Marx e Engels em várias ocasiões. No próprio Manifesto Comunista surge a idéia de uma “revolução universal”, finalizando com o antológico chamado sintetizado na palavra de ordem: “proletários de todos os países, uni-vos” (MARX; ENGELS, 2007, p. 109). Mas a definição mais acabada sobre “revolução permanente” encontraremos na Mensagem do Comitê Central à Liga dos Comunistas, de 1850, onde Marx e Engels (1978, p. 281) afirmam
[…] o nosso interesse e a nossa tarefa são tornar permanente a revolução até que todas as classes mais ou menos possuidoras estejam afastadas da dominação, até que o poder de Estado tenha sido conquistado pelo proletariado, que a associação dos proletários, não só num país, mas em todos os países dominantes do mundo inteiro, tenha avançado a tal ponto que tenha cessado a concorrência dos proletários nesses países e que, pelo menos, estejam concentradas nas mãos dos proletários as forças produtivas decisivas.
A cada experiência da luta de classes Marx e Engels tiravam as conclusões sobre o avanço do proletariado, da pequena-burguesia e da cada vez mais evidente incapacidade da burguesia de cumprir um papel progressivo na história. Mas foi depois da revolução de 1848 que Marx começou a concluir que a covarde burguesia preferia o comércio sob a sombra de uma manta real a protagonizar uma luta contra a monarquia à frente de despossuídos pra quem uma revolução só teria data pra começar.
Alertando para essa incapacidade revolucionária da burguesia, Marx e Engels passam a cogitar a hipótese do substitucionismo social, ou seja, de que uma classe faça a revolução no lugar de outra. Por exemplo, na “Mensagem à Liga”, Marx e Engels (1978) destacam o papel que a pequena burguesia poderia cumprir na revolução em coalizão com o proletariado. Mesmo assim, acreditavam que tal coalizão favoreceria mais à aplicação do programa da pequena-burguesia do que do proletariado.
Para Marx e Engels (1978), a revolução de 1848 deixou pelo menos duas lições importantes. A primeira é de que a revolução deveria ser mundial. A segunda foi admitir que uma revolução burguesa fosse dirigida por outras classes sociais, em especial pela pequena-burguesia em coalizão com o proletariado.
Mesmo admitindo que as revoluções burguesas fossem dirigidas por outras classes, Marx ainda trabalhava como hipótese mais provável que a revolução socialista fosse realizada nos países mais industrializados. Isso não significava, entretanto, que descartava que outras revoluções fossem realizadas ou mesmo começassem em países menos desenvolvidos. Por exemplo, em 1853, Marx (1973), comentando a revolução na China, sustentou a tese de que aquelas revoluções fossem de alguma maneira se voltar contra a Inglaterra. Ele começa então a embaralhar a possibilidade de uma revolução permanente como se fosse uma espécie de “revolução reverberada”. A revolução chinesa incidindo sobre a Inglaterra que, por sua vez, reverberaria à Europa. Nas palavras de Marx (1973, p. 12), “agora que a Inglaterra originou a revolução na China, a questão está em saber como é que, a seu tempo, essa revolução atuará de volta sobre a Inglaterra e, através da Inglaterra, sobre a Europa”.
Essa tese é retomada posteriormente no prefácio à segunda edição russa do “Manifesto Comunista”, escrita em 1882, quando então Marx e Engels (2003, p. 9) admitem que “se a Revolução Russa constituir-se no sinal para a revolução proletária no Ocidente, de modo que uma complemente a outra, a atual propriedade comum da terra na Rússia servirá de ponto de partida para a evolução comunista”.
Essa passagem é chave para compreender que Marx e Engels nunca descartaram que revoluções pudessem ocorrer (antes, inclusive) em países de modo de produção atrasados. Por isso, é parcial a conclusão de Moreno (1992) segundo a qual Marx colocava o problema da revolução apenas do ponto de vista nacional, ou apenas “só para um ou dois países” (p. 25). Ao contrário disso, Marx e Engels embaralharam várias possibilidades de revoluções mundiais, algumas inclusive simultâneas ou com “efeito pingue-pongue”. Eles analisavam a realidade do ponto de vista de sua totalidade e não descartavam o efeito que uma revolução poderia ter nos demais países.
É interessante notar que Marx e Engels só admitiam que países de capitalismo tardio dessem um salto histórico se fossem socorridos pela vitória do proletariado europeu vitorioso.
Por que Marx e Engels condicionaram o processo revolucionário na Rússia ou na China (e especialmente na Irlanda) ao processo revolucionário europeu? Precisamente porque não tinham em mente que revoluções em países de economia asiática ou tardia pudessem saltar, por si sós, as fases do desenvolvimento histórico. Somente com a ajuda do proletariado vitorioso dos países de economia desenvolvida seria possível, pelo menos do ponto de vista teórico, esse salto histórico.
