Fiquei sabendo da morte de Moreno em plena Praça da Sé, em São Paulo. Era janeiro de 1987, e eu estava voltando de ônibus de um Congresso Nacional de professores em João Pessoa. Tinha desembarcado na rodoviária do Tietê, tomado o metro e, acidentalmente, cruzei com um militante que me deu a notícia. Ainda me lembro de ter comentado: “agora estamos muito mais sozinhos”.
Tinha acabado de fazer trinta anos. Fui, atordoado ou, talvez, atormentado à redação da Folha de São Paulo e da Globo para levar uma nota. Sentia o peso esmagador das novas responsabilidades.
Suspeitava que, para aqueles que estávamos engajados na luta pela reconstrução da Quarta no Brasil, esse janeiro desenhava uma antes e um depois. E foi assim.
Não estou entre os brasileiros que tiveram contato pessoal regular e intenso com Hugo. Nunca vivi nem na Colômbia, nem na Argentina. Depois que saí de Portugal permaneci, ininterruptamente, no Brasil. Minha relação foi sempre, essencialmente, indireta, através da leitura de seus escritos.
Encontrei-o pela primeira vez no aeroporto de Lisboa em 1975. Ele demorava muito para sair do controle de passaportes e eu estava ansioso, portanto, não hesitei. Não me lembro como, mas conhecia o seu nome de batismo. Em alguns minutos ecoava bem alto pelos autofalantes da Portela: “Senhor Hugo Bressano, estão à sua procura”, e não deixei que cansassem de repetir.
Estavam em Lisboa, desde o último trimestre de 1974, Aldo Casas e Lídia Daleffe do PST argentino e seu filho Huguito, então um menino. Eles tiveram a disposição de mudar para Portugal, vieram para ficar. Tínhamos recebido a visita de Gerry Foley do SWP dos EUA, mas somente uma visita de poucas semanas. Os dois eram quadros de despojamento extraordinário, e de capacidades complementares. Tinham conquistado, merecidamente, a nossa confiança e afeto.
Era a primeira vez que Moreno vinha a Portugal, e fomos direto do aeroporto para a Avenida da República, onde o GMR (Grupo Marxista Revolucionário) tinha ocupado um palacete, alguns meses antes, um solar meio grandioso, quase um Palácio, porém, abandonado e decadente. Ainda assim, desproporcional para o quê, de fato, éramos: um pequeno núcleo fundador de algumas dezenas de jovens estudantes imberbes, e alguns poucos trabalhadores inexperientes. Majestoso e, também, algo pretensioso era o novo nome da organização: PRT (Partido Revolucionário dos Trabalhadores). Ousadia e alguma presunção não nos faltavam.
A primeira impressão de Moreno foi arrebatadora, creio que para todos nós. Hugo estava no auge aos cinquenta anos. Parecia, talvez, um pouco mais velho: era um homem alto e corpulento, muito educado, até um pouco formal, tinha um vigor, intensidade ou veemência que lhe era própria. Não era nem solene, nem pomposo. Nós éramos adolescentes, portanto, impressionáveis, e ele transbordava de entusiasmo. Tinha uma força contagiosa que animava todos que o ouviam, quase uma comoção. O tom de voz era poderoso, e uma atitude, ao mesmo tempo, enérgica e séria. Mas, também, respeitosa.
Moreno tinha amplo repertório cultural, aos nossos olhos era um erudito. Combinava variedade de interesses e um senso de humor de tipo “monumental”: ria muito e alto, e sem freios, todo ele se sacudia em gargalhadas, quando contava uma de suas muitas histórias hilárias. Minha primeira impressão permanece viva até hoje: foi umas das pessoas, sem exagero algum, de inteligência mais extraordinária que conheci ao longo da vida.
A corrente morenista se expandia, nesses anos, com muito dinamismo. O impacto do trabalho que veio a ser publicado sob o título O partido e a revolução era muito grande. Em imensa maioria concordamos, em 1976, com a decisão de formar a Tendência Bolchevique, que depois se transformou em Fração. Mas pagamos um preço elevado. Porque o processo de debate da separação com o SWP norte-americano, com quem tinha sido constituída a FLT para o Congresso Mundial de 1974, não foi unânime. Os procedimentos da discussão foram, em Portugal pelo menos, extremadamente sumários.
Tudo terminou em algumas expulsões sob a acusação de fração secreta. Olhando para trás, em perspectiva, iniciava-se ali, talvez, uma dinâmica de fracionamentos rápidos, portanto, também, de isolamento latino-americano, que viria a ter graves, ou até incontornáveis consequências para nossa corrente nos anos oitenta: a incapacidade de compreender a abertura de uma situação europeia e mundial mais desfavorável, na virada para a década de oitenta, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, as ditaduras eram derrotadas no Cone Sul.
