No mês de Agosto foi difundido o “Manifesto Por uma Democracia de Qualidade”1, que reúne contributos de personalidades da Direita à Esquerda, com o objectivo de reconciliar os portugueses com a política e de reformar o sistema de representação em Portugal.
Para isto, propõem:
-A criação de círculos eleitorais uninominais e sua conciliação com círculos plurinominais restritos e/ou um círculo nacional de compensação;
-A variação qualitativa do número de deputados na Assembleia da República;
-A apresentação à Assembleia da República de candidaturas independentes;
-A fiscalização pública e independente das contas e receitas dos partidos, nomeadamente pelas deduções na colecta em sede de IRS;
Porém, é preciso relembrar que as intenções desta iniciativa não são de hoje. Já em Junho os deputados do PSD/Madeira eleitos para a Assembleia da República avançaram com uma proposta de revisão constitucional2 que contempla, entre várias medidas:
– a extinção do Tribunal Constitucional e criação de uma secção constitucional no Supremo Tribunal de Justiça;
– a redução de 230 para 181 do número de deputados na Assembleia da República;
– a instituição de um sistema eleitoral baseado em círculos uninominais e num nacional.
Não se limitando esta última proposta a estes tópicos, assim foi atribuída ao PSD/Madeira, com o apadrinhamento de Alberto João Jardim, a missão radical de alterar a Constituição e o sistema político numa suposta tentativa de reforma do Estado. Caída em saco roto devido à falta de apoio tanto de uma maioria de 2/3 no Parlamento como da direcção do PSD, serviu mais para desviar as atenções da continuação da política de austeridade.
Em guerra com o TC
O conflito com o Tribunal Constitucional ganha nova forma não só com a proposta extrema em extinguir esta instituição, mas com a de alterar a Constituição. Apesar do PSD se ter desde logo evadido destas ideias, é certo que têm defensores na direcção do partido, com as críticas de Passos Coelho contra os juízes que supostamente inviabilizam a austeridade, ou a ideia de Teresa Leal Coelho em criminalizá-los por não seguirem a visão do PSD.
As constituições liberais dos Estados democráticos foram criadas na sequência de grandes acontecimentos históricos que alteraram o regime. Com a elevação de valores universais, pretendem ser um garante de estabilidade e de aceitação do novo regime instituído, já que é dominado na mesma pela elite burguesa e financeira. A própria criação do TC é reflexo disso. Com o pretexto da adequação da Constituição ao momento actual, qualquer alteração incidiria sobre esses mesmos valores, com vista a permitir uma governação desligada da população e de requisitos fundamentais. Se a cada novo governo fosse possível alterar Constituição, perder-se-ia muito mais rapidamente a estabilidade da e a confiança no regime.
O objectivo de Passos Coelho de alterar a Constituição para desbloquear a sua linha de governação foi uma clara derrota, mas não o impede de aplicar a austeridade. Este projecto é até escusado, já que o TC, enquanto moderador da austeridade, passou a maioria das medidas mediante a leitura de um texto que deixa margem para interpretações.
Assistimos a um período de canibalismo do regime. As instituições e os seus agentes atacam-se e consomem-se entre si, na esperança de que, com a extinção de umas, o regime sobreviva. Porém a natureza do Estado não muda – continua a ser dominado pelos mesmos.
O populismo em marcha
O PSD nacional procura distanciar-se também das propostas de redução do número de deputados e de criação do sistema eleitoral com círculos uninominais, mas já antes Passos Coelho se tinha manifestado a favor de ambas3. Mais recentemente Seguro propôs o mesmo4 e reafirmou as suas intenções na campanha para as eleições primárias no PS, tentando, com propostas apreciadas por parte da população, conquistar votos a António Costa. Estes avanços demonstram a fragilidade e o descrédito de ambos os partidos, que procuram reformar o sistema em benefício próprio. Defendem por isso medidas que sabem prejudicar a representação democrática que eles próprios já dominam.
A grande maioria dos países europeus, como a Irlanda e a República Checa, tem um sistema legislativo bicameral, com uma câmara de deputados e um Senado, evidenciando a herança da divisão entre classes e uma maior complexidade do processo legislativo, o que desde já rejeitamos. O sistema português, à partida menos burocratizado, é composto por uma única câmara de 230 deputados, o que resulta na proporção aproximada de 1 representante para cada 45.000 habitantes. Noutros países de dimensões semelhantes à de Portugal esta proporção é bastante maior, como na Hungria (1 para 26.600) ou na Grécia (1 para 38.000); e mesmo em países com menos habitantes, como a Finlândia (1 para 27.000) ou a Eslováquia (1 para 36.600). Também o Manifesto aborda esta questão, só que de forma mais vaga, ao sugerir a variação qualitativa do número de representantes sem explicar os seus moldes ou parâmetros.
É errado centrar a questão no número de deputados. Não se trata deste factor, mas sim da sua relação com os cidadãos. Pergunte-se antes quem e que interesses eles representam, pois os das populações e dos trabalhadores não são representados com consequências reais. Isto porque, para além do Parlamento enquanto instituição, os deputados e os seus partidos são eles próprios agentes do regime que domina os trabalhadores.
