O Syriza é hoje a principal organização da esquerda mundial. Mas até junho de 2013, data de seu congresso, o grupo nem sequer era um partido unificado.
Um ano e meio depois, a “Coalizão da Esquerda Radical”, cuja abreviação em grego é “Syriza”, tornou-se o primeiro partido anti-austeridade a assumir a direção de um país europeu.[i]
Originalmente apenas um espaço de interação política, a coalizão decidiu consolidar-se em 2004, na véspera de uma disputa eleitoral para o parlamento grego. Segundo militante do Syriza Sotiris Martalis, a gênese da legenda sintetizou dois projetos da esquerda grega:
Naquele momento o Synaspismos, grupo ao qual pertencia Alexis Tsipras, havia dado um giro à esquerda para garantir sua base eleitoral, que se radicalizava com a guerra americana no Iraque[ii]. Para outro integrante do Syriza, Panos Petrou:
Syriza e o movimento de esquerda
O partido que hoje governa a Grécia é apenas uma das diferentes correntes organizadas entre os radicais de lá. Existem também outros dois partidos políticos de extrema-esquerda, o Partido Comunista Grego (KKE) e o Antarsya. Soma-se a eles um movimento anarquista com longo histórico de relevância nacional.
Na Grécia, o partido comunista se destaca por sua dinâmica suis generes. Ao contrário da grande maioria dos PCs europeus, que ao longo dos anos 1990 se alinharam à socialdemocracia moderada, o KKE fez um caminho de sentido inverso. Ao mesmo tempo, manteve importante peso político e social em seu país. Nas eleições de 2015, conquistaram 5.5% dos votos, um resultado dentro da média do partido ao longo dos últimos 15 anos. De longe a maior corrente da extrema esquerda no movimento sindical, o KKE tem localização privilegiada até mesmo no setor privado. Organizou a principal greve metalúrgica ocorrida em Atenas nos últimos anos, que em 2012 parou o setor por nove meses. Ele também é muito maior que o Syriza entre os estudantes. (LOUNTOS, 2015)
De origem mais próxima ao partido de Tsipras existe o Antarsya, uma coalização de pequenas organizações marxistas radicais abertamente anti-OTAN e anti-Euro[iii]. Os sindicalistas do grupo estão concentrados no setor público, principalmente professores, aonde aparentam não serem muito menores que o Syriza. Entre estudantes, porém, o Antarsya e sua colateral, o EAAK, que reivindica mais de mil ativistas organizados, diz ter o dobro da votação do Syriza nas eleições para as entidades do movimento. (SKOUFOGLOU 14/01/2014) Segundo Stathis Kouvelakis, membro do comitê central do Syriza
Outro setor que tem peso político relevante na Grécia é o movimento antifascista. Sua importância cresceu junto à chegada no parlamento da Aurora Dourada, partido adepto do nazismo. Hegemonizado por anarquistas, o espaço interage com estudantes universitários e o movimento das praças de 2011. Ele é organizado por assembleias de bairro, contando com alguma presença do Antarsya, pouca do Syriza, e nenhuma do KKE. (SKOUFOGLOU, 2014)
O KKE tem relação tumultuada com praticamente toda a esquerda. Quando as multidões em 2011 ocuparam a praça Syntagma, logradouro público que ficava em frente ao parlamento nacional, os comunistas enxergaram uma conspiração burguesa. Segundo documento do 19º congresso do partido, “o chamado ‘movimento dos indignados é apoiado, encorajado – se não até mesmo planejado – pelos mecanismos da classe dominante, com o intuito da manipulação, impedindo a radicalização.” Segundo eles, Syriza e Aurora Dourada são expressões da “confusão” causada pela praça, havendo, de fundo, pouca diferença entre ambos. (LOUNTOS, 2015)
Apesar de possuírem 10 dos 45 assentos da direção da confederação sindical nacional, o KKE não é a maior força do movimento sindical no país. Os dois partidos tradicionais do regime democrático, o PASOK e o Nova Democracia, são historicamente as organizações majoritárias, não só do sindicalismo, mas da vida social grega.
Principalmente entre 2010 e 2012, durante o início dos acordos com a Troika, o movimento sindical fez importantes demonstrações de força, parando cotidianamente Athenas. Mas hoje os sindicatos se encontram despedaçados. A contra-reforma trabalhista imposta pela União Europeia, que na prática eliminou o direito a acordos coletivos, os silenciou. Com o reestabelecimento da legislação trabalhista pré-Troika nos primeiros dias do governo Syriza, o futuro do movimento está em aberto.
