Entre os louvores póstumos que a direita dedica a Mário Soares conta-se, principalmente, o de ter sabido recusar o destino de um “Kerensky português”. É verdade: Soares teve a habilidade, e também a sorte, de escapar a esse destino. Se se pode comparar a alguém, é a Friedrich Ebert, coveiro da revolução alemã.
Como todas, também essa comparação histórica tem os seus limites. Ebert era um típico rebento da aristocracia operária, dirigente do maior partido social-democrata do mundo. Com todo o aparelho do partido, apoiara o militarismo prussiano durante a guerra e tornara-se, na sua fase final, parte integrante do governo.
Não era fácil estar no poder e, de repente, ter de disfarçar-se de revolucionário, quando, em Novembro de 1918, a revolução irrompeu vitoriosa e derrrubou esse poder. Ebert ainda vociferou contra o seu camarada Scheidemann, quando este fez coro com o povo insurrecto para proclamar o fim da monarquia. Depois habituou-se à ideia da república e foi o seu primeiro presidente.
Em todo o caso, esta promoção de um operário social-democrata e monárquico a supremo magistrado da república burguesa não era principalmente um produto da agilidade vira-casacas de Ebert, limitada como vimos, mas sobretudo de uma burguesia alemã muito mais sólida que a russa, mais hábil, mais rápida em convocar eleições constituintes. Havia, além disso, uma conjuntura em certo sentido mais favorável do que na Rússia: a Alemanha estava derrotada e já não era precisa uma segunda revolução para acabar com a guerra.
Ebert e Soares
Diferente de Ebert em vários aspectos importantes, Mário Soares não era um aristocrata operário, e sim um burguês de robusta formação republicana (com um breve devaneio juvenil estalinista). Não encabeçava partido algum, nem grande nem pequeno: a sua influência limitava-se inicialmente a algumas tertúlias de profissionais liberais, muito pouco decididos a formalizarem a criação de um partido, para não se exporem a uma maior repressão. Ganhou prestígio como advogado de presos políticos, rompeu a frente eleitoral da oposição em 1969 e demarcou-se do PCP para abrir caminho à legalização de um partido social-democrata. Mas todo esse cálculo falhou, porque a “primavera marcelista” não continha em si qualquer perspectiva bipartidária. Ela era, afinal, o outono da ditadura – duro, repressivo, intratável e unipartidário como sempre.
Bem longe da superpotência social-democrata alemã, a corrente de Soares não teve ministros no governo final da ditadura, e nem sequer conseguiu ser legalizada. O Congresso de fundação do PS, realizado em 1973, em Bad Münstereifel, simbolicamente sob a asa protectora da Fundação Friedrich Ebert, cabia em três ou quatro táxis. Quando caiu a ditadura, o PS fundado de fresco compensou a sua fraqueza com uma inflamada retórica de esquerda: começou logo com o discurso de Mário Soares no 1º de Maio, enfeitou-se um pouco mais com o recrutamento de um Palma Inácio, culminou num congresso cheio de discurso autogestionário. Mas o discurso eram palavras e a política verdadeira devia ficar nas mãos da direita social-democrata: o mesmo congresso que falava em autogestão liquidava a ala esquerda de Manuel Serra.
Contrastando com a revolução russa, tanto a alemã de 1918 como a portuguesa de 1974 começaram com a guerra praticamente terminada: menos uma arma decisiva nas mãos da esquerda que quisesse levar mais longe a revolução, fazer na segunda aquilo que faltara na primeira.
Soares e o putschismo spinolista
Contrastando também com a revolução russa, tanto a burguesia alemã como a portuguesa se decidiram pela organização de eleições constituintes. Nisso, contudo, Ebert venceu os seus resquícios monárquicos rapidamente e foi mais expedito do que Soares: em Janeiro de 1919, dois meses depois de derrubada a monarquia, estavam feitas as eleições. Soares ainda começou por vacilar sobre a estratégia plebiscitária de Palma Carlos em Julho e teve um perfil apagado e ambíguo na resistência ao golpe spinolista de Setembro.
A ambiguidade debilitou-o politicamente e fê-lo duvidar da sua força para ser opor à reivindicação da unicidade sindical. Foi Salgado Zenha a impor-se e a trazer o PS para a rua contra a unicidade. O PS perdeu a batalha, mas começou a demarcar-se do PCP e a preparar o terreno para uma cerrada disputa do eleitorado.
Também perante o golpe spinolista de 11 de Março Soares voltou a ter uma atitude ambígua e mesmo suspeita. Quem tinha clareza estratégica, neste caso, não era ainda Soares, nem era já Salgado Zenha, mas o embaixador norte-americano, Frank Carlucci: ele, que sabia mais de golpes militares do que ninguém, percebeu que a receita pinochetista-spinolista não servia para a situação portuguesa de 1975. Cultivou as suas relações com o mesmo MFA que se tinha oposto à estratégia plebiscitária-golpista e conseguiu que este, em boa lógica, garantisse a realização das eleições.
Estas não se realizavam dois meses depois, e sim um ano depois de irromper a revolução. A burguesia portuguesa tinha perdido tempo e pagava o preço: o sector financeiro, a grande indústria e a grande propriedade agrária expropriados. Mas o importante era que o poder passasse para mãos fiáveis. A vitória do PS nas eleições surpreendeu o próprio Soares e confirmou a estratégia de Carlucci.
Soares e o trunfo eleitoral
A partir daí, Soares tornou-se o grande paladino da Constituinte e sugou até ao tutano o capital político que ela lhe tinha fornecido. Juntou o método de Zenha, ao chamar à rua uma coligação de todas as direitas; e a bandeira de Carlucci, ao invocar a legitimidade eleitoral. Com estes dois ingredientes, assaltaram-se sedes partidárias de esquerda, fez-se do “República” e da Rádio Renascença temas internacionais, encheu-se a Alameda e derrubou-se o último governo gonçalvista.
Mesmo assim, quando chegou o 25 de Novembro, não era Soares quem tinha assimilado mais plenamente a orientação de Carlucci. Com boa parte da direcção do PS, ele meteu-se a caminho do Porto, para preparar o assalto à “Comuna de Lisboa” – isto é, a guerra civil. Quem seguiu até ao fim a cartilha de Carlucci foram Costa Gomes e Melo Antunes, que permaneceram no seu posto e negociaram com o PCP uma saída quase sem sangue.
A vitória dos militares novembristas abriu a Soares o caminho do poder. Ao leme da barca do Estado, com a revolução derrotada, impôs uma violenta política de austeridade e um desmantelamento sistemático das conquistas do PREC. A demagogia pseudo-esquerdista tornava-se, nesse novo contexto, supérflua. Mas Soares, com a sua inesgotável imaginação, ainda conseguia fazer-nos sorrir quando, ao alcançar esse outro grande desígnio da sua política – a adesão à CEE -, se justificava dizendo que não era possível “construir o socialismo num só país”. Mas também, para quê tanto empenhamento em criar um quadro internacional de viabilização do socialismo, se, no pós-25 de Novembro, este era afinal para meter na gaveta?
Soares não foi, muitas vezes, o primeiro nem o mais brilhante inventor de inovações estratégicas. Foi a reboque de Spínola e Palma Carlos durante um tempo, depois seguiu Zenha, depois Carlucci, depois beneficiou do sangue frio de Costa Gomes e Melo Antunes. Mas foi o “animal político” que soube sempre articular os lampejos inspirados de outros e transformá-los numa campanha por um democracia musculada ao serviço da burguesia.
António Louçã