A base, a vanguarda e a direcção são três partes dos fenómenos políticos, não é possível analisá-las como um todo único e monolítico, fora do momento actual da luta de classes e das suas catacterísticas.
Em a Dialética da Natureza, Friedrich Engels elucida que “(…) a totalidade da natureza, do menor elemento ao maior, dos grãos de areia ao sol, dos protozoários (organismos unicelulares) ao homem, transcorre a sua existência entre um eterno chegar a ser e deixar de ser, num movimento e mudança sem descanso (…)”. Entender o fenómeno Podemos, do Estado espanhol, exige destrinçar as suas partes e verificar as relações entre elas, conhecer como começou, por onde passou e, daí, perspectivar que caminhos seguirá.
Os que exultam e os que desdenham o processo têm em comum a absolutização do Podemos numa das suas partes. Tomam o fenómeno como um corpo único, regressivo ou progressivo, pela simples análise da sua direcção ou base que o fez catapultar para a política internacional. Deslocam-no para um universo estático onde o movimento e a mudança são variáveis que não contam, transformando o debate e a proposta num exercício escolástico entre imagens de processos análogos passados e a teoria que leram.
A ilusão eleitoral das massas, de apoio a novas formações políticas, está a abalar as placas tectónicas dos regimes democrático-burgueses da Europa, em especial a do Sul. Em comum, estes regimes sustentaram-se num bipartidarismo, com ou sem muleta ocasional, que se alimentava dos negócios do Estado, escondendo com migalhas a corrupção endémica do sistema capitalista. A crise em que o capitalismo mergulhou desde 2007/2008 fez estalar a muralha.
Os milhões de indignados que atiraram pela janela os velhos ditadores no Norte de África e que foram seguidos por milhões nas praças e ruas da Europa periférica puseram a nu as primeiras fissuras. No entanto, a combinação entre a traição burocrática dos amigos do bipartidarismo na classe trabalhadora e o sentimento legalista e anti-organização, derivado da desilusão com as experiências “socialistas” e da actuação da esquerda reformista mais radical ou mais estalinista, fez com que o auge da mobilização não tenha correspondido a uma mudança política. Em Espanha, a vitória eleitoral da direita, no final de 2011, introduziu uma reflexão profunda no movimento quanto à necessidade de novas expressões políticas em alternativa ao centro político.
A austeridade contínua e em intensidade brutal dos anos seguintes, fez com que a diminuição da mobilização se concentrasse num ranger de dentes que acumulou o sentimento de divórcio e ruptura com os partidos tradicionais, incluindo os de esquerda que sempre institucionalizavam os protestos .
Esse divórcio teve, em Espanha, o primeiro anúncio nas eleições europeias. O manifesto-movimento “Mover ficha”, construído por um núcleo de investigadores universitários de Madrid, com muita presença mediática, pela organização Izquierda Anticapitalista e por um sem número de activistas, apresentou-se como “Podemos” e as massas, através dos seus misteriosos caminhos, usaram-no e elevaram-no a instrumento de protesto. Instrumento que abriu uma importante brecha no regime monárquico espanhol fundado em 1978, pensado pelo anterior ditador Franco e aceite pelo Partido Comunista Espanhol.
A brecha foi de tal ordem que, nos três meses seguintes às eleições, o regime mudou o rei, o Governo do PP recuou na sua lei retrógrada de voltar a proibir o aborto e anunciou uma redução da austeridade e impostos para 2015. Desde aí, o Podemos enquanto organização teve uma progressão geométrica tanto na aglutinação de activistas, reunindo centenas de círculos, como na depuração burocrática da sua direcção e do seu programa. Ao mesmo tempo, o divórcio eleitoral do povo com o regime ganhou apoio e transformou o Podemos no Syriza de Espanha.
Agora, enquanto as massas levam os activistas para dentro do Podemos e estão a potenciá-lo como expectativa de um governo contra a austeridade, a corrupção e pela soberania, a direcção de Pablo Iglesias tem caminhado no sentido inverso dessas expectativas, com o recuo sistemático das propostas originalmente contidas no manifesto “Mover ficha”. Abandonou a crítica ao Euro e a defesa da socialização das grandes empresas estratégicas e dos bancos, eliminou a auditoria à dívida pública e a recusa de pagar a parte ilegítima para uma proposta difusa de “reestruturação positiva”, ao mesmo tempo que assumiu uma postura espanholista face à Catalunha, opondo-se a que esta declare unilateralmente a independência para realizar o referendo que o Estado espanhol impediu.
Juntando a este recuo, Iglesias empreendeu uma depuração das estruturas de direcção do Podemos que impede, na prática, uma discussão diversa e a eleição interna de activistas com posições distintas para cargos directivos e electivos, impossibilitando também, por exemplo, os companheiros fundadores da Izquierda Anticapitalista de aceder às direcções, e estes capitulam dissolvendo a sua organização.
Para retirar os partidos da Troika e da austeridade do poder, as massas trabalhadoras usarão como principal ferramenta o voto tanto no Syriza, na Grécia, como no Podemos, em Espanha. Mas, lamentavelmente, as direcções de ambos e a sua linha programática fazem crer que terminarão a governar de forma parecida à social-democracia do PASOK e do PSOE.
Os revolucionários devem acompanhá-las nesse processo, explicando táctica e pacientemente as limitações e o carácter destes partidos, de forma a abrir caminho para uma transformação radical da sociedade. Se os recuos programáticos e organizativos não levarem nem à desilusão prévia dos activistas, nem à abstenção eleitoral das massas, ambos saberão perceber, no caso de falhanço governativo, que tanto o Syriza como o Podemos não são o fim da história.
Daniel Pereira