O Tribunal de Contas (TC) absolveu os 26 ex-responsáveis da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT) acusados pelo Ministério Público (MP) de terem pago indevidamente 75,6 milhões de euros ao Grupo Mello, no período entre 1996 e 2001. O grupo Mello foi a sociedade gestora do hospital Amadora-Sintra até 2009 e o MP exigia-lhe o pagamento de uma indemnização de 60 milhões de euros.
O TC argumenta que, apesar de legítimas, as interpretações que o MP faz dos contratos em causa de nada valem, uma vez que são contrárias às do acórdão de 2003 do Tribunal Arbitral (TA), já transitado em julgado. Este TA, criado durante o Governo PSD/CDS de Durão Barroso, quando Luís Filipe Pereira – administrador do Grupo Mello antes e depois da passagem pelo Governo – era Ministro da Saúde, concluiu que não só o Grupo Mello não tinha de devolver os 75,6 milhões de euros, como tinha ainda 43 milhões a receber. António Cluny, procurador do MP junto do TC, já anunciou recurso desta decisão.
Uma história escabrosa
Mas, uma vez que este processo já se arrasta há 9 anos e se refere a uma história escabrosa que remonta a 1995, o melhor é contá-la desde o início.
Em Julho de 1995, o então Primeiro-Ministro Cavaco Silva assina a minuta do contrato de gestão do Amadora-Sintra. Em Outubro do mesmo ano, a Ministra da Saúde Leonor Beleza adjudica a concessão ao grupo Mello e o TC valida-a dois dias antes das eleições que o PS viria a ganhar, nesse mesmo mês, dando início ao Governo de António Guterres. É de salientar que o contrato recebeu o visto prévio do TC apesar de não terem sido apresentados alguns documentos essenciais, como admitiu em 2003 o então presidente daquele Tribunal, Alfredo José de Sousa.
E os contornos escandalosos desde negócio tornaram-se rapidamente óbvios: logo nesse ano foram pagos 3,75 milhões de euros aos Mello, referentes aos meses de Novembro e Dezembro de 1995, quando o grupo privado só assegurou a gestão do hospital a partir de 1 de Janeiro de 1996; foi incluída uma cláusula de arbitragem neste contrato, sem habilitação legal para a sua existência; por último, foi propositadamente entregue o seu acompanhamento, não ao Instituto de Gestão Informática e Financeira do Ministério da Saúde, que tinha capacidade para tal, mas à ARSLVT, que a não tinha.
A cláusula de arbitragem, que deu origem ao já referido Tribunal Arbitral, foi sempre a tábua de salvação deste negócio, por isso foi imposta desde o início. Convenientemente, devido a esta cláusula, as partes ficavam obrigadas a abdicar do direito de recorrer da decisão do TA. Mais convenientemente ainda, os juízes deste TA foram nomeados pelas “partes”, isto é, pelo Grupo Mello e pelo ministro, que era e voltou a ser um alto quadro do mesmo Grupo Mello. Por isso, todos os responsáveis políticos de então para cá nunca quiseram saber das conclusões não só da ARSLVT, mas também da Inspeção-Geral de Finanças (IGF) e do TC. Só quiseram, sempre, saber das conclusões do dito TA.
O Governo PS de Guterres poderia ter contestado desde logo o contrato, mas não o fez. Só 6 anos depois, durante o 2º Governo Guterres, foi posta em causa, pela IGF, a transferência de dinheiros do Estado para o hospital porque se detetaram pagamentos em duplicado, por erro de contas ou por atendimentos a utentes nunca realizados. O então Ministro da Saúde, Correia de Campos, confesso admirador das PPP’s, demoliu o relatório da IGF, considerando-o infundado e chegou mesmo a ostracizar os responsáveis do seu ministério, ao ponto de lhes recusar o apoio jurídico devido, para se defenderem das ações entretanto interpostas pelo Grupo Mello. É claro que o mesmo Correia de Campos, já durante o Governo Sócrates, renovou o contrato e sedimentou as suas normas, dizendo até que gostaria de ter mais experiências como esta, que qualificou de globalmente positiva.
No período da execução do contrato as irregularidades sucederam-se: os documentos relativos aos contratos de gestão celebrados pela sociedade gestora, a sua execução orçamental, os seus planos não foram entregues; não se cumpriram os prazos para abertura, nem o funcionamento de várias valências que estavam previstas (cardiologia, cirurgias vascular, oftalmológica, maxilo-facial e reconstrutiva); foi aplicada uma política de subdimensionamento do pessoal face às necessidades; chegou a implementar-se um programa de substituição de enfermeiros por auxiliares de acção médica, que não tinham a formação que garantisse a qualidade dos cuidados e a segurança dos utentes; durante um período, instalou-se uma prática remuneratória para alguns profissionais, assente no número de altas praticadas, que se traduzia, na prática, em altas precoces e respectivo reenvio dos doentes para o domicílio ou para o médico de família; muitos serviços, como os de oftalmologia e neurologia, encerravam às 20 horas, remetendo os seus utentes que a eles recorriam no período nocturno, para os hospitais públicos da região.
