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Pedrógão Grande: uma tragédia de mais de 30 anos

Portugal arde há décadas sob a responsabilidade dos sucessivos Governos PS, PSD/CDS.

Tinha-se tornado já um acontecimento banal, previsível, expectável. Até já tinha sido balizado no calendário anual pelo Instituto da Conservação da Natureza e Florestas. Segundo este organismo estatal, o período crítico é de 1 de Julho a 30 de Setembro. O Verão lusitano é assim desde há mais de 30 anos.

Alguns anos têm sido mais devastadores que outros, como 2003 e 2005. Alguns anos têm sido mais mortais que outros, como 2013, quando 9 bombeiros perderam a vida.

A política dos sucessivos Governos PS e PSD/CDS-PP foi-nos habituando à exaustiva e sensacionalista cobertura mediática, às lágrimas de quem tudo perde na voragem das chamas, ao património natural que é anualmente destruído, à caça policial ao pirómano, etc. Todos os anos, há umas semanas de debate público sobre prevenção de incêndios, sobre gestão do território, sobre política florestal, sobre desertificação, sobre a moldura penal aplicada ao crime de fogo posto, se devíamos ou não mandar os presos limpar as matas, etc.

Assim que começam a cair as primeiras chuvas do Outono, elas varrem o debate, e este fica interrompido até ao 1 de Julho do ano seguinte.

Este ano tudo parece ter começado mais cedo, ainda antes do próprio Verão ter começado. Até ao momento 64 pessoas perderam a vida, num choque automóvel em cadeia, numa estrada transformada num túnel de fogo, intoxicadas e carbonizadas nos seus próprios veículos, tentando fugir para o exterior, ou nas suas próprias casas. Este é o mais trágico incêndio florestal alguma vez ocorrido em Portugal de que há memória. Vítimas inocentes, famílias inteiras devoradas pela fatalidade de um incêndio florestal.

Mas essa palavra, “fatalidade”, que vem do latim fatum e que quer dizer “destino”, pressupõe que os acontecimentos de Pedrógão foram algo de imprevísivel, inevitável, uma infeliz sucessão de eventos que nada nem ninguém poderia ter adivinhado, um daqueles acasos trágicos que vão pontuando a existência humana.

Falaram-nos de um raio e de uma árvore seca, falaram-nos do calor e do vento, agora e apesar de inicialmente a GNR descartar a hipótese de fogo posto, fala-se em mão criminosa…

Tendo ou não sido fogo posto, existe sim mão criminosa. Falemos das mãos criminosas que nas últimas décadas têm sido responsáveis por estas 64 mortes e outras tantas mais, de civis e bombeiros.

Falemos dos governos de Cavaco Silva, que marcam o triunfo do Eucalipto em Portugal, essa espécie invasora que vinha, paulatinamente, a afirmar-se no território português. Álvaro Barreto, Ministro das Pescas, da Agricultura e Alimentação de vários Governos Cavaco, elevou a árvore que os australianos chamam de árvore-gasolina a pedra de toque da nossa política agrícola. Ele que já fora um dos carrascos da Reforma Agrária, preparou o nosso território para a PAC. Todos nós sabemos o que se passou: a agricultura portuguesa não se modernizou, o abandono dos campos foi incentivado, as monoculturas de cereais triunfaram, muitas terras foram abandonadas e ocupadas, assim, pelo Eucalipto, tão rentável quanto destrutivo. O directório da então CEE retirou-nos a soberania alimentar e a SOPORCEL, de que Barreto fora CEO, passou a ser livre de plantar, onde hoje deveriam crescer pomares e floresta autóctone, o que então foi apelidado, por esse governo, de “Petróleo Verde”. Todos os Verões desde então, temos tido “marés negras”.

Falemos da desertificação do interior do país, de que todos os governos desta república têm sido cúmplices. Para além da destruição da agricultura, falemos do desmantelamento da ferrovia, do fecho de unidades de saúde, do fecho de escolas, do fim das SCUTs, da privatização e desmembramento da Rodoviária Nacional, da “litoralização” dos Orçamentos do Estado. Quando não há como viver no interior, ninguém trabalha a terra, ninguém vive dela. Queremos uma população envelhecida e em vias de extinção a limpar o mato?

Falemos de José Sócrates e o seu Ministro da Agricultura, Jaime Silva, que, em 2006, extinguiram o Corpo Nacional da Guarda Florestal e integraram os seus trabalhadores no Serviço de Protecção da Natureza e do Ambiente (SEPNA), da GNR. Nós assistimos, ao longo dos anos, às múltiplas fusões de institutos e organismos estatais que são feitas para reduzir despesa pública, ou seja, neste caso, meios de prevenção e actuação. O desaparecimento dos guardas florestais é a perda de uma profissão com um conhecimento do território insubstituível, como se vê. O mesmo aconteceu com a Direcção Geral dos Recursos Florestais. Depois do Instituto de Conservação da Natureza e Biodiversidade e da Autoridade Florestal Nacional temos hoje um Instituto de Conservaçaão da Natureza e Floresta, criado no Governo de Passos Coelho com o Plano de Redução e Melhoria da Administração Central (PREMAC). A Ministra da Agricultura era então Assunção Cristas. É impressionante a voragem com que, desde que começou a era da austeridade, no tempo de Durão Barroso e Ferreira Leite, institutos e organismos, nos mais variados sectores do Estado, foram desaparecendo em fusões até chegarmos a entidades hoje sub-orçamentadas. O Estado é cada vez mais anémico. As vítimas desta destruição do Estado Social são, habitualmente, invisíveis para a maioria da população.