Portanto, Marx e Engels desenvolveram uma idéia de revolução permanente que não descartava que o proletariado, em conjunto com a pequena-burguesia, tivesse que tomar em suas mãos as tarefas democráticas incompletas pela burguesia. Também não descartavam que as revoluções ocorressem primeiramente em países de formação histórica tardia. Mas ponderavam que no caso das revoluções em economias tardias a única possibilidade de dar um salto histórico estava condicionada à vitória do proletariado europeu. E quando tratavam da possibilidade do proletariado em coalizão com a pequena-burguesia tomarem a frente nas revoluções burguesas, opinavam que o programa dessa revolução não seria do proletariado. Engels (1983, p. 303) chegou mesmo a sustentar, em 1853, que caso o proletariado fosse obrigado a “fazer experiências e saltos comunistas” “antes de sua época normal”, seria considerado “prematuro” e estaria provavelmente condenado ao fracasso.
Por mais que admitissem saltos históricos, Marx e Engels ainda eram reféns da idéia segundo a qual as revoluções socialistas não poderiam prescindir das revoluções burguesas, e que estas ocorreriam provavelmente primeiro nos países de capitalismo avançado. Mas admitiram que, por mais que se iniciassem nos países do Ocidente Europeu, as próximas revoluções burguesas corriam o risco de serem dirigidas não pela burguesia, mas pelo proletariado ou pela pequena-burguesia.
Junto com o internacionalismo, foi essa idéia de uma classe fazer a revolução no lugar de outra que Lênin herdou de Marx e Engels. Ao que tudo indica, os mencheviques não leram ou simplesmente desprezaram esses alertas de Marx e Engels sobre as possibilidades do substitucionismo social. Não só os mencheviques na Rússia, como os principais teóricos da II Internacional ainda estavam presos à idéia de que apenas a burguesia faria sua revolução. Além disso, que as revoluções socialistas só poderiam existir nos países de capitalismo avançado.
Lênin, ao contrário, admitiu, como Marx e Engels, que a revolução burguesa num país de economia tardia poderia ser realizada pelos camponeses em coalizão com os operários. Mas, fiel ao esquema inicial de Marx e Engels, Lênin acreditava que, por mais que a revolução fosse dirigida pelos operários e camponeses, não poderia saltar de uma etapa capitalista para uma socialista. Ele sabia que a maioria da população era camponesa e ainda não estava claro o papel que o proletariado cumpriria na direção das lutas e no próprio governo, caso a insurreição fosse vitoriosa.
Por isso está correta a caracterização de Moreno de que tanto os mencheviques quanto Lênin herdaram do pensamento de Marx partes distintas de sua concepção. Os mencheviques a idéia de que a revolução na Rússia “não pode ser nem socialista, nem operária e nem camponesa”, e Lênin a idéia de que “ainda que a dinâmica de classe não seja burguesa […] não se pode superar a revolução democrática burguesa porque o país é atrasado”(MORENO, 1992, p.25).
Assim como Marx e Engels, Lênin também defendia a continuidade da revolução, até que o proletariado fosse vitorioso e até que a revolução se espalhasse pelo resto do mundo. De fato, do ponto de vista histórico, Lênin acumulou uma leitura mais profunda da realidade. Assim como Marx e Engels, Lênin também admitia a possibilidade de uma concatenação de tarefas históricas, mas dava como pouco provável que na Rússia atrasada uma revolução pudesse saltar de “etapas” sem uma revolução triunfante na Europa.
Em “Duas táticas”, Lênin sintetiza o que herdou de Marx e Engels com a seguinte afirmação
naturalmente, numa situação histórica concreta entrelaçam-se os elementos do passado e do futuro, um caminho confunde-se com o outro. […] Mas isto não nos impede minimamente de distinguir lógica e historicamente os grandes períodos do desenvolvimento. Pois todos nós contrapomos a revolução burguesa e a socialista, todos nós insistimos incondicionalmente na necessidade de estabelecer uma distinção rigorosa entre as mesmas, mas poder-se-á negar que, na história, elementos isolados, particulares, de uma e outra revolução se entrelaçam? Não registra a época das revoluções democráticas na Europa uma série de movimentos socialistas e tentativas socialistas? E a futura revolução socialista na Europa não terá ainda muito e muito que fazer para completar o que ficou incompleto no terreno da democracia?. (LENIN, 1977, p. 76).
Como se pode notar, mesmo quando Lênin defende uma possível articulação de tarefas históricas, ele não defende como mais provável a revolução na Rússia, motivo pelo qual fala dessa possibilidade na “Europa”, provavelmente se referindo aos países de capitalismo avançado.
Desta forma, Marx e Engelis influenciaram Lenin em três aspectos. Primeiro, com a ideia de que os camponeses e o proletariado pudessem levar a revolução democrática adiante. Segundo, com a idéia de que a revolução russa fosse o início da revolução mundial. Terceiro, com a idéia de que a revolução socialista seria mais provável nos países de capitalismo avançado.
