A sonda Voyager 1, lançada em 1977, saiu do Sistema Solar para o espaço interestelar. O que revela a viagem da Voyager? O que pode a humanidade ver por trás das dezenas de milhares de fotografias enviadas pela sonda desde o início de sua missão?
Artigo de Henrique Canary, PSTU, Brasil
No dia 26 de junho deste ano, quando estávamos todos nas ruas fazendo história [o autor refere-se às gigantescas mobilizações que estremeceram o Brasil durante o mês de Junho deste ano], segurando com as nossas próprias mãos o leme do nosso destino e toda a nossa atenção se encontrava atraída pela incrível mobilização de massas que tomou o país depois de tantos anos de estabilidade política, uma pequena nota científica foi publicada em algumas revistas especializadas. De forma tímida e com poucas palavras, em tom quase deprimido (talvez devido ao subfinanciamento do qual é vítima desde que Obama se tornou presidente), a NASA informava que a sonda Voyager 1, lançada em 1977, havia entrado numa zona desconhecida do Sistema Solar, onde começava a sofrer (aparentemente, segundo os dados) a influência de outras estrelas. A nota levantava algumas hipóteses, mas não arriscava nenhuma conclusão. Somente há poucos dias, em 12 de setembro, depois de muitos cálculos, a agência norte-americana pode anunciar oficialmente e com certeza: a Voyager 1 havia deixado o Sistema Solar no dia 25 de agosto de 2012 e encontrava-se agora no espaço interestelar.
Dito assim, não parece grande coisa. Mas é. E das maiores. Um objeto construído pelas mãos do homem, num tempo em que não havia telemóveis, nem internet, em que os computadores mais potentes tinham a memória menor do que a de uma disquete velha – um objeto desta natureza encontra-se agora a uma distância de cerca de 19 mil milhões de quilómetros da Terra, seguindo um curso perfeitamente traçado há quase 40 anos, a uma velocidade de cerca de 62.000km/h (17km/s!), em estado completamente funcional, enviando até hoje fotos e dados de todos os eventos e corpos celestes que encontra no seu caminho.
Espera-se que as baterias nucleares da Voyager 1 funcionem até pelo menos 2020, quando todo e qualquer contacto com a Terra deve ser perdido para sempre. Mas isso não deterá a viagem da sonda. Se a Voyager 1 não esbarrar com nenhum obstáculo físico (como detritos, asteróides ou cometas), em apenas 40.000 anos ela cruzará o sistema estelar AC+79 3888, na constelação de Girafa, uma constelação visível apenas do hemisfério norte. No mesmo período, sua irmã gémea, a Voyager 2 (lançada também em 1977, mas com um curso um pouco distinto da Voyager 1), estará cruzando o sistema estelar Ross 248, na constelação de Andrómeda; e em cerca de 296 mil anos (uma fração de segundo no relógio cósmico!), entrará triunfante no grandioso sistema de Sirius A, a estrela mais brilhante do céu noturno, localizada na constelação de Cão Maior.
Mas o que revela a viagem da Voyager? Que conclusões de carácter social, político e econômico podemos tirar desta fantástica jornada? O que a humanidade pode ver por trás das dezenas de milhares de fotografias enviadas pela sonda desde o início de sua missão? Eis uma questão que deveria interessar a todo trabalhador consciente, lutador social ou simplesmente humanista sincero.
O Projeto Voyager
O Projeto Voyager (“viajante”) consiste fundamentalmente no envio de duas sondas espaciais para uma missão em duas fases. Primeiramente, a exploração do Sistema Solar Exterior, onde se encontram os gigantes gasosos: Júpiter, Saturno, Urano e Neptuno, bem como suas numerosas luas e anéis. Mais tarde, uma vez cumprida esta primeira fase, as sondas deixariam o Sistema Solar e passariam a explorar o espaço interestelar, ou seja, o vazio existente entre dois ou mais sistemas estelares. O ano de lançamento (1977) foi especialmente escolhido devido a um raro alinhamento dos grandes planetas gasosos, o que permitiria a ambas as sondas passar perto de todos eles, sem alterar significativamente sua trajetória.
