“Por que deveríamos subsidiar a curiosidade intelectual?”
Ronald Reagan, presidente americano, discurso de campanha eleitoral, 1980.
“Nada é mais digno de nosso patrocínio que o fomento da ciência e da literatura. O conhecimento é, em todo e qualquer país, a base mais segura da felicidade pública”
George Washington, presidente americano, discurso no congresso, 1790.
No dia em que se comemora a Independência norte-americana, dia em que os Estados Unidos escolheram para dizer para si mesmos e para o mundo como eles são uma grande nação, a velha Europa, mergulhada em crise, mas herdeira de uma gloriosa tradição intelectual, anunciou o que pode ser o maior feito científico desde o descobrimento do ADN, em 1953.
O “bosão de Higgs”, partícula fundamental que fornece massa a todas as outras partículas e que, portanto, é responsável por formar simplesmente toda a matéria do universo, está prestes a ser encontrado. No último dia 4 de julho, experimentos realizados no Centro Europeu de Física Nuclear (CERN) mostraram fortes indícios da existência do bóson. Embora muitos cálculos e novas experiências ainda precisem ser feitos, é inegável que nos aproximamos cada vez mais da última fronteira que nos permitirá entender a origem da matéria, e com ela, a origem do próprio universo. Mas as lições desse feito não se reduzem ao mundo da ciência e aos cadernos de domingo dos jornais burgueses. Todo operário consciente deve conhecer essa discussão e saber tirar as conclusões necessárias.
O incrível mundo subatómico
Como todos aprendemos na escola, a matéria que nos rodeia é composta por átomos. Mas os próprios átomos, que antes se acreditavam unos e indivisíveis, são apenas uma combinação específica de outras partículas ainda menores: os protões, neutrões e eletrões. Os protões e neutrões agrupam-se no núcleo do átomo num número específico, dando origem a um determinado elemento químico: hidrogénio, oxigénio, carbono, etc. Os eletrões, por sua vez, orbitam esse núcleo.
Frequentemente, para representar um átomo, desenhamos um pequena esfera com os eletrões girando ao seu redor. Isso é assim apenas em parte. A ideia central está correta, mas se fôssemos levar em consideração a escala das coisas, o desenho seria muito diferente. Se o núcleo do átomo fosse do tamanho de um limão, por exemplo, os eletrões estariam girando a cerca de 3 quilómetros de distância desse “limão” (núcleo). Quer dizer, o espaço entre a órbita dos eletrões e o núcleo atómico é imensamente “grande” (em termos sub-atómicos, obviamente). Daí tiramos uma primeira conclusão como mínimo impressionante: a maior parte da matéria que vemos, das coisas e pessoas que tocamos e sentimos é composta de… vazio.
Assim, ao estudar o mundo subatómico, os cientistas começaram a descobrir coisas fantásticas. Mas o mais importante: começaram a perceber que as leis tradicionais da física, a chamada “física newtoniana” (em referência a Isaac Newton, formulador das leis da mecânica clássica) simplesmente não se aplicavam ao mundo subatómico. Por exemplo, na física clássica, qualquer objeto, para dar uma volta completa em torno de si mesmo, tem que girar 360 graus. Assim ocorre, por exemplo, com a Terra ou com um casal que dança forró. Já no mundo subatómico, existe toda uma classe de partículas que, para dar uma volta completa em torno de seu próprio eixo, tem que girar… 540 graus, ou seja, uma volta e meia. Isso parece muito estranho, mas é assim.
Esses estranhos fenómenos observados pelos cientistas deram origem a uma nova mecânica, a mecânica do mundo subatómico, completamente diferente da mecânica clássica de nosso mundo visível: a chamada mecânica quântica.
O “modelo padrão”
Estudar o mundo subatómico é algo muito complicado. Não se pode abrir um átomo e ver o que tem lá dentro. O que se sabe sobre a sua estrutura interna provém fundamentalmente de experiências que “refletem” essa estrutura e, obviamente, de muitos cálculos matemáticos. Assim, ao longo do tempo, foi se estabelecendo um determinado “modelo” de como seria essa estrutura interna, seus componentes, seu comportamento etc. Isso não significa que os cientistas façam “especulações” sobre o mundo subatómico. Muita coisa foi demonstrada com precisão através de experiências absolutamente incontestáveis, verificados exaustivamente por todo o mundo científico. Já outra parte do “modelo” não foi ainda demonstrada. Mas mesmo o que não foi ainda demonstrado ou descoberto foi previsto matematicamente. Ou seja, os cientistas não detetaram ainda algumas partículas subatómicas, mas eles sabem que elas devem estar lá, só podem estar lá, porque todo o modelo só faz sentido se elas existirem e estiverem lá.
