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Crise mundial ameaça estabilidade chinesa

Embora o mundo esteja com os olhos voltados, principalmente, para a  Europa, o cenário chinês, seja pela situação económica, seja pelo elemento político, coloca motivos suficientes para preocupar o governo, a burguesia mundial e o imperialismo.

Iniciemos por acontecimentos específicos: nas últimas semanas, a taiwanesa Foxconn Technology Group, instalada na China e montadora de produtos para grandes multinacionais do ramo da tecnologia (O IPhone da Apple, por exemplo), voltou a fazer parte dos noticiários. A empresa, que ficou conhecida por casos de suicídio de trabalhadores nos últimos três anos, tem sido palco de conflitos e protestos de operários desde o final de setembro.

No dia 24, domingo à noite, foram registados confrontos nos dormitórios da unidade na cidade de Taiyuan (que emprega 79 mil operários), província de Shenzhen, ao norte do país, o que causou o encerramento da fábrica na segunda-feira seguinte. Enquanto a direção da empresa alegou serem os confrontos resultado de disputas entre os próprios operários, provenientes de diferentes províncias, o verdadeiro motivo, denunciado por funcionários, foi o tratamento brutal dos guardas da montadora aos trabalhadores. Em resposta ao abuso contra uma trabalhadora, os trabalhadores, revoltados, incendiaram bicicletas e camas, atirando-as pelas janelas dos dormitórios, tombaram carros da polícia, destruíram cercas e muitos afirmam que várias lojas do complexo foram destruídas. Cerca de 5 mil polícias teriam sido accionados para reprimi-los e 40 pessoas, segundo a Foxconn, foram levadas a hospitais para atendimento médico.

Segundo um trabalhador desta unidade, “alguns supervisores e seguranças nunca nos respeitam. Todos nós temos raiva e a forma de libertar esta raiva foi destruindo as instalações”. Este sentimento é generalizado. Trabalhadores das unidades de Henan, Shandong e Shenzhen publicaram cartas na internet dando os parabéns aos de Taiyuan pela sua coragem de rebelarem-se.

Já no dia 5 de outubro, entre 3 e 4 mil operários paralisaram a produção na planta de Zhengzhou, capital da província central de Henan, embora já tenham retornado ao trabalho.Desta vez o motivo foi a exigência da Apple para endurecer o controle de qualidade do seu último lançamento, o iPhone 5, o que gerou uma tremenda pressão sobre os trabalhadores da produção, obrigados a trabalhar num ritmo alucinante, e sobre os trabalhadores do Controlo de Qualidade (CQ), que não conseguiam aprovar a quantidade exigida devido aos novos requisitos. Para “resolver” o problema, a empresa obrigou-os a trabalhar num feriado nacional a fim de recuperar a produção. A combinação destes factores levou à greve do setor de CQ.

Por trás destes episódios estão as realidades já rotineiras na China, das quais a Foxconn é uma forte expressão: superexploração, jornadas extenuantes de até 12 horas diárias, horas extras mal remuneradas, metas absurdas de produtividade, controle de qualidade desumano, regime interno militar, maus tratos, péssimas condições de trabalho, falta de direitos trabalhistas e um longo etecétera.[1]

A situação da Foxconn e os factos mencionados, longe de estarem isolados, trazem a possibilidade de refletirmos e analisarmos qual a relação do país com a economia mundial e com a turbulenta conjuntura internacional, no marco das mudanças ocorridas, durante as últimas décadas, neste ex-estado operário.

Restauração do capitalismo, dependência e superexploração

O exemplo da Foxconn e as suas fábricas de aluguer às multinacionais (Apple, Microsoft, Dell, Amazon, Sony, Nokia, etc) que empregam em torno de 1 milhão de pessoas, dá uma boa pista do caráter atual da economia chinesa: capitalista e subordinada ao imperialismo.