Assunção Cristas, actual líder do CDS-PP, deu também uma forte machadada na política florestal quando, em 2013, publicou a lei que permitiu a mais completa liberalização da plantação de Eucaliptos em Portugal. Quem conhece a EN 236, sabe que é uma das muitas estradas portuguesas que são autênticos túneis de Eucaliptos. Tal como a ponte Hintze Ribeiro, em 2001, não era a única ponte em risco mas apenas a primeira a matar em massa, há outras estradas potencialmente mortais em caso de incêndio, por esse país fora, mas algo nos diz que será muito mais difícil erradicar o Eucalipto do nosso território do que foi inspeccionar pontes em risco há 15 anos atrás.

Lembremo-nos que em Janeiro, a Altri ameaçou desinvestir em Portugal “se o eucalipto continuasse a ser demonizado”, que Capoula Santos dizia, em Março, no contexto da discussão em torno da reforma florestal que “queremos produzir muito eucalipto em menos terreno” e que havia “muito eucalipto onde não pode estar e há terrenos onde é possível produzir o dobro”. Dias antes da tragédia, 9 milhões de euros, em fundos europeus, iam ser canalizados para um concurso para a promoção e apoio da plantação de Eucalipto. Não vai ser com este governo que regressarão os sobreiros,os carvalhos e os pomares… É a natureza do sistema económico em que vivemos que o lucro se sobrepõe acima de quaisquer considerações ambientais ou do bem-estar das populações. Nessa mesma semana, em Inglaterra, num prédio onde viviam famílias da classe trabalhadora, muitas delas imigrantes, também desapareceu em chamas, contabilizando-se até ao momento 79 vítimas, tudo porque o edifício foi reabilitado com um material altamente inflamável, mais barato, para poupar uns trocos.

Os acontecimentos do fim de semana passado espelham os últimos 30 anos da política portuguesa. A Política Agrícola Comum destruiu a produção agrícola e rasgou feridas profundas no território português, estando na origem de crimes e catástrofes ambientais, condenando o interior do país ao definhamento demográfico e económico. O actual Governo PS vangloria-se de um défice baixo, que se explica porque, entre outras coisas, mais uma vez se cortou despesa nos Bombeiros, na Protecção Civil, nos engenheiros florestais, na gestão e vigilância do território e das florestas.

Os fundos que poderiam ter salvo vidas foram usados para salvar a banca e para pagar uma dívida odiosa àqueles que, há 30 anos atrás, em Bruxelas, traçaram o plano de destruição da economia nacional. Por fim, temos o SIRESP, que não funcionou, mais uma PPP, na qual participaram o Grupo Espírito Santo, PT, Caixa Geral de Depósitos, Esegur, Motorolla e a SLN ligada ao antigo BPN, e em que o Estado gastou mais de 500 milhões de euros.

Os que que lucram com mares de eucaliptos, com madeira de zona ardida vendida em saldo, eles e os seus cúmplices do costume nas altas esferas do Estado, no PS, no PSD e no CDS, eles são o factor comum em todas estas tragédias. Eles são as mãos criminosas que todos os anos incendeiam o país. E é assim que temos, no espaço de dias, duas grandes tragédias em grande escala, na Europa do Século XXI, em que gente inocente é imolada no fogo para garantir o lucro de um punhado de empresários e os seus aliados na máquina do Estado.

Marcelo Rebelo de Sousa, assim que chegou a Pedrógão Grande decretou que “mais nada poderia ser feito”, dando toda a cobertura à actual Governação do PS. Por sua vez, BE e PCP têm-se ouvido muito pouco. Se estivessem na oposição, a sua crítica era para além de audível, seria também visível, denunciadora dos erros e omissões, exigente de alterações políticas. No entanto, têm-se ficado pelo quase silêncio, à espera que o seu apoio ao actual governo não saia demasiado beliscado, à espera que o actual governo saia o menos beliscado possível.

Queremos o fim da eucaliptização da floresta portuguesa! Queremos ordenamento do território! Queremos medidas (transportes, escolas, habitação, emprego) que revertam a desertificação do país! Queremos investimento na prevenção e combate aos incêndios e outras catástrofes naturais e mais meios para a Protecção Civil e Bombeiros! Queremos a profissionalização de quem previne e combate os incêndios! Queremos uma política florestal que permita o regresso de espécies autoctones e a vigilância do território e a preservação do nosso património natural! Queremos uma nova política agrícola que permita a responsável utilização dos solos, garanta a nossa soberania alimentar e trave a litoralização do território! Exigimos que sejam apuradas responsabilidades e que, ao contrário de Entre-os-Rios ou as cheias na Madeira em 2010, a culpa não volte a morrer solteira, nem tudo volte a ficar na mesma, até ao próximo Verão, até uma nova catástrofe! Queremos a floresta protegida em vez da protecção dos interesses económicos!

 

Davide Santos

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