Tahrir ruge contra o novo faraó

Nas últimas semanas assistimos a imagens de milhares de egípcios ocupando novamente a emblemática Praça Tahrir, no Cairo, realizando imponentes manifestações em quase todo o país, enfrentando-se a pedradas com a polícia nas ruas e ultrapassando um impressionante cerco militar composto de arames farpados, tanques e soldados de elite – pertencentes à Guarda Republicana – para alcançar e cercar as portas do próprio palácio presidencial, na capital.

Ao ver estas cenas poder-se-ia pensar que são as mesmas daquela mobilização revolucionária de 17 dias e 800 mártires que derrotou o ditador Mubarak em 11 de fevereiro de 2011. Incluindo-se a palavra de ordem mais entoada em Tahrir, que é idêntica à de quase dois anos: “O povo quer a queda do regime!”

A diferença é que, agora, a classe trabalhadora e o povo egípcio já não a entoam contra Mubarak, o odiado ditador que tombaram com a sua luta revolucionária, mas contra o presidente Mohamed Morsi e o atual governo da Irmandade Muçulmana.

O pacto entre a Irmandade e os militares

Isso acontece porque as massas egípcias enfrentam um regime político bonapartista e repressor que, embora sem Mubarak, manteve o que é essencial devido ao facto de que a Irmandade Muçulmana pactuou com a cúpula militar a posse presidencial de Morsi em troca de não questionar o seu imenso poder económico e político.

Neste marco, este novo levante popular começou quando Morsi, fortalecido por seu destacado papel na negociação de cessar-fogo entre Israel e o Hamas, emitiu um decreto com categoria de “declaração constitucional” que lhe dava uma concentração quase total de poderes, estabelecendo que nenhuma decisão presidencial poderia ser questionada em nenhuma instância judicial. É preciso levar em conta que Morsi já concentra em si próprio o poder executivo e legislativo, depois que a anterior Junta Militar dissolveu o Parlamento em junho passado.

Porém Morsi foi além. Pouco tempo depois deste decreto, anunciou que o projeto de Constituição da Assembleia Constituinte – composta maioritariamente por membros islamistas – estava terminado e convocou um referendo relâmpago para os dias 15 e 22 de dezembro com a intenção de aprová-lo.

O rascunho da Constituição que Morsi e a Irmandade defendem – com o apoio dos setores islamistas mais fundamentalistas, conhecidos como salafistas – tem um caráter claramente bonapartista e repressor, antioperário e antigreve. Também atenta contra os direitos das mulheres e das minorias religiosas, pois baseia-se na sharia, ou lei islâmica (1). O elemento central deste projeto constitucional é que está feito ao gosto e paladar da cúpula militar, pois mantém intactos os enormes poderes e privilégios das forças armadas na economia e na política egípcias.

Sem dúvidas este rascunho da Constituição é um perfeito instrumento para derrotar a revolução e manter o regime bonapartista, sustentando o pacto da Irmandade com os militares com o apoio do imperialismo norte-americano. Aqui é necessário sublinhar que a atual investida bonapartista do governo e regime egípcios conta com a anuência de Washington, que deliberadamente utiliza Morsi como elemento de estabilização da região, como ficou claro na última agressão sionista a Gaza.

Por tudo isso, não é casual que a alta hierarquia das Forças Armadas não tenha se pronunciado contra o decreto e este projeto constitucional. A questão é que Morsi sempre respeitou escrupulosamente os seus interesses vitais. Em seus cinco meses de governo, o presidente islamista fez todo o possível para manter boas relações com a cúpula militar.

Morsi garante aos generais três questões que lhes são fundamentais: a) a manutenção da sua plena autonomia; b) a impunidade da Junta Militar pelos crimes e abusos cometidos durante a ditadura até a ascensão de Morsi; c) a salvaguarda de suas numerosas empresas e propriedades – estima-se que a cúpula militar controla nada menos que 30% da economia do país – e a manutenção da aliança com os Estados Unidos, que financia diretamente as Forças Armadas com mais de US$ 1,3 mil milhões anuais, situação que as transforma no exército que mais recebe incentivos financeiros do imperialismo depois dos israelitas.

Até agora tudo isso foi respeitado e protegido. De facto, o rascunho constitucional obriga a que o ministro da Defesa seja sempre um militar e outorga a um órgão militar, não ao Parlamento, o poder de elaborar o orçamento do Ministério da Defesa, tal como era nos tempos de Mubarak. Também mantém os aterrorizantes Tribunais Militares para julgar civis (ativistas sociais e opositores em geral) e não nega todo tipo de tortura. Nestes dias, o próprio Morsi autorizou o exército a deter qualquer manifestante que o enfrentava nas ruas.

Os ataques à liberdade de organização e de greve

A Federação Egípcia de Sindicatos Independentes (EFITU) emitiu um comunicado denunciando o decreto de Morsi e o seu projeto constitucional. Sobre o primeiro, esta federação questiona: “Como pode o presidente promulgar leis, e trabalhar para a sua aplicação, sem que ninguém tenha o direito de comparecer aos tribunais para impugná-las? (…) E se for emitido um decreto que proíba todos os sindicatos que foram criados desde a revolução? Ninguém poderá opor-se a ele?”