Eleições fulminantes e governos frágeis
Entre 2004 e 2012, o Syriza elegeu entre 6 e 14 parlamentares. Nas eleições de 2012, dois anos depois dos acordos com a Troika, seu número de cadeiras disparou para 52. Um mês depois, durantes novas eleições em junho, o Syriza elegeu 71 deputados.
A nova marca atingida em janeiro, de 149 cadeiras (duas a menos de uma maioria absoluta) significa que menos de 10% da bancada do partido tenha mais de 3 anos de experiência no parlamento. Quase todos os deputados “veteranos”, incluindo Tsipras, integravam o Synaspismos, que entre 2004 e 2013 foi o maior partido-membro da coalizão Syriza.
Os dados eleitorais recentes do Syriza introduzem elementos interessantes à compreensão da relação do partido com sua base. A ausência de figuras públicas médias, consolidadas nos municípios, significou que o partido teve apenas 17.7% do total dos votos nas eleições locais de 2014. O resultado foi considerado ruim quando comparado a dois anos atrás, quando o Syriza teve 26.9%. Uma semana depois de perder mais de 9% do desempenho nas eleições locais, vieram as eleições europeias, e com elas, mais uma surpresa. O Syriza recuperou o padrão de 26% dos votos gregos.
Curiosamente, o inverso é verdadeiro com o Antarsya, que teve 2.29% (cerca de 128 mil votos) nas eleições locais, e apenas 0.72% nas eleições europeias. Ao contrário do KKE e o Syriza, nas últimas eleições parlamentares o Antarsya teve apenas 0.64% dos votos, muito abaixo dos 3% necessários para superar a cláusula de barreira. Mesmo assim, o grupo avalia que há uma base de 100,000 apoiadores que durante as eleições nacionais tendem a fazer voto útil no Syriza. (SEWELL, 2015)
A disparidade entre os votos para o parlamento europeu comparados aos votos para os parlamentos locais indicam o enraizamento desigual do Syriza. O peso nacional do partido é maior que o regional provavelmente por conta da figura de Tsipras. Entre os 149 deputados que foram eleitos juntos a ele, é possível que parte importante nunca tenha sido profissional político. A inexperiência do Syriza não tem fugido aos olhos da imprensa internacional, que anunciou chocada que o único ministro com experiência governamental teve apenas um cargo de segundo escalão, em 1989. Segundo a agência Reuters, o governo é formado essencialmente por “advogados, professores universitários e alguns ex-jornalistas”. (BABINTON, 27/01/2015)
Somados os parlamentares do KKE e do Syriza, a extrema esquerda tem 164 cadeiras, muito mais que as 151 necessárias para uma maioria absoluta. Mesmo assim, a relação de Tsipras com os comunistas é tão ruim que em 2012, quando o Syriza tentou formar um governo de coalizão, o KKE foi o único partido do parlamento que recusou-se a reunir com o atual primeiro ministro.
Comunistas atuais e antigos
Programaticamente, o KKE acusa o Syriza de integrar o campo do reformismo e de capitular ao imperialismo alemão. Sua linha, porém, não defende de forma clara uma ruptura com o Euro. Afirmam que o debate sobre uma moeda nacional é tema secundário, pois ocorreria dentro dos marcos do capitalismo. Segundo eles, questões como estas apenas servem para distrair os trabalhadores.
Outros motivos também explicam a rivalidade. Talvez em seu centro esteja a experiência com o Synaspismos, produto de um esforço para superar uma racha no antigo do KKE ocorrido em 1968. O partido encontrava-se dividido entre a ala esquerda, “pró-Moscou”, e a ala direita, “pró-Eurocomunismo”. Junto a outros rachas menores, as duas principais frações do KKE reaproximaram-se no final dos anos 80, formando o Synaspismos, um frente comunista.
Quando a legenda optou por apoiar um governo dirigido pelo Nova Democracia alguns anos depois, a fração do KKE “pro-Moscou” rompeu com o Synaspismos. A partir daquele momento, em 1991, passaram a se opor de forma extrema ao espaço que antes integravam. (BUDGEN; KOUVELAKIS, 2015 e LOUNTOS, 2015)
Um pouco depois, o próprio Synaspismos passou por um processo de radicalização. Sua ala mais abertamente socialdemocrata, que rechaçava a integração ao Syriza, foi derrubada da direção do grupo em 2006. O próprio Tsipras participou da rebelião de base. Parte importante desta antiga direção rompeu em 2010, reivindicando uma política de maior proximidade com o PASOK. Dirigidos por quatro parlamentares, formaram o DIMAR, Partido da Esquerda democrática.
