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Mandela: não há homens perfeitos

Ainda que a imprensa portuguesa e de todo o mundo, não sem algum interesse, pretenda passar a imagem de um ser perfeito, ainda que os seus verdugos na África do Sul lhe dediquem palavras de ocasião ou Presidentes de República por cá (como Cavaco) se queiram apresentar como (admiradores convictos) aquilo que nunca foram (nem sequer defensores da liberdade para Mandela quando esteve preso!) não hesitaremos em submeter Madiba a uma leitura crítica, única forma de a história e todos nós aprendermos com o seu (incompleto) legado e exemplo.

Não somos nós que o dizemos mas uma articulista de um dos principais jornais europeus: ” (…) Mandela recebeu críticas de que cedeu e deu demasiadas concessões aos brancos sem, por exemplo, exigir em troca uma redistribuição da riqueza. Empresas e terra seguem nas mãos dos seus antigos donos brancos, (…) como o dos suculentos lucros das reservas mineiras (…) enquanto pagam míseros salários e oferecem condições duríssimas aos trabalhadores negros” (jornal espanhol El País, 6/12, pág. 6, artigo de Marta Rodríguez a partir de Johanesburgo).

Mandela, foi essencialmente, o que não foi pouco e lhe custou quase 30 anos de prisão, um anti-ditatorial e um anti-racista, num país onde uma minoria branca (não mais de 10% da população) exercia uma ditadura férrea, em nada diferente (certamente pior) da de Salazar em Portugal ou de Pinochet no Chile, para que se perceba do que estamos a falar.

A todos os que lutaram contra ditaduras quer sejam conduzidas por nazis, fascistas ou estalinistas, qualquer ser humano que ame as liberdades políticas e um regime com algum tipo de democracia, deve estar grato pelo seu combate, empenho, heroísmo e, muitas vezes até, a entrega da vida (como foi o caso de Guevara que morreu assassinado pela CIA nas matas da Bolívia, quando este revolucionário combatia mais uma outra ditadura militar neste canto do mundo).

Mas Mandela como político que também foi, ainda que nos queiram, vender com um Deus na terra, tinha um projecto de sociedade que de facto é aquela que ainda hoje é a África do Sul: uma economia que se mantém com exploradores e explorados (mesmo que na sua tomada de posse como primeiro presidente da república negro tenha prometido o contrário), uma economia em que os mesmíssimos empresários brancos que dominavam as minas de ouro e outros ‘suculentos’ negócios, à custa da escravidão da maioria negra escrava (!), continuam a ‘mandar’, enfim, uma economia capitalista em todo seu esplendor.

Talvez por isso a jornalista do El País, no interior de Joanesburgo, e no artigo já citado, tenha igualmente concluído: “Ainda que quebraram algumas barreiras raciais, todavia a maioria dos ricos continuam sendo brancos, enquanto que os negros (80% da população) são os que engrossam de longe a base da pirâmide…”. A luta de Mandela ao se cingir à destruição do regime político (a ditadura do apartheid) e não do sistema económico, trouxe inegavelmente uma sociedade mais democrática mas nos marcos dos (insuficientes) regimes democráticos burgueses, sem rupturas com a economia capitalista, a base da exploração do homem pelo homem que aqui e acolá Mandela se declarava adversário, mas que evitou destruir na transição da ditadura para a ‘democracia’.

Essa inconsequência (que lhe trouxe unanimidade entre todos os tipos de governantes do mundo) mantém a África do Sul nos marcos do capitalismo contemporâneo e, inevitavelmente, da corrupção até das elites do próprio ANC: “O caso de Malema, presidente da juventude do ANC, não é o único de corrupção política. Inclusive o presidente Zuma foi acusado de construir para si uma enorme mansão no sua terra natal, no valor de 20 milhões de euros, sacados ao erário público”. É certo que Mandela pode –e tudo indica que sim- ter sido bem mais comedido até porque quando chegou a presidente com 72 anos procurou dar um outro exemplo meritório, o do não apego ao poder, dado que se limitou a presidir ao país unicamente com um só mandato. ‘Coisa’ que o seu irmão negro em país vizinho, José Eduardo dos Santos, em Angola, é todo um exemplo pela inversa.

Contudo, Mandela ao se manter nos marcos de um lutador anti ditatorial, e não anti sistémico, deixa uma mensagem equívoca para todos os que hoje continuam a combater a sociedade baseada na exploração do trabalho humano: a de que nos basta manter nos marcos da “sociedade democrática”. Acontece que se não se aprofundar a luta que Mandela deixou incompleta é bem possível que até essa conquista, as sociedades democráticas que conhecemos, voltem aos períodos de ditaduras sangrentas.

Pelo menos para os sírios a transição para uma democracia ao estilo sul-africano já lhes custou mais de 200.000 mortos, sem contudo apear Assad do poder. Parece que hoje já não há espaço para novos Mandelas. Ou se caminha no sentido pleno do combate revolucionário ou caminharemos para novos regimes políticos cada vez mais obscuros da história, de desemprego crónico e da maior pobreza para a maior parte da população (branca ou negra ou branca e negra conforme os países) mesmo que com … o direito de um voto de quatro em quatro anos. É pouco.

 

Gil Garcia

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