Ditadura marcelista prende estudantes do secundário e rapa os seus cabelos num episódio que se tornou famoso como a “carecada”
No dia 16 de dezembro de 1973, foram presos 151 jovens, rapazes e raparigas, cujas idades oscilavam entre os 14 e os 18 anos, e que estavam a participar, nesse domingo, no plenário do movimento associativo dos estudantes do ensino secundário de Lisboa (MAEESL), realizado na Associação de Estudantes de Medicina, no Hospital de Santa Maria.
A ditadura tinha algo a temer com a radicalização da juventude. Todos os rapazes, a partir dos 16 anos, estavam confrontados com o futuro próximo da incorporação no exército, aos 18 anos, e da ida para a guerra colonial. Em reação, existia uma onda massiva de jovens a saírem do país para não ir à guerra. Quanto à maioria dos que entravam nas faculdades e tinham adiamento de incorporação, passavam a ser participantes da luta contra a guerra e a ditadura.
A reunião
No início dos anos 70, as universidades já estavam em grande agitação, e a partir de 1972, após a PIDE assassinar o estudante Ribeiro dos Santos (numa reunião na Faculdade de Economia), a agitação chegou em força aos liceus.
Em alguns liceus de Lisboa, as ações de grupos estudantis mais combativos eram bem radicalizadas, questionavam diretamente a autoridade dos reitores e neutralizavam a ação de alguns funcionários repressores que eram tidos como informadores da PIDE. Neste contexto a organização do movimento no ensino secundário era um incómodo que a ditadura queria ver resolvido.
A convocação pública da reunião do MAEESL desencadeou a reação repressiva, apesar desta reunião plenária, convocada em véspera de férias de natal, não se destinar a decidir ações específicas junto dos estudantes, mas sim a resolver problemas internos do movimento.
A reunião decorria sob alguma tensão, pois um dos temas a debater tinha que ver com a representatividade da própria reunião e com a convivência entre as diversas tendências já organizadas em grupos associativos distintos: a tendência “por um ensino popular” (maoísta), as tendências Grito e Outubro e Grupo de Estudantes (ambas trotskistas) e a tendência “unidade estudantil” (PCP).
A repressão
É durante este acalorado debate que chega a informação de que um grande contingente policial, de várias dezenas de policias, estava a cercar o Hospital de Santa Maria.
De imediato a discussão parou e todos começaram a debater o que fazer para responder à repressão. Foram enviados piquetes para averiguar a situação e possíveis saídas, mas estes mostraram-se ineficazes. Quando os que ficaram no plenário decidiram a saída organizada da sala para conseguir chegar à zona pública do hospital, já era tarde. Os que tinham ido de piquetes estavam isolados da reunião porque a polícia já tinha ocupado os corredores e as saídas de elevador naquela zona circundante. Mesmo assim os estudantes decidiram-se a sair organizadamente e ir ao confronto, pois os polícias visíveis da porta da sala eram apenas três a fechar o corredor. Nesse corredor, e a poucos passos dos policias que gritavam para recuarmos, quem esteve nessa linha da frente certamente recorda o som do engatilhar das armas dos policias que, amedrontados pela audácia daqueles adolescentes, estavam dispostos a disparar. Após alguns momentos de hesitação de parte a parte, um dos estudantes mais experientes apelou aos colegas que recuassem, o que aconteceu e se verificou o mais adequado, pois a relação de forças era muito desigual, em clara desvantagem para os jovens estudantes.
A “carecada”
Metidos numa dúzia de carrinhas da polícia, “ramonas” como eram conhecidas na altura, os jovens foram levados para o governo civil. Dos 106 rapazes e das 45 raparigas, transitaram 18 para a prisão de Caxias. O critério de ida para Caxias foi o de quem já tinha estado preso ou tinha nome sonante de conhecidas famílias da oposição.
Os outros, a maioria, foram encarcerados 30 a 40 em cada cela. Mas a disposição combativa que demonstraram, os constantes cânticos e palavras de ordem contra a ditadura levaram o tristemente célebre capitão Maltês a ameaça-los com banhos gelados e a chamar os rapazes um a um para a completa rapagem do cabelo, naquilo que ficou conhecido como a “carecada”, e que em vez de surtir o efeito de desânimo pretendido pela repressão, acabou sendo um símbolo de orgulho na luta contra a ditadura.
Apesar de processados e multados em elevadíssimas quantias, a maioria dos jovens nunca pagou nada e os processos foram arquivados com a queda da ditadura a 25 de Abril de 1974.
João Pascoal