O “modelo padrão” é, portanto, um enorme (ou minúsculo) quebra-cabeças que vem sendo montado ao longo de várias décadas através dos esforços conjuntos de diferentes gerações de cientistas de diversos países.
A última peça desse quebra-cabeça é o “bosão de Higgs”, cujos indícios foram encontrados no último dia 4 em Genebra, na Suíça.
O “bosão de Higgs” e o LHC
A peça faltante no quebra-cabeça do modelo padrão diz respeito ao seguinte: como se formam as partículas subatómicas? Como é que elas adquirem massa, ou seja, como se tornam matéria?
Em 1964, o físico britânico Peter Higgs propôs a hipótese de que existiria uma partícula específica no mundo subatómico, cuja função seria justamente fornecer massa a todas as outras partículas. Essa partícula, pelo cálculos de Higgs, teria surgido logo após o Big Bang, há cerca de 13,7 mil milhões de anos, dando origem aos primeiros átomos e à matéria tal qual nós a conhecemos.
No entanto, a hipótese de Higgs permaneceu apenas um modelo matemático porque não havia condições técnicas de por à prova a sua teoria.
Somente em 2008, com a inauguração do LHC (Large Hadron Colider, ou “Grande Colisor de Hádrons”), um imenso acelerador de partículas de 27 quilómetros de circunferência enterrado na fronteira entre a Suíça e a França, foi possível dar início aos experimentos que deveriam demonstrar a existência do bóson de Higgs.
O que faz um acelerador de partículas? Basicamente, consiste em dois tubos circulares dentro dos quais se injetam duas “nuvens” de prótons eletricamente carregados. Essas “nuvens” vão sendo aceleradas em direções contrárias por meio de um sistema de ímanes colocados ao longo dos tubos. Quando as duas nuvens atingem 99,99% da velocidade da luz, os dois tubos são “conectados” um ao outro (como nas agulhas das linhas de comboio), fazendo com que as duas “nuvens”, que giravam em direções opostas, choquem violentamente. A colisão é tão poderosa, que a energia liberada pode ser comparada (proporcionalmente, é claro) ao próprio Big Bang. Os protões literalmente “se quebram”, dando origem a partículas menores, ou seja, demonstrando de que são feitos. Quanto maior o choque, menor a partícula gerada e mais a fundo a estrutura subatómica é revelada.
Foi basicamente esse experimento que detetou fortes indício do bóson de Higgs no último dia 4 em Genebra. Se não o capturamos ainda, pelos menos estamos nas suas pegadas…
O que muda com o bosão de Higgs?
Uma coisa muito importante: a perceção do homem sobre o universo e a matéria. Se o bosão de Higgs for encontrado, ficará definitivamente provado que a matéria pode sim surgir do nada.
Isso abalaria profundamente os alicerces das distintas religiões, pois várias delas, depois que aceitaram muito a contragosto a ideia do Big Bang, seguem batendo na tecla de que a matéria do universo não poderia ter surgido “do nada”. O bosão de Higgs comprovaria justamente que a matéria não só surgiu do nada, como ainda hoje surge constantemente do nada e se transforma constantemente em nada. Aceitar essa ideia é difícil para qualquer pessoa normal exatamente porque se trata de um fenómeno quântico, ou seja, regido por outras leis que não as da física clássica. Parece ilógico, absurdo, irracional, mas de acordo com as leis da física quântica, é um fenómeno tão banal, quanto a queda de uma maçã ou a frenagem de um carro.
“Partícula de Deus”?
O bosão de Higgs é frequentemente chamado na imprensa de “partícula de Deus”. A conotação ideológica do apelido é evidente: tentar atribuir a Deus a existência da partícula, mantendo assim uma visão mística do universo.
No entanto, há dois problemas com esse apelido: o primeiro é que ele não passa de um mal entendido. Em 1993, o prémio Nobel de física Leon Lederman escreveu um livro sobre o bóson de Higgs, cujo título em inglês era “The goddamn particle” (literalmente, “a partícula maldita”), em referência às dificuldades que se enfrentavam para encontrá-la. Mas a editora de Lederman achou o título muito agressivo e mudou para “The God particle” (A partícula de Deus), para não afastar o público religioso. O infeliz apelido acabou pegando e a pobre partícula é chamada assim até hoje.
