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Violência contra as mulheres: o acórdão da triste realidade

Não fosse a onda de indignação que inundou as redes sociais quando o caso veio a público e teríamos dificuldade em situarmo-nos no tempo – sim, estamos em Outubro de 2017. O acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido por Neto de Moura e assinado por Maria Luísa Arantes, expõe o machismo retrógrado que constitui as estruturas judiciais portuguesas no tratamento de casos de violência contra as mulheres.

Com uma argumentação que nos deixa na dúvida sobre a formação do responsável pelo processo, o conteúdo e consequências que envolvem as conclusões que são apresentadas no documento são mais graves que a possibilidade de o confundirmos com o padre ortodoxo da igreja do nosso bairro. Todo o texto é insólito e desencadeia a revolta de qualquer um que entenda a necessidade de ser feita justiça a uma pessoa que foi perseguida, insultada, agredida, vítima de terrorismo psicológico e que foi inclusive ameaçada de morte. Esta mulher e a filha suportaram a violência, a opressão e o medo que só numa sociedade permissiva no que toca às questões do machismo tem espaço para acontecer. Cito algumas das frases ditas por um dos acusados: “andas com outros homens, és uma puta, vou-te matar”, “durante a semana fui várias vezes ao salão da tua mãe para a matar, a sorte dela era não estar lá”.

O juiz termina suportando-se na Bíblia para justificar toda a violência de que esta mulher foi vítima e que caso tivesse terminado em feminicídio seria, nas suas palavras, compreensível porque o que aqui está em questão é a dignidade do homem sendo que ela, a mulher, não passa de uma adúltera. É um escândalo que num Estado laico um juiz invoque um símbolo religioso numa sentença. Repudiamos completamente este acontecimento mas achamos importante enquadra-lo, para melhor compreensão do fenómeno, nas lacunas e necessidades que continuam a existir sobre este tema.

A lei é importante mas não chega

Pelos piores motivos fomos confrontados com a realidade em que vivemos no que diz respeito à resposta que é dada aos casos de violência sobre as mulheres. Desde o ano 2000 que a violência doméstica passou a ser considerada crime público mas, concretamente, o que isso significa? De um ponto de vista legal esta alteração foi um passo importante pois significou assumir-se que se trata de um problema real e que é responsabilidade de todos e de todas. O velho dito popular “entre marido e mulher não se mete a colher” deveria ter dado lugar a uma assunção do problema por todos os que testemunham violência nas relações no entanto, sabemos que não é assim. Basta estarmos minimamente atentos à nossa volta para apontarmos exemplos de mulheres que sofrem ou sofreram em relações abusivas. Se formos à raiz do problema encontramos rapidamente vários motivos porque têm dificuldade em sair dessas situações e que em parte se reflete no caso que hoje testemunhamos nas notícias. Começa com o primeiro contacto com a justiça para a apresentação de uma queixa. Os primeiros profissionais que a mulher encontra não têm preparação para lidar com estes casos sendo eles mesmos, na maioria das vezes, reprodutores de comportamentos machistas. A mulher que num momento destes já se encontra fragilizada psicologicamente dado às condições em que vive e pressionada por todo o preconceito da sociedade, vê-se logo desencorajada à apresentação da queixa. Quando o processo segue para tribunal a imprevisibilidade da sensibilidade ou não dos profissionais que estarão responsáveis pelo veredicto retira logo à partida esperança de que seja feita justiça e que alguma de dignidade seja devolvida à vítima. No meio de toda esta desproteção que é oferecida pelo sistema judicial temos ainda a questão económica, que é central. As mulheres vêem-se muitas vezes presas a situações de violência por não verem alternativas objetivas que lhes deem segurança para mudar de vida. O desemprego afeta maioritariamente as mulheres, são os seus trabalhos que são mais vezes pagos com o salário mínimo nacional e que mais se encontram empregadas a part-time para cobrir a dupla e tripla jornada de trabalho com as tarefas domésticas e cuidado a terceiros. Sem garantias de reunir as condições para conquistar uma situação autónoma com uma casa para si e, se for o caso, para os filhos sair de uma relação violenta não chega por vezes a ser sequer uma opção.

O governo tem que assumir responsabilidades

A decisão do juiz do Porto é retrógrada e vergonhosa mas também é parte dos problemas que continuam a estar por resolver no país para combater a situação de opressão em que vivem as mulheres. Como foi descrito acima, falta uma vasta e complexa capacidade de resposta das instituições que devem estar ao serviço da população para resolver com seriedade o problema da violência sobre as mulheres. O combate exige a criação de departamentos nas esquadras com profissionais mulheres preparadas para o acolhimento destes casos com um serviço disponível 24h/24 e com uma linha telefónica aberta no mesmo horário com uma equipa pronta a atuar. Devem ser disponibilizadas mais casas abrigo que apresentem de facto uma situação segura para a mulher sair da casa onde vive e começar a criar as condições para o estabelecimento da sua autonomia. É necessário a criação de equipas nos tribunais especializadas no tratamento e resolução justa dos casos que se apresentem sem ficarem sujeitos à apreciação moral do responsável. É preciso acabar com a desigualdade salarial entre homens e mulheres no desempenho das mesmas funções e com o desemprego. É preciso atribuir subsídios de natalidade e apoio à infância cujos valores representam uma ajuda real na criação das crianças e jovens e alívio da carga económica da mãe. A lista ainda é longa sobre as medidas que podem ser tomadas para enfrentar a violência estrutural e institucional de que as mulheres são vítimas, mas com base nisto perguntamos: o que fizeram os governos para caminhar neste sentido? O governo PS apoiado pelo BE e PCP tem falhado redondamente na criação das condições necessárias para combater este problema. Não basta agora lamentar o sucedido e mostrarem-se preocupados com a legitimação que provoca a linguagem utilizada no acórdão como veio declarar a Secretária de Estado. Só as mulheres unidas e organizadas nas ruas poderão alcançar as mudanças necessárias para que medidas sejam tomadas e que verbas sejam canalizadas para a criação de estruturas e contratação de profissionais competentes para a proteção e segurança das mulheres. Se não o fizermos estamos condenadas pois ficará sempre no fim da lista prioridades do governo. Todos os dias mulheres continuam a sofrer em silêncio por se sentirem indefesas e sem qualquer confiança nos organismos estatais para as ajudarem a sair dessas situações. Basta!

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