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Sarampo, uma tragédia evitável

Em Abril de 2017, a Europa regista já várias centenas de casos de sarampo notificados desde o início do ano. Em Portugal, esta quarta-feira dia 19, a doença acaba tragicamente com a vida de uma jovem de 17 anos.

O sarampo consiste numa infecção por um vírus, altamente contagioso que se propaga através da tosse, espirro ou contacto directo. Apesar de geralmente ter um curso benigno (febre, queixas respiratórias, rash – manchas no corpo), pode evoluir para complicações severas e potencialmente fatais como pneumonia ou encefalite (infecção do cérebro e/ou estruturas próximas).

Desde os anos 60 que existe uma vacina eficaz e relativamente segura que previne a infecção e as complicações graves da mesma. Uma das muitas conquistas da revolução portuguesa, foi precisamente a sua distribuição em massa no âmbito do plano nacional de vacinação a partir de 1974, permitindo a erradicação da doença neste país no virar do século XXI. Pelo mundo fora, as mortes por sarampo reduziram-se em cerca de 79% de 2000 a 2015 graças sobretudo à difusão da vacina. No entanto, ainda se verificam números muito elevados em regiões pobres de África e da Ásia, estimando-se anualmente um total de 20 milhões de casos e 134000 mortes. [1] Tal como se erradicou mundialmente a varíola nos anos 70-80 em parte graças à vacinação em massa, também se entende que o sarampo seja erradicável.

Não é simples apontar claramente os “culpados” ou as causas do actual surto, mas dois elementos facilitadores saltam à vista. Por um lado, a precariedade da infra-estrutura e recursos de saúde de regiões mais pobres do planeta, vítimas durante séculos do roubo colonialista e hoje em dia da pilhagem e exploração levada a cabo pelos mais ricos. Por outro, o fenómeno de recusa da vacina que ganhou alguma expressão em países com acesso à mesma, nas últimas décadas. Em concreto, foram criados medos infundados e amplamente refutados de que a vacina do sarampo estaria associada a manifestações de autismo.

Neste como noutros casos, a pseudociência pode resultar em graves perigos para a saúde, sobretudo quando serve dirigentes políticos e os interesses que os sustentam no poder. A este propósito, recordem-se alarvidades (perdão, “factos alternativos” como disse recentemente a porta-voz da Casa Branca) de Trump ao ter afirmado que o aquecimento global é uma mentira inventada pelos chineses ou o ex-presidente da África do Sul Thabo Mbeki ao ter negado que a SIDA é provocada por um vírus prevenível e parcialmente tratável, condenando indirectamente muitos naquele país a uma morte evitável.

Sim, as vacinas e os medicamentos alimentam normalmente os lucros das farmacêuticas. Da mesma forma, comprar carne ou legumes no supermercado em Portugal alimenta os lucros da Jerónimo Martins e da Sonae ou ligar o interruptor da luz alimenta os lucros do capital chinês da EDP. Se isto não nos motivar a passar fome ou a viver às escuras, também é lógico que não nos leve a ficar doentes desnecessariamente.

Como noutros sectores produtivos, a produção e distribuição de medicamentos, assim como os cuidados de saúde em geral, só servirão amplamente a humanidade se forem postas ao serviço das necessidades da população e não dos poucos que são donos de quase tudo. Se acrescentarmos a isto o facto de a saúde precisar de bem-estar material, como o atesta um estudo recente que identifica um baixo estrato sócio-económico como terceiro principal factor de risco (após o tabaco e a inactividade física) para uma morte prematura [2], podemos supor que a principal doença que a nossa espécie sofre é uma pandemia chamada capitalismo.


AT, Médico do Serviço Nacional de Saúde

 

1. WHO Measles Fact Sheet, Review 2017

2. Stringhini et al. “Socioeconomic status and the 25×25 risk factors as determinants of premature mortality: a multicohort study and meta-analysis of 1·7 million men and women” Lancet 2017; 389: 1229-1237

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