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Após o 8 de Março: pensar os próximos passos

O 8 de Março de 2017 foi um dia de luta assinalável em todo o mundo que ficará para a História. As grandes manifestações, as greves e as reivindicações das  trabalhadoras, pobres, LGBT’s e negras voltaram ao palco da luta das mulheres, depois de anos em que o feminismo se refugiou na academia e o 8 de Março foi transformado numa comemoração consumista e inócua.

Portugal não ficou isolado desta onda global. Em Lisboa, Porto, Setúbal, Coimbra, Braga e Vila Real milhares de mulheres saíram à rua. Num país onde é normal encarar o dia da mulher como uma comemoração onde se distribuem flores ou kits de maquilhagem, esta foi uma mudança importante. Durante décadas não houve no dia da mulher manifestações dignas deste nome nem qualquer mobilização ou luta. A primeira vitória foi que, em 2017, o 8 de Março foi de novo um dia de luta. Daqui em diante deverá ser sempre assim.

 

O movimento e as suas contradições

No cenário em que vive o país, de acalmia social, onde o movimento feminista é frágil ou inexistente, era inevitável que este avanço trouxesse consigo algumas dificuldades e debates. Para avançar e construir um forte movimento feminista é preciso fazer esses debates, com calma e seriedade.

Durante o século XIX e XX houve três grandes ondas feministas. A inicial, na viragem e início do século XX foi iniciada pelas sufragistas e  levou a movimentos radicais, como as greves que iniciaram a revolução russa ou a instauração do dia 8 de Março. A segunda vaga dá-se nos anos 60 e 70. O direito ao aborto, à igualdade salarial, aos contraceptivos ou ao divórcio foram conquistas conseguidas em vários países. Nos anos 90 uma nova vaga surgiu, agora centrada nas academias e que se expressava nas instituições como a União Europeia ou a ONU. Todas as vagas foram atravessadas por grandes divisões. Na primeira grande onda as mulheres trabalhadoras e burguesas lutaram juntas pelo direito ao voto – embora houvesse casos em que as sufragistas defendiam o voto só para mulheres de classes altas, como Beatriz Ângelo1 – mas quando as operárias faziam greve não tinham as patroas ao seu lado. A segunda grande vaga também foi marcada por grandes lutas de trabalhadoras pela igualdade salarial, junto com lutas que mobilizavam mulheres de todas as classes, pelos direitos reprodutivos e outras reivindicações que dizem respeito a todas as mulheres. Foi nesta altura que despontou também o movimento LGBT2. Também foi nesta época que mais avançou a institucionalização do dia das mulheres. O tardio reconhecimento do 8 de Março pela ONU, em 1975, serviu para que as lutas dessem lugar às comemorações, afastando do terreno as organizações tradicionais de esquerda, os sindicatos e as reivindicações das mulheres mais pobres. A vaga dos anos 90, após a queda do muro de Berlim e do suposto “fim da história”, foi fortemente marcada pela luta pela igual representatividade nas instituições e mais focada no “empoderamento” individual que na emancipação colectiva. Estas divisões entre um feminismo radical, anti-capitalista e o feminismo liberal são inevitáveis, dado que há mulheres de todas as classes e os anseios e problemas das trabalhadoras são diferentes, muitas vezes opostos, a de Ministras, Presidentes ou empresárias.

 

De Washington a Lisboa

Com a eleição de Trump, o epicentro do movimento feminista passaram a ser os EUA, expressando-se nas gigantescas manifestações de 21 de Janeiro. Também daí nascem duas estratégias opostas para o movimento. Nas ruas dos EUA juntaram-se, por um lado, as apoiantes de Hillary Clinton e do Partido Democrata, maioritariamente brancas, de classes médias e altas e as negras, imigrantes, jovens e precárias, vindas do apoio a Bernie Sanders, das lutas contra a violência racista, dos sindicatos e das organizações de esquerda. Esta união fez a força. Mas aponta para duas visões distintas. A do chamado “feminismo liberal”, de um movimento baseado em ONG’s e nas Universidades, centrado na questão da representatividade das mulheres no poder, preparando uma recandidatura de Hillary, de Michelle Obama ou outro líder do Partido Democrata. Outros sectores agruparam-se em torno do manifesto divulgado por Angela Davis3 “Por uma Greve Internacional Militante no 8 de Março”, com uma proposta internacionalista e anti-capitalista.4

Também em Portugal estas visões se expressaram. Após a manifestação do dia 25 de Novembro contra a violência machista, viu-se que era possível unir cada vez mais mulheres, associações, partidos e outras organizações na luta contra o machismo. Mas também que a manifestação foi usada como palco pelo governo, cujos ministros encabeçaram a manifestação para a anunciar uma suposta campanha nacional contra a violência. A campanha limitou-se a alguns cartazes espalhados pelo país, mas permitiu ao PS pousar como “amigo das mulheres”. Para o 8 de Março estavam em cima da mesa os mesmos perigos e potencialidades. As várias organizações de mulheres tiveram o mérito de se juntar para discutir as várias propostas, em vários fóruns em cada cidade. Naturalmente reproduziram-se divergências parecidas às do movimento internacional. Em Lisboa, a Assembleia Feminista propunha adesão à Paralisação Internacional de mulheres e a organização de uma manifestação até à Assembleia da República. Outros sectores da Rede 8 de Março centravam-se num evento/concerto em parceria com a Câmara Municipal, do PS5. Acabou por se construir num calendário comum, com diversos tipos de iniciativas. Noutras cidades, como Coimbra, trabalhou-se de forma unitária e as organizações feministas adoptaram o manifesto internacional e organizaram uma manifestação. A prática provou que foram as mobilizações na rua e o seu carácater combativo que fizeram que este 8 de Março fosse diferente.

