Nos dias 11 e 12 de Fevereiro teve lugar a Assembleia Cidadã do Podemos, o Congresso desta formação espanhola, marcado por uma profunda divisão na sua liderança. Neste processo elegeu-se a nova direção do partido assim como a orientação política para o próximo período.
Esta caminhada, que começou no início do ano com diversas votações on-line e terminou com a participação on-line de mais de 150 mil filiados foi marcada pela guerra aberta entre o carismático líder do Podemos, Pablo Iglesias, e o seu antigo “número dois”, Iñigo Errejón.
O Podemos surgiu em 2014, na sequência de anos de grandes mobilizações contra a Troika. O partido teve um sucesso inesperado nas primeiras eleições em que participou, as Europeias de 2014, e desde aí disparou nas sondagens. O partido de Iglesias chegou a aparecer em primeiro lugar ou em segundo, em alguns momentos. As expectativas criadas foram altíssimas, porém foram também expectativas defraudadas. Em 2015 o partido ficou “apenas” com 20% dos votos e quando a eleição se repetiu, já em coligação com a Izquierda Unida, o resultado manteve-se. Neste cenário de impasse, em que nenhum dos partidos conseguia assegurar maioria parlamentar e governar, chegou a estar colocada a hipótese de um governo PSOE (centro-esquerda), apoiado pelo Podemos e pelo Ciudadanos (uma nova formação de centro-direita). Porém Pablo Iglesias, recusou, fazendo ao PSOE exigências que este não podia aceitar, empurrando o PSOE para o apoio a um governo da direita e o Podemos para a oposição. A aposta de Iglesias parecia ser a de obrigar o PSOE a “queimar-se” no apoio ao governo, para em futuras eleições capitalizar o seu desgaste. Esta opção arriscada abriu brechas na direção do partido. O porta-voz parlamentar do Podemos, Errejón, que já se tinha oposto à coligação com a Izquierda Unida, queria também apoiar um governo PSOE. A política de Iglesias impôs-se mas as diferenças prometiam dirimir-se na Assembleia Cidadã que inauguraria 2017.
A Assembleia do Podemos foi alvo da atenção de todos os principais partidos do país, assim como dos meios de comunicação. Teve a cobertura de uma verdadeira eleição oficial. A luta foi dura e eminentemente despolitizada e rica em intrigas, o que fez com que muitos temessem a ruptura no partido. As diferentes orientações poderiam ser resumidas assim: Iglesias propunha um Podemos “mais à esquerda”, apostado nas lutas de rua e na aliança com a Izquierda Unida, opondo-se ao PSOE e ao PP. Já Errejón propunha um Podemos “nem de esquerda, nem de direita”, que tivesse como interlocutor privilegiado o PSOE. Enquanto Iglesias mantinha um discurso orientado para a juventude precarizada e para os sectores que lutaram nos últimos anos, Errejón responde mais a uma classe média ansiosa por estabilidade. Não obstante, mantinham grandes acordos: nenhum dos dois propunha mudanças programáticas, mesmo Iglesias não defendeu voltar ao programa fundacional – “Mover Ficha” – que, entre outras coisas, propunha a suspensão do pagamento da dívida pública. Tanto Errejón como Iglesias se mantiveram a aceitação pela permanência na UE e no euro, o pagamento da dívida ou contra o direito dos Bascos, Catalães e Galegos decidirem a sua eventual independência face a Espanha. Assim como ambos reivindicavam as experiências dos municípios de Barcelona e Madrid, em que o Podemos e figuras próximas governam com o PSOE – em Madrid, por exemplo, Manuela Carmona, muito próxima do Podemos, recusou-se a cumprir o programa e eleitoral e remuncipalizar os serviços privatizados ou em parar os desalojamentos.
Apresentou-se também à Assembleia Cidadã do Podemos a corrente “Anticapitalistas”, mais à esquerda, liderada pelo eurodeputado Miguel Úrban. Este sector defende algumas alterações ao programa, incluindo a nacionalização da energia, por exemplo. Porém ao não ser capaz de fazer uma crítica global ao projeto de Iglesias – os “Anticapis” também reivindicam os governos municipais de Madrid e Barcelona e não excluem o apoio a um governo PSOE – acabaram por ser eclipsados pela suposta viragem à esquerda do líder do Podemos.
Foi a orientação de Iglesias que venceu a Assembleia Cidadã, assim como foram os seus apaniguados que ganharam espaço na direção de Podemos. A nova direção conta com 37 “Pablistas”, 23 “Errejonistas” e 2 anticapitalistas. Ao contrário do que temiam muitos, a divisão não se deu: Errejón deixou de ser porta-voz do partido no parlamento, mas ele, cujo projeto político foi supostamente derrotado, passa a ser o “responsável de análise estratégica e mudança política” na Executiva do Podemos. Além disso, também no discurso público, Iglesias aproximou-se do seu adversário: após a Assembleia Cidadã, afirmou numa conferência de imprensa que a sua estratégia passa por “seduzir o PSOE”.
O que explica então a tensão que atravessou o Podemos nos últimos meses? Para alguns seria a luta entre as alas “radical” e “moderada” do Podemos, para outros, apenas uma guerra por cargos e poder. Provavelmente ambos os aspectos estão presentes. Porém, aparentemente, a divisão entre Errejón e Iglesias expressa duas táticas possíveis para ganhar mais votos e vir a pactuar uma futura governação do Estado Espanhol com o PSOE. Infelizmente, nenhum dos dois apresentava uma solução de ruptura, mas sim diferentes soluções de gestão “à esquerda” da crise do país. Tal como os seus “primos políticos”, o Syriza, na Grécia, que é hoje governo e aplica a austeridade com dureza, ou o Bloco de Esquerda Português, que compartilha responsabilidade por um governo do PS, o Podemos não pretende chegar ao poder para romper com a União Europeia e o Euro. Tão pouco pretendem mudanças radicais na economia e na sociedade como as tarefas democráticas essenciais no estado Espanhol, como terminar com a Monarquia e conceder o direito à autodeterminação dos povos. Iglesias e Errejón expressavam táticas distintas dentro desta estratégia: Iglesias pretende guinar à esquerda para ganhar mais força para negociar com o PSOE, enquanto Errejón optaria por se aproximar sem sobressaltos da cúpula “socialista”. Só isso explica os “zig-zags” de Iglesias, que primeiro ficou conhecido por se opor à “casta política”, para depois afirmar que era “uma idiotice que dizíamos quando éramos jovens de extrema-esquerda que as coisas se mudam nas ruas e não nas instituições”. Já os “Anticapitalistas” perderam uma oportunidade de ouro para levantar uma proposta alternativa tanto a Iglesias como a Errejon, com uma política que fizesse justiça ao nome desta corrente.
Nos tempos perigosos que ensombram a Europa, com o crescimento da extrema-direita e da xenofobia, a nova esquerda que irrompeu nos últimos anos têm uma responsabilidade acrescida. Existem forças para lutar por uma Europa dos povos, sem muros nem austeridade. A ascenção de partidos como o Syriza, o Podemos, o Bloco de Esquerda ou Corbyn em Inglaterra e Mélenchon em França expressam isso. Porém, cada um à sua maneira, estes projetos parecem ficar aquém da mudança necessária. A Grécia é o exemplo principal disso. É necessário um programa unitário de ruptura à esquerda, contra a UE e o Euro, por uma Europa sem austeridade, corrupção e xenofobia onde não sejam os bancos a governar. Infelizmente, neste início de 2017, o Podemos perdeu uma importante oportunidade de dar um passo nesse sentido.