Referindo-se ao projeto de Constituição, especificamente às leis relacionadas com os direitos da classe operária e à sua liberdade de organização, denunciam: “(…) todos os projetos que surgiram da Assembleia Constituinte estavam completamente esvaziados dos direitos dos trabalhadores, camponeses, pescadores, trabalhadores informais. Os artigos que mencionam os trabalhadores e a justiça social não comprometem ninguém com a sua aplicação real, nem o governo nem os patrões. Ao mesmo tempo, os projetos protegem os interesses dos donos das fábricas e diretores das empresas: atualmente temos patrões que se negam a pagar os salários dos trabalhadores e os despedem, ou dão ordens de fechar a fábrica e expulsar os trabalhadores, mesmo quando gozam de privilégios e isenções fiscais. Inclusive obtiveram empréstimos bancários e nunca os devolveram (…)”.

Em outra parte do seu pronunciamento, este setor de sindicatos egípcios também se opõe ao discurso que Morsi fez no dia 23 de novembro, no qual ameaçou “usar a lei contra a interrupção da produção ou o bloqueio das estradas, ou proibir por lei as greves e protestos”, além de anunciar a entrada em vigência de uma lei (2) que autoriza o presidente a intervir nos sindicatos, podendo inclusive substituir os dirigentes atuais. Estes ataques de Morsi, como parte de uma ofensiva bonapartista de conjunto, são uma clara resposta a um crescente levante operário no cenário político egípcio, desde antes da queda de Mubarak. Setores da classe operária, como os trabalhadores da Fábrica Mahalla, a maior do ramo têxtil, foram parte da vanguarda que derrotou o antigo ditador. Desde que este caiu, realizaram uma série de lutas e greves. Nestes dias, como continuação da luta, protagonizaram uma importante marcha contra as medidas reacionárias de Morsi.

Isso se dá no em meio a um rico processo de reorganização no movimento operário no Egito, com a fundação de novos sindicatos ou federações. O governo da Irmandade, aliado dos militares, tenta liquidar este processo restringindo todas as liberdades e brechas democráticas que foram conquistadas com a queda de Mubarak. Mas ainda está longe de alcançar este objetivo. A força das mobilizações e a entrada em cena de um setor da classe operária conseguiram um primeiro triunfo: Morsi viu-se obrigado a retirar o seu decreto.

Derrotar a Constituição de Morsi e dos militares!

No entanto, Morsi não renunciou à sua proposta de Constituição nem ao referendo. É clara a sua intenção de desviar a luta para o terreno que mais favorece a Irmandade para, desta forma, desviar o processo revolucionário e “legitimar” o seu projeto político bonapartista e repressor: o campo eleitoral.

Diante de todo este processo, a oposição burguesa à Irmandade agrupou-se no que denominou Frente de Salvação Nacional. Essa é uma frente ampla que abarca uma série de partidos que se dizem “laicos e liberais” e até expoentes do antigo governo de Mubarak. É liderada por Mohamed el Baradei e Amro Musa, antigo chanceler de Mubarak e ex-secretário geral da Liga Árabe. Mas também há outros personagens, como Hamdin Sabahi, um nacionalista burguês que se apresenta como nasserista e tem um peso importante no mundo sindical e em alguns agrupamentos de jovens; não por acaso foi o terceiro candidato mais votado nas últimas eleições. Nesta frente ampla de oposição entraram também muitas organizações de jovens que estiveram nas praças desde o começo da revolução, como o conhecido Movimento 6 de Abril.

A frente de oposição decidiu chamar a votar “não” no referendo constitucional. Somos completamente contra este projeto constitucional e acreditamos que a luta contra o governo da Irmandade e do regime bonapartista passa de imediato por derrotar esse projeto de Constituição que legaliza e legitima o poder dos militares e reafirma todas as ligações do país ao imperialismo.

O combate contra a ofensiva bonapartista se dá agora nas ruas e também no terreno eleitoral. Por isso, mantendo a mais absoluta independência de classe, sustentamos ser necessário que as organizações sindicais e a esquerda apliquem uma política de ampla unidade de ação com todos os setores, inclusive burgueses, que estejam dispostos a enfrentar o regime e a Constituição que o consolida. É nesta ampla frente contra Morsi e os militares que devemos combater as direções burguesas e batalhar para construir uma direção revolucionária, pois a atual direção de el Baradei, Musa, etc., por limitações de classe intransponíveis, é e será incapaz de conduzir a luta até o final. Algumas demonstrações disso podem ser vistas, como a sua abertura para negociar tal ou qual questão sobre o texto constitucional e até sobre o mecanismo específico do referendo com o regime, para desmobilizar todo o processo.