E isso só se aprofundou nas três últimas décadas. A revolução de 1949, ao expropriar a burguesia e enfrentar o imperialismo, proporcionou, como no restante dos Estados Operários surgidos na primeira metade do século XX após a Revolução Russa de Outubro, grandes avanços sociais e econômicos a uma população prioritariamente agrária, apesar das políticas desastrosas da burocracia dirigente, em consonância com os ditames políticos e “teóricos” do stalinismo (isolamento da revolução nas fronteiras nacionais, teoria do “socialismo e um só país”).

Esta condução desastrosa de um Estado operário, combinada com a ofensiva neoliberal do imperialismo nas décadas de 70/80 levaram o país à restauração do capitalismo e à recolonização de sua economia.

Isso quer dizer: abertura ao capital estrangeiro, incorporação ao circuito do desigual comércio internacional e enorme diminuição do peso económico das estatais, com o encerramento e privatização de muitas delas. Ou seja, as chamadas “quatro modernizações” de Deng Shiao Ping solaparam os pilares de um Estado Operário: monopólio do comércio exterior, propriedade Estatal dos meios de produção e planeamento central da economia (planificação).

Todo esse processo ocorreu contando com um elemento particular (que tem paralelo com o caso de Cuba): a restauração do capitalismo levada a cabo pela própria burocracia sem que esta fosse derrubada pela mobilização de massas como no leste europeu. Na China, o massacre da Praça de Tiananmen simbolizou a consolidação da restauração capitalista e a transformação da burocracia dirigente numa nova burguesia. Assim, a transformação da economia foi facilitada e garantida por um regime fechado e de partido único (o Partido Comunista Chinês), fazendo com que o antigo Estado Operário se tornasse uma ditadura burguesa.

Essa ditadura cumpre um papel de peso a favor do imperialismo, da burguesia mundial e nacional: domesticar a classe operária chinesa, forçando-a a aceitar baixos salários e condições de superexploração (sem esquecermos da sua numerosa população e de uma grande disponibilidade de força de trabalho). Cenário ótimo para o afluxo de capitais (os investimentos estrangeiros Diretos – IED – alcançaram a cifra de 1,05 bilião de dólares entre 1982 e 2009)[2],  e instalação de multinacionais, cujo resultado é conhecido: a China tornou-se a “fábrica do mundo” tendo um papel central na economia mundial globalizada ao inundar o mercado internacional de produtos baratos e importar um alto volume de matérias primas.

Obviamente, nesse contexto, a China foi “presenteada” com um importante crescimento econômico (crescimento médio do PIB de 10% nas três últimas décadas)[3], acompanhado pelo mito de que o país caminhava a passos largos em direção a uma nação próspera e  moderna, uma nova potência capaz de fazer frente ao poderio estadunidense e de seus aliados.

Comparemos com a realidade:

Já mencionamos as condições de superexploração e maus tratos as quais é submetida a classe operária chinesa. Quanto ao nível de vida de sua população de conjunto, este diminuiu em proporção inversa às altas taxas de lucros conseguidas pela burguesia. Enquanto o capitalismo crescia na China na década de 90 e nos anos 2000, o consumo familiar baixava a 36% do PIB[4]. Entre 1983 e 2003, por exemplo, a participação dos salários no PIB desceu de 57% para 36,7%.[5] Em contrapartida, além da burguesia, setores da burocracia de Estado, do exército e de uma “nova classe média” enriqueceram-se, inclusive com membros do PCCh “passando para o lado lá”, tornando-se burgueses ao apropriarem-se de empresas estatais. Ou seja, a “prosperidade económica” passa ao lado da maioria da população trabalhadora.

Mas do ponto de vista dos ganhos da burguesia, seria a China uma potência capitalista tal e qual os EUA, Japão e os países centrais da Europa? Afirmamos que não. Enquanto a burguesia chinesa participa maioritariamente da produção de mercadorias de baixa tecnologia (em 2002 as empresas estrangeiras ocupavam 32,9% do total de indústrias têxteis), a produção de produtos de alto valor agregado, não só é o carro chefe da economia chinesa (67% do total de exportações em 2005) como também é dominada pelas multinacionais (99,4% na indústria de computadores, por exemplo)[6]. Isto é, a burguesia chinesa, formada a partir da restauração capitalista dentro do próprio PCCh, é sócia menor da burguesia imperialista, assim como nos demais países semicoloniais. A economia chinesa, segundo o modelo adoptado, é extremamente dependente da tecnologia e do capital internacional, o que impede qualquer passo significativo e estrutural no sentido de uma autonomia económica, mesmo que, politicamente, procure muitas vezes fazer frente aos EUA em pé de igualdade.