A revolução permanente que Marx e Engels desenvolveram, por brilhante que fosse, ainda era bastante incipiente e parcial. Para eles, ou os países de capitalismo tardio seriam auxiliados pelas revoluções vitoriosas dos países de capitalismo avançado ou teriam que atravessar um longo período de desenvolvimento capitalista. A idéia de revolução permanente para Marx e Engels, tal como Lênin herdou, não significava que a revolução democrática se transformaria em socialista, mas que a luta do proletariado deveria continuar mesmo sob o regime democrático burguês até que o proletariado, em algum momento histórico, pudesse chegar ao poder.
Tanto Marx, quanto Engels e Lênin ainda pensavam numa revolução dividida em duas etapas: a burguesa e a socialista. O continuísmo revolucionário não significava a transformação da revolução democrática em socialista, mas tão somente a continuidade da luta de classes “ininterrupta” até que o proletariado tomasse o poder. Lênin provavelmente tinha em mente a hipótese de Marx e Engels de que, uma vez iniciada a revolução na Rússia, seria apenas o estopim para que a Europa viesse em seu socorro com outra revolução. Embora descartassem como provável a luta pelo socialismo na Rússia, a idéia de revolução em Lênin estava diretamente ligada à idéia de revolução mundial. E isso não mudou mesmo depois da tomada do poder pelo proletariado.
Mas, se Lênin não prognosticou uma revolução socialista na Rússia, o que queria dizer com “ditadura revolucionária democrática do proletariado e dos camponeses”?
A “fórmula algébrica” de Lênin
Em seu livro “Duas táticas”, Lênin (1977, p. 17), sintetizou da seguinte maneira sua concepção de revolução
o grau de desenvolvimento econômico da Rússia (condição objetiva) e o grau de consciência e de organização das massas do proletariado (condição subjetiva, indissoluvelmente ligada à objetiva) tornam impossível a libertação imediata e completa da classe operária. Só os mais ignorantes podem não tomar em consideração o caráter burguês da revolução democrática que está a processar-se; só os mais cândidos otimistas podem esquecer como as massas operárias conhecem ainda pouco os fins do socialismo e os métodos para realiza-lo.
Ou seja, Lênin previa toda uma etapa de desenvolvimento do capitalismo, desenvolvendo tanto os aspectos “objetivos” quanto os “subjetivos” que pavimentariam o caminho até a luta pelo socialismo. E chamava de “cândidos otimistas” aqueles que apostavam na transformação da revolução democrática em socialista.
Em “Duas táticas” Lênin embaralhou pelo menos dois desdobramentos que poderiam surgir da revolução democrática. O primeiro, mais incerto, era sobre o papel dos camponeses. Não estava claro para Lênin o papel que poderiam cumprir na revolução, se teriam maior ou menor peso, maior ou menor relevância na direção da insurreição ou se seguiriam a burguesia ou o proletariado ao cabo do processo. Lênin não acreditava que o camponês pudesse cumprir um papel independente e de direção. Como já sustentava em 1899 no “Projeto de Programa” do POSDR, “[…] seria absurdo apresentar ao camponês como ao portador do movimento revolucionário” (LENIN, 1981, p. 243). A hipótese que Lênin deixou em aberto foi sobre a dinâmica que os camponeses poderiam assumir durante a revolução. Por isso é correta a interpretação segundo a qual em “Duas táticas” a fórmula de Lênin era mais aberta e flexível. Trotsky (2011, p. 215) a qualificou de uma “fórmula algébrica”, que, segundo definiu
na medida em que [Lênin] deixava suspensa a questão do mecanismo político da união dos operários e dos camponeses, a fórmula da ditadura democrática continuava a ser […] uma fórmula algébrica que permitia a previsão de futuras interpretações políticas muito diversas.
Para Trotsky (2011, p. 215), a teoria de Lênin deixava em aberto as possibilidades, sustentando que
durante longos anos, Lênin se recusou a decidir previamente qual seria organização política do partido e do Estado sob a ditadura do proletariado e dos camponeses, embora pusesse em primeiro plano a colaboração dessas duas classes, em oposição à idéia de aliança com a burguesia liberal.
Marx e Engels, como vimos, já haviam cogitado a possibilidade de uma aliança entre o proletariado e a pequena-burguesia durante uma revolução democrática. Agora, esse dilema histórico estava colocado na prática. Lênin optou pela prudência. Como se tratava da primeira aliança do gênero na história, Lênin preferiu deixar em aberto as possibilidades.
Essa “fórmula algébrica” só se justificava pela incerteza sobre o papel do camponês na dinâmica do processo. O que Lênin tinha certeza era de que deveria disputar os camponeses, tirando-os da influência burguesa.
O segundo desdobramento que Lênin cogitou em “Duas táticas” tinha a ver não com um fator interno, mas externo. O destino da revolução socialista na Rússia estava indissoluvelmente ligado ao destino da luta pelo poder na Europa, especialmente na Alemanha. Lênin estabelecia uma relação tão estreita entre as duas revoluções que praticamente condicionou uma revolução à outra. Em suas palavras
[…] não devemos temer (como teme Martinov) a vitória completa da social-democracia na revolução democrática, isto é, a ditadura revolucionária democrática do proletariado e do camponês, pois tal vitória dar-nos-á a possibilidade de levantar a Europa, e o proletariado socialista europeu, depois de ter sacudido o jugo da burguesia, ajudar-nos-á, por sua vez, a realizar a revolução socialista. (LENIN, 1977. p. 74).