A Voyager 1 passou por Júpiter em 1979 e por Saturno em 1980. Depois disso, deveria visitar Plutão (naquela época considerado também um planeta), mas a sua trajetória foi alterada para que ela pudesse observar mais de perto Titã, a grande lua de Saturno. Já a Voyager 2, além de Júpiter e Saturno, visitou também Urano e Neptuno, mas isso atrasou um pouco sua viagem e, por isso, ela ainda se encontra dentro do Sistema Solar, embora já se encaminhe para deixá-lo, seguindo o rastro de sua irmã.
Para azar dos militares norte-americanos, o lançamento das sondas Voyager ocorreu dois anos depois da derrota dos Estados Unidos na guerra do Vietname. A opinião pública norte-americana encontrava-se naquele momento absolutamente hostil a qualquer iniciativa militar por parte do governo, o que permitiu que os objetivos da missão permanecessem estritamente dentro dos marcos da ciência e do conhecimento.
Ao longo dos 36 anos que já dura a missão, as sondas Voyager enviaram à Terra dezenas de milhares de imagens e dados essenciais para o conhecimento mais profundo de nosso Sistema Solar (somente de Júpiter e das suas luas, foram enviadas 19 mil fotografias!). Descobriu-se, por exemplo, que a famosa mancha vermelha arredondada na superfície de Júpiter é uma tempestade do tamanho da Terra e que assola o planeta há pelo menos 300 anos; que Saturno possui os mais devastadores ciclones do Sistema Solar, com ventos que chegam 5.000km/h; que Urano, assim como a Terra, possui movimento de rotação, mas está “deitado” sobre seu próprio eixo, o que faz com que uma parte do planeta esteja sempre virada para o Sol, e a outra sempre na escuridão; que Titã, uma das luas de Saturno, possui hidrocarbonetos (uma família de compostos químicos combustíveis, similares ao petróleo) sob a sua atmosfera, além de nitrogénio na própria atmosfera, o que poderia criar condições favoráveis ao surgimento da vida no satélite. Descobriu-se também que Neptuno possui oito e não dois satélites, como se acreditava até então; e que Io, uma das luas de Júpiter, possui inúmeros vulcões ativos, ou seja, é um astro geologicamente tão vivo quanto a Terra, e muitas outras descobertas.
Numa palavra, as sondas Voyager 1 e Voyager 2 revolucionaram para sempre a nossa compreensão sobre o Sistema Solar e coletaram peças essenciais do enorme quebra-cabeças que tenta explicar a origem da Terra, da vida e do próprio Universo. Mas isto era apenas a metade da sua missão…
O disco de ouro da Voyager
Ora, se as sondas Voyager 1 e Voyager 2 estavam destinadas a vagar para sempre na imensidão do Cosmos, por que reduzir o seu papel à mera coleta de dados? Por que não utilizá-las para mandar uma mensagem de toda a humanidade a uma possível civilização alienígena, habitante de algum dos sistemas estelares que as sondas iriam algum dia atravessar? Assim, a exemplo do que já havia sido feito com as sondas interplanetárias Pioneer 10 e Pioneer 11, lançadas na primeira metade da década de 1970, e que levavam consigo placas de ouro com imagens de seres humanos e um mapa da localização da Terra no Sistema Solar, decidiu-se lançar com as sondas Voyager 1 e 2 uma série de fotos, sons, mapas e mensagens.
Mas, desta vez, optou-se por mandar muito mais informações do que havia sido feito com as sondas Pioneer. Ao invés de uma placa com alguns poucos desenhos, foi enviado um disco de ouro, com centenas de informações inseridas analogicamente, como num disco de vinil, além das instruções sobre como recuperar as informações contidas no disco.
O responsável por selecionar as imagens e sons a serem enviados ao espaço foi o cientista norte-americano Carl Sagan. Sagan ficou famoso no mundo inteiro no início da década de 1980 ao criar e apresentar a série televisiva “Cosmos”, um clássico da divulgação científica, e que já foi vista por mais de 500 milhões de pessoas. No início de sua carreira, Sagan e sua esposa, Ann Druyan, também cientista, costumavam contrabandear exemplares da História da Revolução Russa de Trotsky para dentro da URSS “para que os nossos colegas pudessem conhecer um pouco sobre os seus próprios primórdios políticos”, costumava explicar. Sagan talvez não fosse trotskista, mas era sem dúvida um humanista e uma alma sensível. Com ele à frente do projeto, havia uma boa chance de que a mensagem enviada às estrelas vizinhas seria, ao menos, relevante.
