Que este governo nos está a dar cabo da saúde já sabíamos. Mas as notícias do início deste mês revelam a velocidade dramática a que o querem fazer. Foram anunciados encerramentos de 26 serviços, em muitas unidades hospitalares, sobretudo no norte e interior do país, com impacto em muitas especialidades, mas com destaque para os internamentos de cirurgia, quase todos os internamentos de neurologia, blocos de partos/maternidades, psiquiatria e pediatria.
Acentuam-se, assim, as limitações ao acesso da população aos serviços de saúde, já muito afetado pelos cortes nos transportes de doentes, pelo aumento das taxas moderadoras e pela perda brutal de rendimentos, que condenam muitos milhares de portugueses a escolher que medicamentos comprar e a que consultas ir. Assim, simultaneamente, centralizam-se os serviços nos grandes centros urbanos e dificulta-se a deslocação para os mesmos. Após pagar do seu bolso o transporte, os utentes ainda terão de se confrontar com o pagamento de taxas “moderadoras”, que são ainda mais caras nos hospitais centrais, supostamente porque as pessoas deveriam recorrer a outros serviços previamente. Mas a quais, se para além de encerrarem os serviços dos hospitais periféricos, também estão a encerrar serviços de saúde primários? Os efeitos já se fazem notar, com a diminuição do número de idas à urgência e um aumento das faltas nas consultas externas.
Por outro lado, continuam a abrir unidades privadas de saúde, muitas vezes na mesma semana em que encerram serviços públicos, como aconteceu em Coimbra, aquando do recente encerramento das urgências noturnas do Hospital dos Covões. Os privados conseguem hoje, tal é o preço das taxas aplicadas no público, “competir” com este sector, em termos de preços: num hospital central, um utente pode pagar entre 25 e 50€ de taxa moderadora por um episódio de urgência, quando vários hospitais privados têm apresentado promoções de 30€, tudo incluído. O chamariz servirá para ajudar a destruir o SNS. Depois desta tarefa concluída, poderão subir os preços sem controlo, pois já não teremos serviços públicos de qualidade a que recorrer.
Estes grupos privados é que são os verdadeiros “subsídio-dependentes”, que só subsistem por parasitar o dinheiro dos contribuintes, com protocolos que estabelecem com o estado, para prestar serviços que o SNS poderia e deveria garantir. Os mesmos grupos Mello e Espírito Santo, que são donos dos maiores hospitais privados do país e que detêm também os principais seguros de saúde, beneficiaram ainda das famigeradas Parcerias Público-Privadas, que nos farão pagar várias dezenas de milhar de milhão de euros, durante décadas. Apesar de trágico, não é de estranhar tanto compadrio, já que convém lembrar que o ministro Paulo Macedo foi administrador da Médis (2001-2004), a principal companhia de seguros de saúde privados, e do Millenium BCP (1993-1998 e 2007-2008).
Profissionais de saúde afetados
Se para os utentes estas medidas terão um efeito avassalador, também os profissionais de saúde estão a ser muito afetados. Desde que o governo Sócrates implementou a Lei 12-A de 2007, com o objetivo de destruir a Função Pública, como até então a conhecíamos, que as sucessivas mudanças legislativas sempre foram no sentido de precarizar os vínculos laborais, dificultar a contratação coletiva, aniquilar as carreiras e diminuir as remunerações. Já com o governo de Passos e Portas, os ataques continuaram: os cortes nos subsídios de férias e 13º mês, as contribuições extraordinárias e o não pagamento das horas extraordinárias afetam os que ainda tem trabalho. O congelamento das contratações e os encerramentos de serviços, fazem crescer ainda mais o desemprego.
No caso dos médicos, o governo prepara-se para um ataque amplo, que desestruturará completamente uma profissão onde é exigida uma elevada diferenciação técnico-científica, da qual depende a garantia dos cuidados prestados.
A formação médica portuguesa tem qualidades reconhecidas internacionalmente, em grande medida porque é garantida pelo SNS. Esta formação é bastante extensa: 6 anos na faculdade de medicina, 1 ano de internato geral (designado de ano-comum) e 4 a 6 anos de internato da especialidade. Até aqui, todos os médicos que saíam das faculdades prestavam uma prova de seriação de acesso às vagas de formação da especialidade, onde era garantida uma vaga para cada candidato (cerca de metade na especialidade de medicina geral e familiar, a outra metade dividida entre as restantes especialidades).
Uma vez que se tratam de funções de grande responsabilidade, só era concedida a autonomia para a prática clínica após o médico interno concluir com aproveitamento o ano-comum e o primeiro ano da especialidade. Agora, o governo prepara-se para, ao mesmo tempo, acabar com a garantia de vagas na especialidade, extinguir o ano-comum e reconhecer a autonomia dos jovens médicos, logo que acabam os 6 anos do curso. Esta manobra visa o surgimento de um conjunto de médicos indiferenciados, sem acesso à formação específica, mas já com capacidade legal para exercer.
Há já vários anos que não existe, para médicos, como para outros funcionários públicos, progressão nas carreiras. Depois da referida lei de 2007, os médicos, através das organizações sindicais, ainda começaram uma negociação para novas carreiras, mas esta até hoje está parada. Também já há vários anos que, nos hospitais geridos em modelo empresarial, reinam os contratos individuais de trabalho, cada um diferente dos restantes. Para os novos médicos especialistas, as remunerações propostas são já inferiores às que (por enquanto) auferiam enquanto internos (cerca de 1200€ líquidos, num horário de 40 horas semanais).
O concurso agora lançado pelo ministério, para contratar empresas privadas que contratarão médicos “à hora” e ao mais baixo preço possível é a continuação desta política. Serão os futuros médicos indiferenciados os “tarefeiros” que serão forçados a aceitar condições cada vez mais precárias que, ainda assim, não impedirão que também neste sector comece a existir desemprego.
Face à inexistência de perspetivas, também os médicos fazem parte do cada vez maior número de portugueses que emigra, ou planeia fazê-lo, o que significa para o país a perda de um recurso vital, e que exigiu um importante investimento, assim desperdiçado.
Por todas estas razões, foi convocada uma greve nos próximos dias 11 e 12 de Julho, pelas organizações sindicais médicas – FNAM e SIM. É muito importante que estes dias, se transformem em dias de defesa do SNS, juntando outros sectores profissionais e sobretudo utentes. O Serviço Nacional de Saúde é uma das maiores conquistas do 25 de Abril e um património de todos nós. Temos de o defender.
Hugo Bastos, médico