Syriza e sua composição interna
O melhor e mais sólido indicativo das diferentes alas que compõem o Syriza e suas forças foi o congresso de 2013. Nele, organizaram-se mais de 3.500 delegados representando cerca de 40.000 filiados. A “ala majoritária” do Syriza, que gira em torno de Tsipras, ganhou as votações programáticas com uma maioria de dois terços. Ela é composta pelo antigo setor majoritário do Synapismos, os maoístas do KOE e alguns setores autonomistas “pôs-marxistas”. Todos estes grupos se dissolveram durante o início do congresso, com seus integrantes identificando-se apenas como membros do Syriza.
O maior grupo da oposição chama-se “Corrente de Esquerda”. Tinham por volta de 800 delegados no congresso, representando cerca de 9 mil filiados. O grupo vem da antiga ala esquerda do Synapismos, que sempre foi plural e decentralizado. Maioria dos sindicalistas do partido, eles romperam com Tsipras ao longo do próprio congresso de 2013. Inicialmente, tentavam uma conciliação com a maioria, porém, ao depararem-se com reformas programáticas que reduziam a intensidade do confronto com a Troika, foram para a oposição.
Depois da Corrente Esquerda, vem o Projeto R, que tinha por volta de 100 delegados. A grande maioria de seus membros são da Esquerda dos Trabalhadores Internacionalistas (DEA), uma organização da tradição britânica do trotskismo. Em 2013 o DEA possuía cerca de 400 militantes, além de 2000 simpatizantes. Durante o congresso, a Corrente Esquerda e o Projeto R uniram-se para formar a “Plataforma Esquerda”, que teve por volta de 30% dos votos. O grupo segue organizado dentro do Syriza, expondo suas posições de divergência em relação a Tsipras de forma pública. (ARBEITERMACHT; SUCHANEK, 2013)
A fragmentação do movimento
Por conta da fragilidade organizacional do Syriza no movimento de massas, o tema da “Frente de Esquerda” (Syriza, KKE e Antarsya) é constantemente levantado pela Plataforma Esquerda. No movimento sindical e estudantil, a Plataforma possui diferentes graus de interação com o Antarsya. Já a relação com o KKE é mais complexa, dado que a direção do partido comunista é uma barreira à aproximação.
A ala majoritária de Tsipras, porém, foi contra a política de Frente de Esquerda no congresso de 2013. Propôs mudar o slogan de 2012, que chamava “por um governo de esquerda” e colocou em seu lugar “por um governo baseado na esquerda” (ARBEITERMACHT; SUCHANEK, 2013). O termo, propositalmente mais ambíguo, legitimou o acordo do Syriza com o ANEL, pequeno partido da direita grega.
Frente ao ocorrido, o DEA, repetindo os argumentos de setores da Plataforma de Esquerda, afirmou que “formar a coalizão não era o resultado necessário da eleição. Havia a possibilidade do Syriza formar um governo sozinho por meio de um “voto de tolerância” no parlamento.” (DEA, 2015) A proposta da corrente era que o Syriza fizesse um governo com minoria parlamentar. Dos 151 parlamentares que pertencem a seis partidos diferentes, teriam de conquistar três abstenções para formar um governo independente.
A polemica em torno da frente com o ANEL reacende uma série de debates sobre o programa do partido que hoje governa a Grécia. Por conta disto, o próximo artigo, Governo Syriza: Partido e Programa, tratará das diferentes modificações programáticas pelo qual o partido passou até chegar ao poder.
Aldo Cordeiro Sauda
Notas
[i] O presente artigo é o primeiro de uma série de quatro. Os próximos artigos, Syriza: partido e programa, Syriza: partido e política internacional, Syriza: partido e governo e Syriza: partido e marxismo, discutirão a evolução programática da organização, sua atual localização dentro da dinâmica da política nacional e europeia, e pôr fim a relação do partido com o marxismo grego.
[ii] O movimento contrário a guerra no Iraque teve apoio de mais de 90% da população grega. Na principal manifestação anti-guerra, cerca de 100 mil pessoas marcharam até a porta da embaixada norte-americana. As relações entre Grécia e mundo árabe, inclusive, sempre foi de natureza diferente da de outros países europeus por conta de proximidades culturais mediterrâneas. Os cristãos da região do levante, inclusive, têm relação próxima à Athenas devido ao peso da igreja ortodoxa na região.
[iii] Antarsya, Frente da Esquerda Anti-Capitalista, foi formada em 2009 por pequenos grupos radicais. Entre eles estão o Partido Socialista dos Trabalhadores, sessão do IST na Grécia, e a Organização dos Comunistas Internacionalistas Gregos, sessão do Secretariado Unificado da Quarta Internacional. No Antarsya, o PST grego reivindica ser a força majoritária da organização.