 

Porquê manifestações separadas?

Se nos anos anteriores tinham faltado manifestações de mulheres, este 8 de Março houve em demasia. Além da manifestação do dia 8 de Março, em várias cidades, houve várias datas de convocatória. Em 57 países milhões de mulheres pararam no dia 8, porém em Lisboa a maioria das organizações de mulheres empenhou-se em fazer manifestações no dia 11. Parte da rede 8 de Março centrou-se numa manifestação no dia 11 e a CGTP e o MDM (Movimento Democrático de Mulheres, afecto ao PCP), que inicialmente ignoraram o movimento, marcaram uma manifestação no mesmo dia… noutra hora e local! Podia ter havido um grande movimento no dia 8 de Março. Caso a CGTP se tivesse empenhado de facto na mobilização podia ter havido paralisações. Isso obrigaria o governo a dar atenção ao assunto e colocaria o movimento de mulheres no centro da cena política portuguesa. A maioria das organizações apostaram no oposto. Infelizmente é um reflexo de não serem independentes das agendas partidárias, sobretudo do PS e dos partidos que o apoiam, BE e PCP. Por isso evitam colocar na rua um movimento que, inevitavelmente, vai chocar-se com o governo. Achamos legitimo e desejável a presença dos partidos de esquerda na luta feminista.  Porém, isso não pode servir para dividir o movimento conforme a “área de influência” de cada um ou evitar que se pressione o governo. Só assim se explica o inexplicável: que de manifestação nenhuma tenhamos passado para três, só em Lisboa! Uma grande manifestação unitária no dia 8 de Março, acompanhada de paralisações ainda que parciais ao trabalho teria colocando Portugal no mapa da luta mundial de mulheres.

 

Unidade, mobilização e exigência!

Em Portugal está colocada a hipótese de começar a criar um movimento feminista amplo e combativo. Como avançar? Aqui ficam algumas propostas. Unidade: existem diversos colectivos, associações, partidos e sindicatos que representam milhares de mulheres. Todos são bem vindos! Devem-se formar espaços amplos em que todos possam participar. Afastar partidos e sindicatos é afastar lutadoras: em Coimbra, por exemplo, essa atitude levou ao afastamento do sindicato dos têxteis que representa centenas de mulheres. Democracia e a transparência são a única garantia para um movimento independente. Mesmo quando não há possibilidade de trabalhar em movimentos comuns deve tentar-se fazer campanhas e mobilizações unitárias. Mobilização: há muitas formas de luta. Não desprezamos a produção teórica, as actividades culturais ou as festas. Mas só milhares de mulheres (e homens!) na rua podem obrigar os governos em todo o mundo adoptarem medidas que melhorem a vida das mulheres. Exigências: Queremos mudar o mundo e para isso temos de combater o poder instituído, a sociedade capitalista baseada na exploração e opressão. Esse foi o sentido do Manifesto internacional deste 8 de Março: “precisamos alvejar o ataque neoliberal em curso sobre os direitos sociais e trabalhistas (…) As condições de vida das mulheres, especialmente as das mulheres de cor e as trabalhadoras, desempregadas e migrantes, têm-se deteriorado (…) graças à financeirização e à globalização empresarial”. Também em Portugal é preciso traduzir este enfoque em exigências concretas: igualdade salarial, socialização do trabalho doméstico, com creches, lares e lavandarias públicas, investimento sério no combate à violência machista, à LGBTfobia e ao racismo, ao assédio sexual e moral etc. Só assim traremos para a luta as mais pobres, exploradas e oprimidas.

 

NOTAS

1 Beatriz Ângelo, médica e sufragista, foi a primeira mulher a votar em Portugal, nas eleições para a Assembleia Constituinte de 1911. Apesar, supostamente, só os homens terem direito ao voto, valeu-de a lei permitir o voto de todos os “portugueses chefes-de-famíla”. Por ser viúva e sustentar os seus filhos e valendo-se que o masculino é, na nossa língua um género “neutro”, conseguiu em tribunal que lhe fosse reconhecido o direito de votar. a lei foi alterada no ano seguinte, com a especificação de que apenas os chefes de família do sexo masculino poderiam votar. Beatriz Ângelo foi membro da Liga Republicana de Mulheres Portuguesas e fundadora e presidente da Associação de Propaganda Feminista, com a qual veio a romper, mais tarde, porque as suas companheiros defendiam o direito ao voto para as mulheres de todas as classes enquanto ela defendia que só as mulheres de classes altas votassem.

2 Podemos dizer que o movimento LGBT moderno se inicia com a revolta de Stonewall, em 1969 em New York, a luta LGBT mais marcante, embora não única neste período. Mas tal como nas lutas das mulheres, foi o movimento socialista que mais cedo pautou esta batalha. Foi o partido social-democrata alemão, em particular o dirigente operário August Bebel, o primeiro a propor a descrminilazação da homosexualidade, ainda no século XIX. Assim como a Revolução Russa inaugurou o primeiro estado onde todas as leis ou normas que restringiam a liberdade sexual dos cidadãos foram abolidas.

3 Feminista negra norte-americana, foi membro do Partido Comunista e dos Partidos Panteras Negras.

5 Esta proposta acabou por se realizar também, com um chamado ao evento “One Billion Rising: Dançar pelo fim da violência contra as mulheres (http://plataformamulheres.org.pt/one-billion-rising-dancar-pelo-fim-da-violencia-contra-as-mulheres/)

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