Obviamente, Sagan não era completamente livre na sua escolha e a realidade política influenciou a seleção. Ele já havia sido criticado nos meios conservadores por ter gravado a imagem de um homem e uma mulher nus na placa de ouro enviada nas sondas Pioneer 10 e 11. Não se sabe bem com que lógica, mas alguns políticos norte-americanos consideraram que isso seria ofensivo aos costumes e à moral dos alienígenas, e exporia a humanidade inteira ao ridículo. Assim, a NASA proibiu Sagan de incluir qualquer imagem contendo nudez no disco de ouro da Voyager, além de obrigá-lo a inserir uma mensagem gravada pelo então presidente dos EUA, Jimmy Carter, que só disse boçalidades e expôs a humanidade a um ridículo muito maior do que o nu frontal das sondas Pioneer.
Entre os muitos materiais selecionados por Sagan estavam:
Imagens: Terra vista do espaço, estrutura do DNA humano, anatomia humana, óvulo fertilizado, feto, família da Malásia, dunas de areia, outono e queda de folhas, flores, golfinhos, escola com crianças, sapo, homem velho com cachorro e flores, atletas soviéticos, festa chinesa, hora de ponta na Índia, comboio, pôr do Sol com pássaros, violino com partitura, pescadores portugueses;
Sons: saudações em 55 idiomas, terramoto, grilo, sapo, batimentos cardíacos, risos, ovelhas, autocarros, mulher a beijar o seu filho;
Músicas: folclórica de diversos países, clássica de vários compositores, e a melhor de todas: “Johnny B. Goode”, de Chuck Berry.
Sagan queria ainda incluir a canção “Here comes the Sun”, dos Beatles e chegou a entrar em contacto com eles para pedir autorização, no que foi prontamente atendido, mas a gravadora EMI, detentora dos direitos de autor, não permitiu a inclusão da música, pois entendeu que a propriedade intelectual era um conceito válido para todo o Universo. Felizmente, este facto jamais será conhecido da civilização que porventura venha a encontrar a Voyager um dia, e com isso a nossa espécie será poupada desta vergonha cósmica…
Que grandioso e emocionante é apenas pensar na remota possibilidade de que um dia uma civilização alienígena venha a encontrar o disco de ouro da Voyager e descubra nele os hábitos, a beleza e as imperfeições de uma civilização antiga que um dia viveu num minúsculo planeta rochoso que orbitava uma estrela nada especial, perdida na periferia da galáxia! Se isso acontecer (por motivos óbvios, as chances são mínimas), será algo muito mais importante do que todo o conhecimento acumulado pela humanidade ao longo dos séculos até hoje, conhecimento este, que foi tremendamente enriquecido com as missões da Voyager 1 e 2.
O pálido ponto azul e a grandeza do espírito humano
No dia 14 de fevereiro de 1990, quando a Voyager 1 já havia cumprido a primeira fase de sua missão e se encontrava a 6,4 mil milhões de quilómetros de distância da Terra, Carl Sagan, ainda no comando do projeto, teve uma ideia ao mesmo tempo singela e genial: virar a câmara da sonda em direção à Terra e tirar uma foto. O comando correspondente foi enviado à Voyager, que realizou a tarefa com perfeição. Na imagem obtida, a Terra aparece como um pequeno ponto azul claro na imensidão infinita. Devido a um efeito óptico involuntário, um raio solar parece “sustentar” a Terra no espaço, dando ainda mais beleza à imagem, que logo se tornou histórica. Segundo o próprio Sagan, a importância da foto reside no facto de mostrar a Terra como ela realmente é: uma parte infinitamente minúscula do Universo e, ao mesmo tempo, tudo o que temos.
Somos uma espécie jovem e inexperiente, e certamente encontramos-nos ainda na infância do nosso desenvolvimento. Há pouco mais de 50 mil anos mal dominávamos o fogo e vivíamos ainda em cavernas. Há 5 mil anos, não líamos nem escrevíamos. Há apenas 150 anos, não sabíamos voar e, há 30 anos, não tínhamos computadores em casa. Mas o espírito humano sempre foi maior do que os acampamentos que montamos, do que os oceanos que nos cercavam, do que os abismos que se abriam. Agora, este mesmo espírito provou-se maior do que a maior estrutura com a qual já tivemos contacto directo: o Sistema Solar. E uma parte de nós viaja agora muito além do que qualquer navegador jamais sonhou.