A influência de Marx e Engels sobre Lênin é evidente. O desdobramento que a teoria de Lênin sugere é que, diferente da Rússia, na Europa as condições objetivas e subjetivas já estavam maduras para a luta pelo socialismo. Que a revolução democrática na Rússia poderia até ser um estopim para a revolução socialista na Europa, mas a revolução socialista na Rússia ainda dependia dos êxitos do proletariado europeu.
Em “Duas táticas” a “fórmula algébrica” de Lênin pressupunha dois desdobramentos. O primeiro tinha a ver com o papel do camponês. O segundo com a revolução na Europa. Como sintetizou Trotsky (2011, p. 247-248)
eis o pensamento de Lênin: não quero tratar da questão de saber até onde irá nossa revolução, ou se o proletariado russo pode chegar ao poder antes do proletariado da Europa; não examino as perspectivas que então se abririam para o socialismo, mas, na questão capital da atitude do proletariado para com os camponeses e a burguesia liberal […].
O que o livro “Duas táticas” não deixa dúvidas é de que Lênin pretendia continuar o combate pelo socialismo depois do triunfo da revolução democrática. Mas só depois dela. O livro guarda uma particular importância porque ele é parte de um processo de amadurecimento do revolucionário russo, com todas as contradições que ainda palpitavam em suas elaborações.
Como sustentou Trotsky (2011, p. 217), “é licito admitir que, até certo momento, o caráter algébrico tenha sido o seu lado forte, mas, ao mesmo tempo, foi o seu ponto fraco, cujos perigos tão claramente se manifestaram, entre nós, depois de fevereiro de 1917, e nos custaram, mais tarde, a catástrofe na China”.
A teoria revolucionária de Lênin expressa em “Duas táticas” foi elaborada de forma cuidadosa, prudente e leal à sua metodologia de que toda análise concreta deve partir de situações concretas. A despeito desse cuidado metodológico, a realidade não confirmou essa primeira elaboração de Lênin.
Revolução por etapas e ininterrupta
Como se sabe, os mencheviques defendiam que a primeira etapa da revolução fosse necessariamente burguesa e dirigida pela burguesia, depois da qual haveria um longo período de desenvolvimento capitalista, durante o qual os operários pudessem se transformar em força numericamente superior. Lênin defendia outra concepção, de que a luta deveria continuar até a vitória do socialismo, de forma ininterrupta. E essa compreensão já estava presente no pensamento de Lênin antes mesmo de escrever “Duas táticas”. Por exemplo, já no texto “As tarefas democráticas do proletariado revolucionário”, escrito em junho de 1905, Lênin (1982, p. 280) sustentava que
a burguesia, considerada como um todo é incapaz de lutar com decisão contra a autocracia: teme perder nessa luta sua propriedade, que a encadeia à sociedade existente; teme a atuação demasiado revolucionária dos operários, que jamais se deterão na revolução democrática, porque aspiram à revolução socialista.
Isso mostra que Lênin já compreendia os nexos que poderiam ser estabelecidos entre a revolução democrática e a socialista, motivados pela incapacidade da burguesia em realizar a revolução e a necessidade do proletariado em conduzi-la adiante até entrar em franca rota de colisão com a propriedade privada. Lênin, em oposição aos mencheviques, desenvolve uma compreensão muito mais dialética da realidade, estabelecendo os elementos de ruptura e continuidade que existem num processo histórico.
Em “Duas táticas”, defendia a continuidade da luta pelo socialismo, tão logo fosse estabelecida a democracia burguesa. Seu raciocínio sobre a próxima revolução foi encerrado com o seguinte chamado
A cabeça de todo o povo e em particular do camponês — pela liberdade total, pela revolução democrática consequente, pela república! A cabeça de todos os trabalhadores e explorados — pelo socialismo!. (LENIN, 1977, p. 102).
O fio de continuidade entre Marx, Engels e Lênin era o de que a luta pelo socialismo não poderia ser interrompida enquanto o proletariado não triunfasse. Mas, por que Lênin então não defendia, como Trotsky, a revolução permanente? Como disse Trotsky, em resposta aos stalinistas, “o pensamento oficial de hoje não se dá ao trabalho de examinar as contradições de Lênin […] e que são, ora externas e passageiras, ora reais, mas derivando sempre do próprio fundo do problema” (TROTSKY, 2011, p. 220).
E qual seria essa razão de fundo? Com toda genialidade e universalidade de seu pensamento, Lênin ainda não havia se divorciado completamente da visão etapista, segundo a qual a revolução socialista não viria senão depois de um período de desenvolvimento capitalista. Se Lênin defendia que a revolução não poderia parar na etapa democrática, também em nenhum momento defende a tese de que a revolução democrática se transformaria em socialista.