Ao terminar este artigo realizou-se a primeira rodada do referendo e dados oficiosos dão a vitória parcial do “sim”, com 57% contra 43% do “não”. No entanto, numa jornada eleitoral militarizada com mais de 120 mil soldados, a nota destacada é o triunfo do “não” em várias cidades com importante peso urbano e operário, como a própria capital, onde a rejeição ao projeto da Irmandade obteve 57% dos votos. Na segunda rodada, a realizar-se em 22 de dezembro, votarão as cidades rurais do interior, onde os islamitas têm um peso muito maior. De todas as formas, mesmo que o projeto constitucional do regime seja aprovado nas urnas – que é o mais provável -, ele está longe de conseguir a legitimidade que a Irmandade e os militares pretendiam, uma vez que até agora só houve 33% de participação e existem numerosas denúncias de irregularidades durante as eleições.

A revolução está viva e avança

Estas imponentes mobilizações são uma demonstração incontestável de que a revolução egípcia não está encerrada e muito menos derrotada. Ao contrário, continua viva a chama de luta das massas exploradas e oprimidas, que, nestes quase dois anos após a derrota de Mubarak, não viu as suas condições de vida melhorarem nem suas aspirações democráticas serem satisfeitas.

O mais positivo e alentador é que esta nova onda de mobilizações revolucionárias enfrenta diretamente o governo da Irmandade Muçulmana, o partido burguês mais forte e mais bem organizado do país. Esta organização política de 84 anos sempre teve um forte prestígio entre amplos setores das massas, apesar de ter sido um dos sustentáculos de Mubarak e de atualmente manter o seu governo pactuando com a cúpula militar assassina.

O crescimento da deceção e a oposição popular à Irmandade têm a ver com a experiência direta que as massas estão a fazer com esse governo. O desgaste da Irmandade é muito mais rápido do que se esperava. Após assumir o poder a menos de meio ano com alta aprovação popular, vê-se agora setores de massas comparando Morsi a Mubarak ou a um faraó moderno e a exigir nas ruas “Morsi, Morsi, renuncie!”. Esta comparação de Morsi com Mubarak era impensável até há pouco tempo. Agora é um facto. Em diferentes pontos do país, milhares de pessoas invadiram e incendiaram aproximadamente 40 sedes da Irmandade.

Tudo isso se deve a duas situações: por um lado, está mais claro que a Irmandade encontra-se no mesmo projeto autoritário que os militares; por outro, Morsi tem de aplicar planos económicos que golpeiam com dureza o já espoliado nível de vida do povo egípcio. Em meio a esta retomada do ascenso operário e popular, Morsi teve de dar marcha-a-ré – após havê-lo anunciado – num plano de aumento de impostos de até 50% em produtos de primeira necessidade, como parte do pacote que o FMI exige para efetuar um empréstimo de US$ 4,8 mil milhões de dólares.

A principal tarefa neste momento é completar o processo que teve como primeira vitória a derrubada de Mubarak e avançar até a destruição total do regime ditatorial controlado pela cúpula das Forças Armadas e sustentado pelo imperialismo. Isto implica também, é claro, numa luta mais decidida contra o governo da Irmandade, uma das garantias deste regime.

Destruir o regime bonapartista egípcio – que agora governa com cara islâmica- e conquistar liberdades democráticas amplas é uma tarefa fundamental para que a revolução possa avançar para um governo operário, camponês e popular que comece a construção do socialismo no Egito e na região.

Neste sentido, é urgente aprofundar a mobilização popular, exigindo a convocação de uma nova Assembleia Constituinte livre e soberana. Esta luta será inevitavelmente contra o governo de Morsi e de toda a cúpula militar que controla as rédeas do poder político e da economia.

Por isso, as mobilizações por questões democráticas e económicas devem estar colocadas na perspetiva de derrubar o governo da Irmandade e o regime militar, e de instaurar imediatamente um governo operário e popular sustentado nas organizações sindicais e sociais. Só um governo com estas características poderá convocar uma Assembleia Constituinte realmente livre e soberana, com base nos interesses dos operários e do povo, começando com a rutura completa de todos os pactos políticos e económicos que sujeitam o Egito ao imperialismo norte-americano e ao Estado nazi-sionista de Israel. Só um governo operário e dos explorados poderá castigar todos os crimes de Mubarak e dos militares, além de confiscar as suas propriedades e enormes fortunas para colocá-las a serviço do povo.

A execução destas tarefas (destruição do regime bonapartista, rutura com o imperialismo e avanço para a expropriação dos capitalistas) está colocada na realidade. A revolução que sacode o norte da África e o Oriente Médio, com o reanimar da luta palestiniana, a acentuação das lutas operárias na Tunísia, o começo das lutas das massas na Jordânia, com o regime de Al Assad cada vez mais isolado pela revolução e pela guerra civil na Síria, dão-nos motivos para ser otimistas quanto à vitória definitiva da revolução no Egito e em toda a região.

(1) O artigo 2, que estabelece a identidade do país e o papel da lei islâmica, é o mesmo da Constituição de 1971 e diz:“o Islã é a religião do Estado, o árabe é sua língua oficial e os princípios da sharia são a principal fonte de legislação.

(2) É a lei 97/2012, que modifica a lei 35 de 1976.

Ronald León Núñez, da Liga Internacional dos Trabalhadores – Quarta Internacional (LIT-QI)

http://www.litci.org/

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