Reencontrei Moreno quando ele voltou a Lisboa, em 1977, e ele teve um papel agregador insubstituível na solução de uma crise que quase destruiu a jovem organização. No ano e meio anterior, inspirados por um projeto elaborado por quadros da fração bolchevique que vieram para Portugal substituir Aldo e Lídia, tínhamos realizado uma experiência de proletarização de mais de cinquenta militantes entre os metalúrgicos de Aveiro. O giro era fundamentado em uma análise da situação política que se demonstrou equivocada. A ligeireza, imaturidade e superficialidade, ou um pouco de tudo isso, não nos permitiram compreender o significado da inversão desfavorável da relação social de forças, depois do golpe de 25 de novembro de 1975, e da eleição do general Ramalho Eanes à presidência em 1976.
Tampouco consideramos que não era razoável exigir da abnegada estrutura de quadros um engajamento em uma tática de construção irrealista, que colocava objetivos que estavam muito além das possibilidades subjetivas da militância. Participei, então, da minha primeira luta política, em condição de minoria, e fiquei chocado, e entristecido com a forma impaciente, áspera, e até mesmo feroz de polêmica de alguns quadros educados na “escola” argentina. Felizmente, a vinda de Moreno permitiu um diálogo unificador e construtivo, e a recuperação das relações de confiança que abriram o caminho para a unificação com a LCI, e a fundação do PSR.
Poucos meses depois, em agosto de 1978, Moreno foi preso em São Paulo, junto com a maioria dos quadros da organização brasileira. Decidi voltar para o Brasil, e me unir à Convergência Socialista. Com a saída dos quadros mais veteranos da prisão se abriu na CS uma luta fracional. Uma luta política que tinha, como pano de fundo, diferentes apreciações de balanço sobre os erros que tinham conduzido às prisões, diferenças sobre os ritmos da luta de classes, e a pressão do crescente movimento pró-PT, que acabou sendo fundado em fevereiro de 1980. Mas, também, uma disputa pela direção, com elementos de um conflito geracional, que terminou resultando na ruptura de um terço do núcleo dirigente, e a dispersão de mais de metade da militância: uma catástrofe. O papel moderador dos camaradas argentinos nessa luta, em especial, de Martin Hernandez, representando a tradição da organização argentina, e inspirado por Moreno, consolidou uma sólida relação de confiança entre nós, que foi decisiva, em minha opinião, para manter a unidade da direção e da organização por muitas décadas.
Depois estive presente, em janeiro de 1980, no Congresso do PST argentino que se realizou na Colômbia e, na sequência, na reunião que constituiu o comitê paritário com a corrente liderada pela OCI francesa e Pierre Lambert, uma tentativa frustrada de reagrupamento internacional para diminuir o risco do isolamento latino-americano. O contexto era dramático: as diferenças com o SU da Quarta sobre a revolução nicaraguense conduziram à ruptura com o bloco da maioria formado pelos franceses e norte-americanos. O horizonte sul-americano de perspectiva de momentos decisivos na etapa final de luta pela derrubada das ditaduras nos levou a conclusões apressadas e unilaterais.
Foi nesse processo que a corrente assimilou, infelizmente, a elaboração sobre o caráter “iminente” da revolução socialista, uma formulação sobre a etapa internacional que se demonstrou, especialmente, equivocada, depois do início da restauração capitalista na China com Deng Xao Ping, em 1978, e que deu um salto de qualidade com Gorbatchev em 1986. Acompanhei o Congresso do PST (A) preocupado. Porque a polêmica que existia, previamente, foi resolvida por uma intervenção pessoal de Moreno que, embora brilhante, foi devastadora para os que estavam em minoria, e sugeria que ele ocupava, na principal organização da Fração, o papel de uma liderança com autoridade incontestável.
Compreendo que alguns possam ter concluído que ele seria um caudilho, ou até que ele gostava de ser um caudilho. Não é essa a minha opinião. Ele era, ao lado de Ernesto Gonzalez, o único quadro reminiscente dos anos cinquenta. Exercia autoridade com equilíbrio, mesmo quando perdia a sobriedade, ainda quando sua opinião tendia a ser a última. Acontece que líderes incontroversos, queiram ou não, podem acabar cercados por colaboradores incondicionais, em um processo de seleção regressivo determinado pelas lealdades pessoais.
Seria injusto não ressaltar que Moreno era, diante de nós, um “gigante”, ou seja, tinha qualidades excepcionais. Hugo ocupava um papel proeminente, muito especial, mas não acredito que se sentia confortável nessa condição. Era melhor que isso. Era lúcido o bastante para tentar evitar, a qualquer preço, a degeneração da corrente em mais uma seita que se transforma a si mesma em um fim. Gostava muito de rir, honestamente, de si mesmo.