Recentemente, o periódico Le Monde Brasil Diplomatique, edição de Setembro (Ano 6, número 62) publicou um artigo do professor Michael Klare do Hampshire College, intitulado “A China é imperialista?”, no qual desenvolve uma tese de que a China, atualmente, se encontraria numa situação delicada e dúbia, tendo que assumir uma postura semelhante às velhas potências coloniais de compactuar com governos corruptos e autoritários da África e Ásia para manter estável o fornecimento de matérias primas indispensáveis, como hidrocarbonetos e minerais. Ora, como já apontamos, o desenvolvimento do capitalismo chinês é dependente e subordinado. Portanto, o abastecimento do seu parque industrial obedece a essa mesma lógica, principalmente tratando-se da indústria automotiva e eletrónica de ponta (nas quais o capital estrangeiro é maioritário). Esse fornecimento é feito através de empresas estatais chinesas remanescentes, que também se beneficiam, mas sempre a serviço do principal favorecido, o imperialismo, o que revela a posição da China de submetrópole, associando-se em patamar de desigualdade com o imperialismo nessa busca de recursos naturais estratégicos.

O modelo chinês foi, nessas últimas décadas, a “menina dos olhos” do capital imperialista. Porém, há sinais de desgaste, resultantes, sobretudo, da evolução da crise económica mundial.

A crise econômica, as lutas operárias e o cenário político

A China como “fábrica do mundo”, exportadora de produtos industriais e compradora de matérias primas do Brasil, África, Ásia, Rússia, Austrália e outros, não passa imune à crise económica, mesmo que ainda registe um índice de crescimento económico elevado em comparação ao restante do mundo. Mas há uma desaceleração preocupante, reflexo, principalmente da desaceleração do crescimento nos EUA – de 3,1% para 1,5% entre o último trimestre de 2011 e segundo de 2012 e da recessão europeia (queda 0,2% do PIB na zona do euro no segundo trimestre de 2012)[7], principal mercado importador chinês. Os números são categóricos, enquanto o PIB do país cresceu 10,4% no ano de 2010 e 9,2% em 2011, a previsão do próprio governo é de um crescimento de 7,5% em 2012 (7,8% para o FMI), com crescimento médio de 7% até 2015[8], sendo que cresceu 7,6% no segundo trimestre, devendo crescer 7,4% no terceiro.[9]

A redução da atividade económica já provocou uma série de revoltas e greves no final de 2011 no sul e sudeste do país, quando as previsões económicas ainda eram mais optimistas. Foi considerada uma segunda onda de greves, sucedendo a dos operários da indústria automobilística em 2010, que arrancou importantes aumentos salariais.[10]

A burguesia reage, para retomar suas taxas de lucro, em várias frentes: deslocando capitais para onde os salários são mais baixos, como o interior do país ou a países vizinhos, optando pela saída clássica do aumento da exploração, diminuição dos salários e despedimentos ou até mesmo voltando a produzir nos locais de origem das multinacionais. O governo, por sua vez, tenta contornar a situação com medidas fiscais – redução de juros – e investimento pesado em infraestrutura para continuar atraindo capitais. Medidas essas que não conseguiram reverter o quadro geral: redução de investimentos estrangeiros diretos de 3,4% em relação aos últimos 12 meses e redução das exportações e importações.

O agravamento da situação econômica, com a crise chegando aos países centrais da Europa[11], intensificou as lutas operárias naquele continente, o que abala a confiança da burguesia para investir, causando o encerramento de postos de trabalho e aumento da resistência operária. Não se pode falar de uma recessão na China, apesar da redução do crescimento, mas tampouco se pode afirmar que o caso da Foxconn seja pontual.