Na Inglaterra, onde está implementado o sistema eleitoral com círculos uninominais, consegue-se reduzir a menos de 10% a representação parlamentar de partidos com votações na casa dos 23%. Não garantindo que os candidatos não sejam corruptos ou mentirosos, esta realidade favorece o bipartidarismo, varre do Parlamento os restantes partidos igualmente representados e prejudica o surgimento de outras forças fora do eixo dos partidos da governação. O Manifesto admite este cenário quando estabelece a necessidade de haver um círculo eleitoral nacional de compensação, burocratizando o processo eleitoral, quando ao mesmo tempo que afirma que “tudo pode ser feito com a garantia como é indispensável da rigorosa representatividade parlamentar das diferentes correntes de opinião existentes na sociedade portuguesa. E tudo pode, e deve, ser feito em moldes que impeçam como é também indispensável que a reforma eleitoral seja aproveitada de modo oportunista para fazer concentrar artificialmente toda a representação em dois ou três partidos, que dela se apropriariam de modo ilegítimo.” Juntando a isto a redução do número de deputados, PS e PSD poderiam de facto repartir a quase totalidade dos lugares na Assembleia da República. Tal como já nos referimos anteriormente, “Com menos deputados, PS e PSD reduzem a democracia ao bipartidarismo, para pôr o país a pão e água mais facilmente. Não é um parlamento com menos deputados que querem, mas sim um parlamento só para eles e para os seus amigos.”5 Para a representação local já existem os Presidentes de Câmara e de Junta de Freguesia – a grande questão é se representam os reais interesses das respectivas populações ou se apenas amortecem as decisões do Governo.
O Parlamento tornar-se-ia ainda mais num pólo de governamentalização, ao facilitar maiorias absolutas e a passar as medidas dos sucessivos governos, destinadas a proteger os grandes interesses financeiros e os privilégios dos que nos governam sem se preocuparem com o aprofundamento das desigualdades sociais. Isso é que derruba a reputação da Assembleia.
Uma crise de representação
Se vivemos hoje uma crise económica e social, a muito se deve à crise representativa, na qual os representantes se distanciam dos representados. Assim a representação parlamentar está cada vez mais descredibilizada e rejeitada pela opinião pública, que nela não se revê. De facto a tradicional representação parlamentar é claramente incapaz em traduzir as aspirações e os pensamentos dos trabalhadores e da população em geral.
A proposta do PSD/Madeira vem na sequência do sentimento anti-políticos e anti-sistema, que coloca em causa as relações de confiança e credibilidade do sistema político face às populações. Todavia centra-se unicamente em questões formais e não se vê qualquer conteúdo político alternativo. As ideias e as políticas executadas pelos partidos da governação continuam as mesmas, algo que esta proposta de reforma política não alterará.
Contra salários e privilégios!
Actualmente um deputado na Assembleia da República recebe 3.189€ mensais, mais 325,88€ em despesas de representação, caso estejam em regime de exclusividade6. Não esqueçamos também os subsídios de deslocação e as regalias em comunicações e saúde, por exemplo.
Em tempo de crise, a defesa da diminuição do número de deputados para 181 recai em grande parte sobre a poupança para o Estado. Assim sendo, seriam gastos em salários menos cerca de 156.000€ mensais e 1.875.000€ anuais. Contudo, e considerando que esta ideia não foi posta de lado, pode ressurgir a intenção de aumentar o salário-base dos restantes deputados através da distribuição destas poupanças, como já proposto anteriormente pelos deputados do PSD Duarte Marques e Cristóvão Norte7. Assim os deputados seriam aumentados em aproximadamente 862€, ficando o país com uma representação reduzida pelos mesmos custos.
Perante isto exigimos:
– a redução do salário dos 230 deputados e restantes cargos para 1.200€, salário de um quadro médio em Portugal, menos de metade do actual e muito mais próximo da realidade dos trabalhadores;
– o reforço do regime de incompatibilidades;
– a revogabilidade dos mandatos, pois se os cidadãos elegem os deputados, também devem poder demiti-los;
– rotatividade dos representantes num prazo entre 6 a 12 meses de mandato efectivo cumprido, cedendo o lugar ao seguinte candidato da lista eleitoral pela qual foi eleito;
– a liberdade de candidatura para a Assembleia da República de listas de cidadãos independentes, o que nenhuma força política com representação no Parlamento quer verdadeiramente. É preciso promover, por um lado, a diversificação política e ideológica e, por outro, a união com outras forças.
Diogo Trindade
Notas
3 http://www.dn.pt/inicio/portugal/interior.aspx?content_id=1772925
4 http://www.jn.pt/PaginaInicial/Politica/Interior.aspx?content_id=3945784
6 http://www.parlamento.pt/DeputadoGP/Paginas/EstatutoRemuneratorioDeputados.aspx