Me recordo de um episódio divertido. Aconteceu quando Moreno voltou de uma viagem à Inglaterra, e comentou a reunião que tinha feito com um grupo que tinha rompido com WRP de Healy. Os camaradas ingleses colocaram como ponto de pauta um balanço da experiência, na Argentina, de intervenção nas 62 organizações, um movimento de resistência operária sindical liderado pelos peronistas. Consideravam oportunista a orientação. Hugo não se ofendeu, mas nos alertou que o debate sobre possíveis unificações deveria sempre calibrar os acordos e diferenças sobre a realidade presente, e perspectivas do que fazer no futuro. Nunca a partir da exigência ultimatista de acordo sobre balanços autocríticos do que tinha acontecido vinte e cinco anos atrás.
Pude testemunhar, mais de uma vez, que valorizava camaradas com opiniões distintas às suas. Nunca aderiu à ideia ingênua de internacional-fração. Minha interpretação é que Moreno queria reconstruir a Quarta como uma grande organização, por isso, estava sempre inquieto: depois do fracasso das relações com a OCI de Lambert, tentou a aproximação com Lutte Ouvriere e com os ingleses que vinham do WRP de Healy.
Moreno já era nesses anos, indiscutivelmente, o nosso mentor. Estive, nos dois anos seguintes, por mais duas vezes alguns poucos dias em Bogotá, a primeira vez com Eduardo Almeida, e a segunda com Maria José de Almeida, a Zézé, para discutir a proposta de entrada no PT. Cada um de nós representava uma das sensibilidades presentes na direção brasileira.
O papel de Hugo nesse debate foi inspirador. Abdicou de avançar posição sobre os temas mais táticos, e privilegiou o debate estratégico sobre as peculiaridades brasileiras, que conhecia bem. Insistiu que a construção de um partido de classe sem delimitação estratégica, ou seja, sem um programa revolucionário, era, relativamente, progressivo, quando considerado o papel do MDB como único partido de oposição legal à ditadura. Mas alertou para o caráter social de casta burocrática das lideranças sindicais. E insistiu que não deveríamos, em nenhuma circunstância, sacrificar a nossa própria independência política, nem nos dissolvermos.
Foi quando tive um convívio pessoal mais estreito com Hugo. Comentou as viagens que tinha feito ao Brasil, no passado, e fez elogios a Hermínio Sachetta. Me recordo, também, dos comentários respeitosos sobre Ernest Mandel. Moreno procurava ter, ao mesmo tempo, uma visão crítica, e uma atitude generosa sobre as pessoas. Ele nos ofereceu uma noite um jantar em seu apartamento: a célebre preferência argentina pelo bife à milanesa, que ele mesmo preparou. Gosto de pensar que, para me agradar, Hugo abriu uma garrafa de vinho verde português. Ainda colocou um tango, e convidou Zézé para dançar.
Ao final da noite, ele perguntou se eu ainda tinha o passaporte diplomático. Tive esse direito até os 25 anos, pelo lugar de minha mãe no Itamaraty. Eu já tinha sido correio uma vez, entre Lisboa e Madri, com uma mala cheia de dólares: uma parte dos fundos do partido argentino. Hugo me pediu para passar por Buenos Aires, antes de voltar, para levar uns documentos em microfilmes, porque sabia que era pequena a possibilidade de ser revistado com o passaporte vermelho. Hugo gostava de acreditar nos camaradas, mesmo os muito jovens: preferia a confiança à suspeita, nos estimulava e empolgava, apostava na integridade dos militantes, e lhes colocava desafios.
Finalmente, em meados dos anos oitenta, encontrei-o, pela última vez, com Luís Leiria, no Rio de Janeiro. Viajamos para vê-lo. Ele estava muito zangado conosco, e discordava, frontalmente, de nossas posições. Discutiu de forma franca, perdeu a paciência, decepcionado, talvez. Levantou a voz mais de uma vez, furioso. Lembro da minha surpresa quando ele nos disse, já mais calmo, que esperava mais de nós dois, já que éramos tão estudiosos: tínhamos a obrigação de ser mais agregadores, ter sentido das proporções, e ser menos conflitivos. Não chegamos a um acordo, e a reunião terminou muito amarga. Mas, somente anos depois, fiquei sabendo que a intervenção enérgica dele favoreceu, na reunião do executivo da CS, uma solução negociada, depois referendada no comitê central. Brigou conosco, mas depois nos defendeu. Foi possível a constituição de uma regional para uma experiência em separado, em São Paulo, e o ambiente, em alguns anos desanuviou.
Assim era Moreno: o dia em que foi mais brutal conosco foi o mesmo dia em que nos fez o maior elogio de sempre. Moreno foi grande.
Valério Arcary – Esquerda Online