O governo de Mariano Rajoy, de direita, quer uma nova lei que só permita o aborto em caso de violação da mulher e anomalia fetal incompatível com a vida.
Desde 2010 que as mulheres espanholas têm assegurada a interrupção da gravidez até as 14 semanas por sua decisão, sem precisar alegar qualquer motivo. Além disso, a lei então aprovada garante o direito ao aborto caso a continuidade da gestação ofereça riscos à saúde do feto e da mulher até as 22 semanas. Após esse período, o aborto ainda é permitido quando o feto apresente anomalias incuráveis ou incompatíveis com a vida. Em todos esses casos, a prática do aborto é financiada pelo Estado, em instituições públicas ou privadas.
É esta lei, que representou uma grande vitória das mulheres do Estado Espanhol, que o governo do PP quer revogar e substituir por outra que significará, caso seja aprovada, um retrocesso inclusive em relação à legislação sobre a matéria existente até 2010. A proposta apresentada pelo ministro da Justiça, Alberto Ruiz-Gallardón, e aprovada pelo Conselho de Ministros em dezembro, só permite o aborto em duas circunstâncias: quando a gravidez for decorrente de violação ou, até a 22ª semana, o feto apresentar malformações consideradas incompatíveis com a vida e suponha um grave risco para a saúde psíquica da mulher. Em qualquer outro caso o aborto passa a ser proibido e os profissionais envolvidos na sua realização serão acusados de crime.
A lei que vigorou entre 1985 e 2010, a primeira depois do franquismo, previa uma outra possibilidade de aborto legal além das duas únicas incluídas no projeto de Alberto Ruiz-Gallardón. Era possível interromper a gravidez a qualquer momento desde que a mulher alegasse risco grave para a sua saúde física ou psíquica, afiançado por relatório médico.
Um outro aspeto do projeto de lei que tem provocado indignação prende-se ao facto de obrigar as mulheres a 7 dias de reflexão antes de consumar a sua decisão, período durante o qual receberá um assessoramento “pessoal, individualizado e verbal”. Esse “assessoramento” poderá ser feito por entidades privadas e, como as organizações feministas temem, até por algumas ligadas a grupos que militam contra o aborto.
As primeiras vítimas
Os ataques aos direitos das mulheres começaram pelo setor mais frágil, as imigrantes. Em setembro de 2012, as imigrantes indocumentadas perderam o direito à interrupção voluntária da gravidez de forma gratuita nas primeiras 14 semanas. Só o poderiam fazer dali por diante em caso de violação, malformação do feto e perigo para a saúde da mulher. Desta forma, as mulheres imigrantes indocumentadas que decidissem abortar e não estivessem enquadradas em alguma dessas três situações teriam de pagar cerca de 350 euros, valor cobrado pela interrupção de uma gravidez de até três meses.
Desta forma, foram as mulheres mais afetadas pela precariedade e o desemprego nesse período de crise as primeiras a serem atingidas pelas novas leis reacionárias do governo PP. Esta iniciativa fez parte da política de limitar o acesso à saúde pública aos imigrantes sem documentos, mesmo que estivessem “empadronados”, isto é, registados no município de moradia. O objetivo foi poupar 500 milhões de euros.
Porque proibir o aborto?
A nova lei que pretende proibir o aborto em Espanha pode ser interpretada de vários ângulos. O primeiro tem a ver com o profundo reacionarismo de amplos setores da burguesia e pequena-burguesia do Estado Espanhol, uma herança do regime franquista com representatividade nas filas do PP. A igreja católica também faz parte dessa herança e do lobby anti-aborto, bastante ativo desde que, em 1985, a lei tornou-se um pouco mais liberal.
A poupança proporcionada pela nova lei também tem de ser levada em linha de conta para compreender a atitude do governo. Caso esta seja aprovada, o Estado deixará de financiar o equivalente a cerca de 90% das interrupções de gravidezes anuais. Nesse caso estão as realizadas até as 14 semanas de gestão por decisão da mulher, que passarão a ser proibidas.
O caso espanhol comprova como qualquer medida favorável às mulheres (e também aos demais setores oprimidos), principalmente as da classe trabalhadora, que são as que mais se beneficiam com o aborto legal e gratuito, podem ser sempre arrancadas pela burguesia. Não existem conquistas eternas e devemos estar sempre vigilantes para as tentativas de retrocesso.
Um retrocesso que está a atingir vários países, como a Hungria, onde, em 2011, o governo iniciou uma campanha contra o aborto financiada em 80% com dinheiro de subvenções da União Europeia. Na Turquia, o primeiro-ministro Recep Erdogan manifestou a sua intenção de alterar a lei, que permite o aborto até a 10ª semana de gestação.
Em Portugal, o PSD e o CDS-PP já ensaiaram, sem sucesso, aprovar a cobrança de taxas moderadoras às mulheres que recorrerem à prática do aborto no Serviço Nacional de Saúde.
Medida contestada
Mas este ataque do governo Rajoy aos direitos das mulheres está provocando muitos protestos e desconforto inclusive dentro do seu próprio partido. Cerca de 700 ginecologistas e outros especialistas médicos assinaram um manifesto pedindo que fosse reconsiderada a proposta de proibir o aborto em caso de malformação do feto. O jornal El País está a publicar editoriais contra a nova lei e pesquisas de opinião têm demonstrado que esta é rechaçada pela maioria da população.
A lei foi aprovada em Conselho de Ministros, mas ainda terá de ser submetida ao parlamento para entrar em vigor. Portanto, ainda é possível derrubá-la, o que só poderá ser obtido com a mobilização das mulheres, dos trabalhadores e da juventude.
Cristina Portella