O facto das mobilizações na Foxconn terem ocorrido em função da pressão pelo aumento do ritmo de produção exigido pela Apple – o que joga por terra sua afirmação de que está fiscalizando as condições de trabalho de seus fornecedores – demonstra como a crise mundial pode incidir sobre a China, devido à necessidade de aumento da taxa de lucro das empresas imperialistas. Mas a classe operária chinesa vem de vitórias económicas importantes, com a conquista de aumentos salariais e valorização dos salários mínimos regionais, o que pode fazer com que a necessidade de aumento da exploração combinada às atuais mobilizações económicas e democráticas contra fábricas poluidoras, cada vez mais frequentes, levem a uma nova onda de revolta dos trabalhadores chineses, principalmente se o crescimento económico for reduzido a níveis próximos a 6%.

Neste marco, o principal desafio da ditadura do PCCh é impedir a qualquer custo que essas lutas económicas se liguem a lutas políticas por liberdades democráticas (também intensas em 2011)[12] a ponto de haver um questionamento generalizado do regime por ela sustentada.

Nas vésperas do décimo oitavo congresso do partido, as diferenças acerca do melhor caminho para manter na China as melhores condições para o saque imperialista têm gerado, desde o início de 2012 pelo menos, divisões públicas no interior do próprio PCCh, como demonstra a recente expulsão de Bo Xilai, um dos “príncipes”[13] do partido e seu ex-chefe em Chonkging, e a condenação de sua esposa pelo assassinato de um negociante inglês. A verdade é que o PCCh, que ainda leva o termo “comunista” em seu nome, não passa, hoje, de um partido pró-imperialista, representante da nova burguesia chinesa e, inclusive, com vários acordos com a velha burguesia, estabelecida em Taiwan e Hong Kong.

Chamamos a população chinesa e sua classe operária a não confiar nos patrões imperialistas e nos governantes do país. A economia chinesa não é uma economia de “transição” a uma economia socialista e igualitária, é sim uma economia capitalista, dependente do imperialismo e mantida por uma ditadura burguesa. A única saída para que o proletariado chinês se livre da superexploração e dos efeitos destruidores da crise económica que se avizinha por lá é confiar nas suas próprias forças, “destronar” o governo “comunista” em prol do poder operário e popular, romper com o imperialismo e ligar-se aos seus irmãos trabalhadores de outros países. Só assim será possível que a China se torne um país verdadeiramente próspero, moderno, desenvolvido e independente.

Escrito por Leonardo Marques Nunes e Marcos Margarido, PSTU/Brasil

[1] Ver http://www.techtudo.com.br/noticias/noticia/2012/09/conheca-pessima-experiencia-de-um-operario-na-fabrica-do-iphone-5.html
[2] Marcos Margarido. China: Potência mundial ou submetrópole dependente?,  LIT-QI, Março de 2012.
[3] Marcos Margarido. China: Potência mundial ou submetrópole dependente?.LIT-QI, março de 2012.
[4] LIT-QI. O modelo chinês ameaçado pela crise e pelo ascenso operário, março de 2012.
[5] Marcos Margarido. China: Potência mundial ou submetrópole dependente?.LIT-QI, março de 2012.
[6] LIT-QI. O modelo chinês ameaçado pela crise e pelo ascenso operário, março de 2012
[7] Eduardo Almeida. Brasil, greves e reflexos da crise internacional questionam governo Dilma. PSTU, Setembro de 2012
[8] LIT-QI. O modelo chinês ameaçado pela crise e pelo ascenso operário.Março de 2012
[9] REUTERS, 09 de Outubro de 2012.
[10] Marcos Margarido. A primavera árabe está chegando ao inverno chinês. LIT-QI, Janeiro de 2012.
[11] Ver http://www.litci.org/pt/index.php?option=com_content&view=article&id=3338;crise-economica-chega-aos-paises-centrais-da-europa&catid=23;europa
[12] Ver http://www.litci.org/pt/index.php?option=com_content&view=article&id=2922;a-primavera-arabe-esta-chegando-ao-inverno-chines&catid=11;china
[13] Como são chamados os filhos dos líderes da revolução de 1949 que subiram os degraus do poder em base a privilégios adquiridos por herança.

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