O segundo problema é que o bosão de Higgs justamente afasta ainda mais a ideia de um deus-criador do universo. Da mesma maneira que Darwin demonstrou que o homem não necessitou ser criado, pois havia evoluído de espécies anteriores, assim também o bosão de Higgs demonstrará simplesmente que a matéria do universo (ou seja, tudo!) não precisou de um deus para ser formada. Formou-se e organizou-se por si mesma.
Sobre isso, é bom que se esclareça: nenhuma descoberta científica jamais provará a inexistência de deus, como desafiam os religiosos. Isso é assim por uma questão lógica. Só se pode provar que algo “existe”. Não se pode provar que algo “não existe”. Justamente por isso, o ónus da prova recai sempre sobre aquele que quer demonstrar a existência de algo. Mas cada descoberta científica prova, isso sim, que deus não é necessário. Com o tempo e com o avanço da ciência, assim esperamos, a hipótese de um ser-criador do céu e da terra ficará cada vez mais insustentável e as pessoas abandonarão essa ideia de maneira mais ou menos natural.
As conclusões políticas
A discussão sobre o bosão de Higgs remete-nos também a outras, mais políticas. Em primeiro lugar, ficou definitivamente comprovada a importância decisiva do financiamento estatal às pesquisas científicas. O LHC custou cerca de 3 mil milhões de euros. Quando começaram as discussões sobre sua construção, muitos políticos e meios de comunicação criticaram o projeto como sendo um “brinquedinho” para cientistas vaidosos brincarem de deus. Obviamente, nenhuma empresa privada queria investir tanto dinheiro em algo que não se tinha nenhuma certeza que iria dar certo. Chegou-se a especular que os experimentos com as nuvens de protões gerariam um buraco-negro que engoliria todo o planeta, etc. Tamanho o obscurantismo de certos meios reacionários…
Pois o LHC não só foi construído com dinheiro estatal num consórcio entre diversos países, como funciona de maneira extremamente democrática: os dados obtidos em todos os experimentos são compartilhados livremente com milhares de cientistas no mundo inteiro. Ficou provado também, portanto, que as atuais leis que regem a propriedade intelectual na maioria dos países protegem apenas as grandes corporações, sendo absolutamente nefastas para desenvolvimento da ciência. É preciso garantir a livre partilha de toda e qualquer informação, seja ela científica, cultural, política ou de qualquer outra natureza. As novas leis que estão sendo votadas em vários países, sobretudo EUA e Europa, e que regulam o uso da Internet e criminalizam a partilha de informação, sob a justificação da “proteção” dos autores, vai em contra-mão com a história. Puxa a humanidade para trás.
O espírito da ciência e o socialismo
O que buscam os cientistas do CERN quando enviam os dados de seus experimentos para colegas do mundo inteiro? A resposta é simples: buscam críticas ao seu trabalho. Querem que outros cientistas encontrem os erros que eles não encontraram. Tal é o espírito da verdadeira ciência: a verdadeira ciência é movida por grandes paixões e hipótese visionárias, mas é rigidamente controlada pelo pensamento céptico. A ciência não busca respostas fáceis e fábulas reconfortantes. A ciência busca a verdade. Só a verdade lhe interessa, por dura, incómoda ou vulgar que seja.
O socialismo, ao libertar a sociedade das amarras da propriedade privada e do lucro, dará à ciência um impulso nunca visto. A ciência verdadeira, sinónimo de liberdade e humildade, será ensinada nas escolas, na Internet, nos programas de TV (ou outras tecnologias que venham a ser criadas) de maneira profunda e interessante, e substituirá as actividades fúteis e alienantes que preenchem hoje a infância das nossas crianças. A população será cientificamente culta. Dessa população culta e consciente, destacar-se-ão em número inacreditável para nossos padrões atuais, os novos génios do mundo comunista. As mais fantásticas obras da ficção científica serão realidade no nosso quotidiano, e o cidadão comum terá acesso não apenas ao fruto da ciência, ou seja, à tecnologia, como é hoje, mas conhecerá o próprio processo científico. Será mais consciente de si mesmo e do mundo a seu redor. A simples curiosidade, característica dos mamíferos superiores (e não devemos esquecer nunca que somos apenas uma entre as várias espécies de mamíferos) trouxe o homem até aqui. No futuro, conduzirá a humanidade muito além, até fronteiras jamais sonhadas.
Henrique Canary (do site do PSTU/Brasil)
http://www.pstu.org.br/internacional_materia.asp?id=14390&ida=35