O fato de defender que, uma vez concluída uma revolução o proletariado se preparasse para outra, não significa que previu que essa mecânica ocorreria durante a revolução. Ao contrário, Lênin julgava “impossível a libertação completa do proletariado”, já que as condições objetivas e subjetivas ainda não estavam maduras. E tachava de “otimistas mais cândidos” os que opinavam o contrário.
Por mais que Lênin defendesse a continuidade da revolução, por mais que emprestasse um caráter ininterrupto a ela e que defendesse resolutamente que a “ditadura revolucionária democrática” seria apenas a premissa para a luta pelo socialismo, seu prognóstico ainda estava influenciado pelo esquema etapista.
Portanto, Lênin não acreditava – ou pelo menos dava como muito pouco provável – que a revolução democrática se convertesse em socialista. Neste sentido, a teoria de Lênin neste período está muito mais próxima da concepção de Marx e Engels. Existia, portanto, uma profunda diferença entre o “continuísmo revolucionário” defendido por Marx, Engels e Lênin em “Duas táticas”, do que defendia Trotsky na revolução permanente. Por mais que Trotsky tenha se inspirado na teoria de revolução permanente ou ininterrupta de Marx e Engels, a verdade é que uma é distinta da outra. Como sustentou o próprio Lênin, citado por Trotsky (2011, p. 248), “antes da revolução de 1905, Trotsky criou uma teoria original e particularmente significativa hoje, a teoria da revolução permanente […]”.
Se não se reduz o tema a um problema semântico, um dos elementos centrais que caracterizam a revolução permanente de Trotsky é precisamente seu fator ininterrupto. Trotsky afirmava que seria permanente e ininterrupta porque, dadas as condições objetivas e subjetivas, a revolução democrática conduziria à ditadura do proletariado. Para Lênin, não. Só depois de um determinado período, necessariamente capitalista, ainda que sob um governo revolucionário provisional, é que as condições estariam dadas para a luta pelo socialismo. Por isso sustentou que “tempo virá — quando tiver terminado a luta contra a autocracia russa, quando tiver passado na Rússia a época da revolução democrática […]. Pensaremos, então, diretamente, na ditadura socialista do proletariado […]” (LENIN, 1977, p. 77).
Como é sabido, os tempos na política tem sua importância. O que Trotsky previu como parte do mesmo processo, Lênin separou em dois. O que Trotsky prognosticou como parte da mesma dinâmica, Lênin dividiu em duas etapas distintas. Para Trotsky a revolução democrática era o início da socialista. Para Lênin, neste momento, o início da revolução socialista nos países avançados da Europa. Foi essa separação em duas partes que mais tarde, depois da revolução de fevereiro, muitos bolcheviques se agarraram para defender o governo provisório na Rússia. Como observou Trotsky (2007b, p. 33-34)
[…] o período consecutivo à Revolução de Fevereiro poderia ser considerado quer como um período de consolidação, de desenvolvimento ou de conclusão da Revolução democrática, quer como um período de preparação da Revolução proletária. O primeiro ponto de vista não só foi adotado pelos mencheviques e os socialistas-revolucionários, como por um certo número de dirigentes bolcheviques.
O que determina o caráter ininterrupto é o todo e não a soma das partes. Pensar a revolução em duas etapas, separadas em fases distintas é diferente de pensá-las como parte do mesmo processo. O limite da teoria de Lênin, que herdou de Marx e Engels, foi precisamente o de separar dois processos que faziam parte do mesmo conjunto.
O que Trotsky fez foi sistematizar, dar coerência e levar até as últimas conseqüências a idéia de revolução ininterrupta e permanente de Marx e Engels. Ele não somente concluiu que o mais provável seria que as tarefas democráticas se combinassem com as tarefas socialistas, como deu um fundamento científico para esse processo, utilizando a lei do desenvolvimento desigual e combinado pra explica-la.
O que era uma possibilidade em Marx, Engels e até em Lênin, Trotsky tratou como o mais provável. A hipótese teórica elaborada por Marx e Engels, segundo a qual seria possível uma ruptura e um encadeamento dialético entre duas etapas distintas do desenvolvimento histórico, Trotsky aprofundou e levantou como a hipótese mais provável da revolução nos países de economia tardia. Fez disso sua teoria, com leis e hipóteses que ao fim se comprovaram pela revolução russa.
Por isso, apesar da semelhança de forma, a teoria da revolução permanente de Trotsky é uma superação dialética da teoria de revolução ininterrupta ou permanente de Marx e Engels. Só mais tarde Lênin se aproximaria dessa posição.
Lênin supera concepção etapista
Em abril de 1917 Lênin escreve suas famosas “Teses de Abril”, na qual defende aberta e irredutivelmente a tomada do poder pelos sovietes. O que se passou? Teria Lênin se convertido em trotsquista, como muitos o chamaram na época? Ou foi obrigado a antecipar o que em sua concepção de continuísmo revolucionário só estava previsto para bem mais tarde? O que mudou na vida de Lênin ou na realidade que o levou a abandonar seu esquema etapista?
Há uma série de hipóteses acerca dessa mudança nos rumos da teoria de Lênin.