Estas práticas objectivamente parasitaram o Estado e, em particular, o Serviço Nacional de Saúde e nunca sequer se exigiu que as despesas decorrentes dos envios ilegais de doentes para outras unidades fossem cobradas ao Grupo Mello. Também nunca se explicou como é que o Grupo Mello só se lembrou de reivindicar os 43 milhões de euros depois do Estado detectar os pagamentos indevidos no valor de 75,6 milhões.
Após a experiência piloto do Amadora-Sintra, em 2001 foram anunciadas 10 novas PPP’s na área da saúde: Cascais, Braga, Loures e Vila Franca de Xira, numa primeira fase; Lisboa Oriental, Faro, Seixal, Évora, Vila Nova de Gaia e Póvoa do Varzim, seguidamente. Algumas destas PPP’s envolviam apenas a construção e manutenção dos edifícios, enquanto outras incluíam também a gestão clínica, tendo nalguns casos sido atribuídas ambas as concessões à mesma entidade.
O Governo de Durão Barroso criou então uma nova Entidade Pública, designada de “Parcerias em Saúde”, responsável pelos concursos e acompanhamento os contratos estabelecidos com os privados. Para além de ter gasto, só em 2005 e 2006, 858 mil euros em despesas de pessoal nessa entidade, o Estado encomendou estudos e pareceres sobre as PPP’s na saúde, a diversas empresas privadas, tendo para isso gasto mais 20 milhões de euros.
Em 2008, Sócrates anunciou o fim da gestão dos Mello no Amadora-Sintra, uma vez que, desde o acórdão do TA de 2003, nunca mais tinha existido acordo entre a ARSLVT e a José de Mello Saúde. A ARSLVT acusava aquela entidade gestora de facturar e exigir ao Estado o pagamento de exames complementares de diagnóstico e receitas que nunca teriam existido. O processo chegou a ser auditado pelo TC e o Grupo Mello foi multado, tendo depois interposto recurso. Mas Sócrates, ao mesmo tempo que terminava o contrato de concessão no Hospital Amadora-Sintra e reconhecia que as PPP’s realizadas para a gestão clínica dos hospitais eram um falhanço (enquanto dizia que para a construção e manutenção de edifícios eram boas), manteve as 4 PPP’s entretanto em curso e, pasme-se, atribuiu a gestão clínica dos novos hospitais de Braga e de Vila Franca de Xira exactamente ao mesmo grupo privado.
A sugar o dinheiro público
O novo Hospital de Braga iniciou o seu funcionamento em 2011, tendo a Escala Braga, empresa do Grupo Mello, assumido a construção e manutenção do novo edifício, bem como a gestão clínica da unidade, durante 10 anos. De acordo com as previsões iniciais, o Estado gastará 794 milhões de euros e pagará juros de 12 a 15 por cento. O contrato implica o pagamento deste montante até 2039 e o Estado assumirá vários tipos de risco da parceria, entre os quais o risco de inflação dos preços pagos por cada acto prestado e da sua revisão. Mas estes valores terão tendência a aumentar, tal como acontece com as restantes PPP’s, da área da saúde ou outras. Isto porque, de cada vez que há alterações às condições do contrato, os privados exigem um reequilíbrio financeiro para manter as condições de lucro iniciais. No caso do Hospital de Braga, no mesmo mês em que foi assinado, foi logo sujeito a alterações que significaram um acréscimo de despesa para o Estado.
Como se não bastasse o que acima se descreveu em relação ao passado muito pouco recomendável deste grupo económico, o Grupo Mello, com pouco mais de um ano de presença em Braga, foi já multado por duas vezes: por ocultação de informação ao Estado, no montante de 273 mil euros e por transferência indevida de doentes para hospitais do Porto, no montante de 545 mil euros.
As estimativas actuais calculam que pagaremos aos grupos privados envolvidos, 50 mil milhões de euros devido às inúmeras PPP’s realizadas, nas diversas áreas: saúde, educação, transportes, etc. As parcerias público-privadas na Saúde por si só representaram uma despesa de 8 mil milhões de euros.
Como bem ilustra o exemplo do Hospital Amadora-Sintra, as PPP’s são um negócio ruinoso para o Estado e uma renda milionária para os privados e mostram como a má gestão dos dinheiros públicos anda de braço dado com a promiscuidade e a corrupção entre sector público e sector privado.
H.B. (médico)