Não, o sucesso da Voyager não é a prova da superioridade do capitalismo. Tal superficialidade seria digna de um colunista da Veja [revista semanal brasileira, tipo Visão ou Sábado, com raíz política da direita conservadora]. Ao contrário: é a prova de que o capitalismo, apesar de toda sua força destruidora, não será capaz de deter o espírito humano. Um novo mundo, que já habita as entranhas do velho, há-de nascer.
A conquista do Cosmos e o reino da liberdade
Marx imaginou o comunismo como uma sociedade em que o altíssimo nível de desenvolvimento da técnica, associado a uma organização racional da produção e distribuição das riquezas, permitiria ao homem produzir com folga todo o necessário para o bem-estar de todos os habitantes do planeta. Assim, a produção industrial e o próprio trabalho não seriam determinados pela necessidade imediata, pois esta já estaria satisfeita com algumas poucas horas (ou talvez minutos) de trabalho diário de cada cidadão. O trabalho e a produção tornariam-se, assim, actividades livres, formas de expressão da nossa natureza humana, meios de socialização e integração de todos os membros desta imensa associação de produtores livres chamada sociedade comunista. A humanidade deixaria assim o “reino da necessidade” e entraria no “reino da liberdade”, liberdade esta entendida não como o bel-prazer individual, mas como a satisfação consciente de todas as necessidades.
Nos anos 1980, o trotskista argentino Nahuel Moreno afirmou que esta lei geral de Marx sofria uma inflexão particular, devido ao facto de que, por uma série de processos naturais, a Terra não poderia sustentar indefinidamente a espécie humana. Isso colocava a conquista do Cosmos como uma necessidade real para a humanidade, embora realizável, evidentemente, apenas num futuro distante. Assim, “o reino da liberdade” de Marx se defrontaria ainda com uma última necessidade: a de encontrar um novo lar para seus habitantes (é sabido, por exemplo, que dentro de algumas centenas de milhares de anos, o aumento da actividade natural do Sol tornará a vida na Terra insustentável, independentemente de nossos cuidados com o clima).
Mas a Terra ainda é o único planeta habitável que conhecemos. E ainda que se descubram outros, a possibilidade de transladar seres humanos vivos a tais distâncias é uma enorme interrogante científica. Pelo menos por enquanto, é aqui que precisamos ficar.
E isto remete para outra ideia: a de que o tempo que nos resta na Terra está sendo artificialmente encurtado pelo lucro, pela ganância e pela propriedade privada.
A promessa do comunismo
Em junho de 2013, nós, lutadores sociais, só olhamos para o céu para nos protegermos dos helicópteros da PM [Polícia Militar], que atiravam bombas covardemente sobre as nossas cabeças. Por isso, não notamos a grandiosidade do que ocorria acima daquelas nuvens cinzas e ácidas. Mas não devemos nos culpar. Fizemos a coisa certa. Olhamos para o que era mais importante: uns para os outros – e nos reconhecemos; cerramos fileiras; estendemos a mão para os colegas caídos; enfrentamos juntos o opressor. Ali abrimos um novo capítulo no livro de nossa história, e tal como a Voyager 1, começamos uma nova jornada. No início era apenas uma “zona desconhecida”, mas agora temos certeza: começamos algo grandioso. E se fomos capazes de superar a imensidão do Sistema Solar, por que não haveremos de superar as barreiras criadas pelo nosso próprio desenvolvimento social?
Sim, não negamos o facto de que o comunismo, assim como a conquista do Cosmos, continua sendo, pelo menos por enquanto, uma promessa e um sonho. Mas por acaso não são os sonhos a própria matéria da qual é feito este espírito humano do qual falamos? Não foram sonhos e promessas que nos deram as grandes revoluções do passado e que nos trouxeram até aqui? Não foram sonhos, lutas e promessas que levaram a Voyager 1 até a fronteira do Sistema Solar e além?