Uma primeira hipótese é a que insiste na mudança da orientação de Lênin após seus estudos da dialética de Hegel e a erupção da Primeira Guerra Mundial. De fato, estes dois elementos incidiram fortemente nas elaborações de Lênin.
Após a eclosão da Primeira Guerra Mundial, durante seu exílio na Suíça, Lênin elabora o que ficou conhecido como “Cadernos sobre a dialética de Hegel”, expressando o resultado de seu encontro crítico com a filosofia que para ele seria imprescindível para a compreensão de “O Capital” de Marx.
Lênin leu “A ciência da lógica” de Hegel entre setembro e dezembro de 1914. Como assinalaram Lefebvre e Guterman (2011, p. 9), “no momento em que tantos intelectuais entraram a serviço da polícia política dos cérebros, Lenin, solitário no mundo, sustentava uma visão universal, uma concepção lógica da existência – e sua visão prepara a sua ação”.
De fato, a leitura de Hegel provocou uma inflexão na leitura sobre a dialética, distinta do que defendera em textos anteriores. Mas teria sido suficiente esse fato, em conjunto com o impacto da Guerra Mundial, para Lênin rever sua teoria revolucionária?
Presume-se que esses dois elementos, por mais diretamente que tenham afetado a obra de Lênin, não foram suficientes para que ele revesse suas posições sobre o caráter da revolução na Russia. Foram seguramente partes de um processo de amadurecimento do dirigente russo, mas não suficientes.
Por exemplo, em 1915, um ano após suas leituras de Hegel, a propósito da política dos revolucionários frente à guerra, Lênin (1983, p. 170-171) sustentava que
a guerra civil a que exorta a socialdemocracia revolucionária na época presente é a luta do proletariado com as armas na mão contra a burguesia, pela expropriação da classe dos capitalistas nos países capitalistas avançados, pela revolução democrática na Rússia (república democrática, jornada de oito horas e confiscação das terras dos latifundiários), pela república nos países monárquicos atrasados em geral, etc.
Lênin, mesmo em 1915, um ano após o início da guerra, ainda fazia uma diferenciação das revoluções “socialistas” nos países de capitalismo avançado, e das “revoluções democráticas” nos países de economia tardia.
Em outubro de 1915, volta à tese defendida por Marx e Engels de que, impossibilitadas historicamente de se transformarem em socialistas, as revoluções democráticas nos países de economia pré-capitalista ou asiática poderiam pelo menos cumprir o papel de irradiar a revolução socialista nos países de economia capitalista avançada. E, quem sabe, retornar até elas. Assim, “é objetivo do proletariado da Rússia levar a revolução democrática burguesa na Rússia a suas últimas conseqüências com o fim de incendiar a revolução socialista na Europa” (LÊNIN, 1984, p. 52).
Não somente Lenin defende que a revolução socialista é mais provável nos países da Europa, como defende que a revolução democrática na Rússia é praticamente um “estopim”, um meio pra revolução socialista européia. A influência de Marx e Engels sobre Lênin reaparece sem disfarces.
Essa concepção teórica que coloca a revolução socialista como mais provável nos países de economia capitalista avançada atravessará todas as elaborações de Lênin no período de 1915. Neste ano não há nada de novo que comprove a tese segundo a qual foram os estudos de Hegel e a eclosão da Segunda Guerra Mundial que permitiram a superação do etapismo em Lênin.
Uma outra hipótese é a de que houve uma inflexão no pensamento de Lênin no ano de 1916, quando então são elaborados seus estudos que resultaram na publicação de “Imperialismo, fase superior do capitalismo”.
O problema da questão nacional e colonial surge neste período como uma das preocupações centrais de Lênin. E o estudo da dialética também parece pulsar entre as elaborações do dirigente russo. Como afirmou em um de seus textos a propósito das guerras nacionais
está claro que a tese fundamental da dialética marxista consiste em que todas as fronteiras, tanto na natureza como na sociedade, são relativas e variáveis, que não existe nem um só fenômeno que não possa, em determinadas condições, transformar-se em sua antítese. Uma guerra nacional se transformar em imperialista ou vice-versa. (LENIN, 1985b, p. 5).
São freqüentes, em 1916, passagens nas obras de Lênin com argumentos antecedidos por explicações contendo as leis da dialética de Hegel.
Após “Imperialismo, fase superior do capitalismo”, Lênin passa a retomar com força a tese de Marx e Engels sobre uma “revolução reverberada”. No caso, seriam guerras de libertação nacional que poderiam levar a guerras imperialistas ou o contrário. E também guerras democráticas nos países coloniais de libertação nacional que levariam a revoluções socialistas nos países avançados. Como sustentou Lenin (1985a, p. 58), “a dialética da história é tal que as pequenas nações, impotentes como fator independente na luta contra o imperialismo, desempenham seu papel como um dos fermentos ou bacilos que ajudam a que entre em cena a verdadeira força contra o imperialismo: o proletariado socialista”.
Lênin retoma mais uma vez a tese de revolução permanente semelhante à que Marx e Engels debateram acerca da luta anti-colonial da China contra a Inglaterra. Tanto numa como noutra situação a hipótese defendida seria de que lutas insurrecionais, guerras ou revoluções nos países oprimidos poderiam reverberar nos países opressores revoluções operárias que levassem à luta pelo socialismo, pondo um fim na opressão de um país de capitalismo avançado contra o do país colonizado. A diferença reside no fato de que enquanto para Marx e Engels essa fosse uma hipótese, Lênin sustenta que na fase imperialista as guerras de libertação nacional seriam “inevitáveis”. Como afirmou, “na época do imperialismo não só são prováveis, senão inevitáveis, as guerras nacionais das colônias e semi-colônias” (LENIN, 1985a, p. 58).
Portanto, a partir de 1916, Lênin passa a localizar a situação da Rússia no marco do imperialismo mundial. Desta forma, as tarefas democráticas de libertação nacional passam a ser vistas também como parte da luta pelo poder por parte do proletariado. Mas, por mais que se aproxime da teoria da revolução permanente de Trotsky, Lênin ainda não dá como provável a revolução socialista na Rússia, colocando essa possibilidade apenas para os países de capitalismo avançado. Por exemplo, quase no final de 1916, Lênin (1985c, p. 117) ainda sustentava que “o socialismo será realizado pela ação unida dos proletários, mas não de todos os países, senão de uma minoria deles que tem chegado ao grau de desenvolvimento do capitalismo avançado”.
Assim, mesmo defendendo que a revolução seria mundial, Lênin não coloca o problema da revolução socialista na ordem do dia para os países coloniais. O que, sim, ele defende é que a tarefa democrática de libertação nacional nos países colonizados poderia irradiar a luta pelo socialismo nos países de capitalismo maduro. Revoluções democráticas nos países coloniais que impulsionam revoluções socialistas em países colonizadores, tal é a ideia de revolução ininterrupta em Lênin.
Tudo indica, portanto, que a superação da fórmula “ditadura revolucionária democrática do proletariado e camponeses” só foi superada mesmo depois dos acontecimentos de fevereiro de 1917.
Seguramente os estudos sobre a dialética de Hegel ajudaram-no a ter uma visão mais global sobre o problema da revolução mundial. A eclosão da Segunda Guerra Mundial descortinou as contradições entre países colonizados e colonizadores. O estudo do imperialismo permitiu prever como inevitável o que até então era apenas uma hipótese. Mas provavelmente foram os próprios acontecimentos na Rússia que emprestaram os elementos que faltavam para Lênin superar sua visão etapista na Rússia.
Essa hipótese é levantada pelo próprio Trotsky (2007a, p. 300), que sustentava que Lênin “não substituiu a fórmula da ditadura democrática por qualquer outra fórmula, mesmo condicional ou hipotética, até o início mesmo da Revolução de Fevereiro”.
Objetivamente falando, a luta pela queda do czarismo confirmou o papel covarde que a burguesia teria na revolução. Por um lado mostrou os limites da teoria dos mencheviques. Por outro, mostrou que as massas poderiam mais.
O ressurgimento dos sovietes foi outro elemento importante que abriu uma situação de duplo poder que inviabilizava soluções intermediárias. Com a subida do governo provisório, não estava mais colocada a questão de participar desde fora ou de dentro do governo. A questão estava colocada entre entregar o poder à burguesia ou aos sovietes. A dualidade não permitia solução de compromisso. Como disse Trotsky (2007a, p. 298), “ninguém tinha previsto este regime”.
Esse parece ter sido o elemento decisivo que levou Lênin a mudar totalmente sua política anterior. Ao invés de um, surgiram dois regimes na Rússia. Um formado pelo governo provisório e, o outro, pelos sovietes.
O papel dos camponeses também ficou claro, já que, mesmo sendo maioria na população, não conseguiram cumprir um papel de independência e de direção do processo. Cabia ao proletariado essa tarefa.
Lênin então concluiu que as tarefas democráticas, em especial a reforma agrária, não poderiam mais ser realizadas nos marcos do regime democrático. Elas só poderiam ser realizadas nos marcos da ditadura do proletariado.
A metodologia de “análise concreta de situações concretas” contribuiu para que Lênin revisasse sua fórmula presente em “Duas táticas”. As famosas “Teses de abril” não foram só um ajuste, mas uma mudança de qualidade na orientação do partido bolchevique.
Embora Lênin nunca tivesse reconhecido em palavras sua adesão à teoria da Revolução Permanente, as “Teses de abril” o aproximam mais das formulações de Trotsky que as de Marx e Engels. Por algum motivo a alcunha de “trotsquista” sobre Lênin.
É nas “Teses” que Lênin transforma em muito provável o que até então estava certo apenas para os países imperialistas. Tal mudança não ocorreu sem prejuízos. Inadvertidos, muitos bolcheviques, presos ainda ao esquema etapista, defendiam a participação no governo provisório.
Como dissemos, a metodologia de “análise concreta” tem a virtude de permitir com que a realidade e não os esquemas ditem os passos da política. Mas, por ser muito aberta, também dá margens para indecisões. Como de uma certa maneira todos lançaram seus prognósticos, muitos bolcheviques não tiveram a mesma capacidade de Lênin. Ficaram reféns de uma concepção desenvolvida desde a primavera de 1905.
Enfim, estima-se que a superação do etapismo de Lênin se deu efetivamente em abril, como o reconhece o próprio Trotsky1.
Conclusão
Não é o propósito aqui, mas há um debate se a “ditadura democrática” de Lênin chegou a ser confirmada, quando isso ocorreu e em quais condições. O próprio Trotsky (2007a, p. 298) levanta a hipótese de que “após a vitória da insurreição, os operários e soldados eram senhores da situação. Neste sentido, parecia possível dizer que uma ditadura democrática dos operários e camponeses foi estabelecida”. Trotsky coloca essa hipótese, mas como uma situação relâmpago entre a insurreição e o estabelecimento da ditadura do proletariado.
Com as revoluções do pós-guerra, Moreno (1992) introduziu outro tema relacionado às revoluções democráticas. Não somente o proletariado poderia substituir a burguesia nas revoluções democráticas, como a pequena-burguesia poderia substituir o proletariado nas revoluções socialistas. E, diferente do que previu Trotsky, esse tipo de revolução foi a regra, enquanto a de “outubro” na Rússia, foi a exceção.
Entretanto, para Moreno, mesmo no caso em que a pequena-burguesia tomou a direção do processo, não significou que o caráter da revolução fosse burguês, posto que suas direções, pela “falta de amadurecimento da classe trabalhadora e por necessidade”, foram obrigadas a fazer a “revolução democrática primeiro e socialista depois” (MORENO, 1992, p. 43).
Moreno descortinou uma novidade histórica. Não a de que esse processo engendrou uma “ditadura democrática”, mas que pela primeira vez na história uma revolução socialista foi levada a cabo pela pequena-burguesia. Mesmo admitindo que uma direção pequeno-burguesa, por sua natureza social, não poderia realizar “o poder operário, democrático, etc”, Moreno (1992, p. 43) abriu um novo debate sobre o papel que poderia ou não cumprir a pequena-burguesia numa revolução.
Do ponto de vista histórico, a preocupação de Lênin quanto ao papel que poderia cumprir a pequena-burguesia na revolução era perfeitamente legítimo. Por isso ele deixou em aberto essa possibilidade. É verdade que Lênin não cogitou que a pequena-burguesia faria uma revolução socialista no lugar da classe operária, mas o fato de usar uma “fórmula algébrica” o permitiu ser mais flexível a propósito de um possível protagonismo revolucionário da pequena-burguesia em detrimento do proletariado. Esse protagonismo da pequena-burguesia não se confirmou na Russia, mas nem por isso deixou de se confirmar na história. O que não se confirmou foi o tipo de regime originado do processo revolucionário. E se o foi, de forma quase meteórica.
Com as revoluções do pós-guerra, foi aberta a seguinte disjuntiva: ou as revoluções dirigidas pela pequena-burguesia se transformaram na ante-sala da revolução socialista ou definharam. A história está dando seu veredicto, com a restauração dos ex-estados operários. Mas a hipótese teórica que Lênin levantou em “Duas táticas” sobre o papel que poderia cumprir a pequena-burguesia na revolução não foi invalidada pela história, embora não tenha sido confirmada na Rússia. Da mesma forma, a ideia de uma revolução por etapas também não foi confirmada.
Por mais importante que seja para a literatura marxista, a concepção de revolução defendida por Lênin antes de 1917 foi superada pelos acontecimentos históricos. A preocupação em localizar essa concepção etapista de Lênin no marco da evolução do pensamento revolucionário, está justificada pela compreensão de que mesmo ele abandonou suas antigas posições, precisamente porque foram superadas pela realidade.
Não se trata de discutir a supremacia teórica da revolução permanente de Trotsky em oposição à de Lênin, mas de acompanhar a dinâmica do processo, os saltos nas elaborações, as contradições e os elementos de (des)continuidade que Lênin estabeleceu com as teorias que o antecederam, de Marx e Engels. Somente assim se pode captar o processo de formação na elaboração da teoria revolucionária de Lênin e seu amadurecimento como incontestável dirigente da maior revolução operária da história. Mesmo porque, como sustentou Moreno (1992, p. 30), embora “os bolcheviques, em relação ao sujeito social, não estão tão perfeitos como Parvus e Trotsky” tiveram o mérito de que, “tomando os dois fatores, são os que estão mais próximos da verdade, porque os outros negam totalmente o partido”.
O objetivo de discutir a superação do etapismo em Lênin consiste em apreender a dinâmica de sua elaboração, não para valorizar seus limites, mas para realçar o alcance de sua metodologia de “análise concreta de situações concretas”.
Durval Wanderbroock Junior
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Notas
1 Segundo Trotsky (2007a, p. 300), a mudança no esquema de Lênin se deu “pela primeira vez em suas teses de 4 de abril”.