Francisco Louçã e o rumo estratégico da esquerda: por um Congresso das Esquerdas Antitroika

“Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura” diz o povo e com razão. E o ditado também se aplica em política. A prova mais recente foi a mudança de 180º na proposta política de Francisco Louçã, expressa num longo texto apresentado pelo máximo dirigente bloquista na Mesa Nacional do Bloco, que traça um “novo rumo” estratégico, a ser aprovado na próxima Convenção do partido em Novembro próximo.

Qual a novidade? Louçã, que durante anos advogou alianças com o PS, como vimos na Câmara de Lisboa, onde se uniu a António Costa, ou nas passadas Presidenciais, em que esteve com Alegre, ao lado de Sócrates, vem agora dizer que um “Governo de Esquerda” em Portugal passa pela unidade entre Bloco e PCP.

Para maior espanto, Louçã defende agora uma suspensão do pagamento da dívida pública (Louçã usa a expressão “moratória”, que significa o mesmo…). Até agora só o MAS defendia a suspensão. E nos últimos meses Louçã posicionou-se publicamente, em diversos textos irascíveis, em parte dirigidos contra nós (1) contra esta opção que agora advoga. De resto foi por defender essas posições – a unidade entre BE e PCP e a suspensão do pagamento da dívida – que o MAS foi sendo afastado da vida interna do BE e convidado a sair. Agora Louçã dá o dito por não dito, demonstrando que esteve errado e o MAS (Ruptura/FER antes) certo, todos estes anos.

O que defende Louçã e o que pratica o Bloco?

Esta novidade não cai do céu aos trambolhões… de onde vem esta “nova” ideia de Louçã? Para o entender temos de remontar às origens do Bloco.

Como se sabe o Bloco foi formado pela união de quatro correntes políticas: o PSR, de Francisco Louçã, a UDP de Luís Fazenda, a Política XXI, cujo rosto era o recém-falecido Miguel Portas, e o Ruptura/FER, que recentemente abandonou o Bloco dando origem ao MAS. As três primeiras correntes cedo se coligaram e ocuparam a direção do partido. Já o Ruptura/FER, junto com outros bloquistas, desde a V Convenção do Bloco, em 2007, propôs uma alternativa estratégica, baseada na unidade das esquerdas. A alternativa à rotatividade ao centro, a luta contra a política do PS, PSD e CDS e a sua substituição por um Governo de Esquerda, teria de se basear numa unidade BE-PCP que constituísse uma alternativa credível, que pudesse atrair socialistas de esquerda, ativistas sindicais e dos novos movimentos sociais, assim como diversos independentes. Esta orientação reuniu sistematicamente cerca de 15% dos votos em Convenção, apesar dos inúmeros filtros antidemocráticos. Na Juventude, esta orientação obteve, durante seis anos, o apoio de mais de um terço dos jovens, contra as outras três correntes coligadas.

Foi por propor esta alternativa que o Ruptura/FER foi afastado do BE. Por isso foi-nos recusada a palavra em comícios e debates ou lugares elegíveis em listas eleitorais. Mais tarde uma chuva de acusações infundadas (ainda hoje por provar) e o afastamento dos fóruns de decisão do Bloco completaram o afastamento da nossa corrente. Por quê? Por defender a unidade entre o Bloco, o PCP e socialistas independentes que não se reviam nas políticas de austeridade, as antigas de José Sócrates e as atuais decorrentes do Memorando de Entendimento subscrito pelo PS com a troika.

Os bloquistas lembrar-se-ão: Francisco Louçã e toda a direção do BE diziam que o Ruptura/FER queria subordinar o BE ao PCP (2), queria que o BE apoiasse a China e a Coreia do Norte, queria que o BE integrasse a CDU… Ou seja, nunca nos responderam com argumentos mas com falácias, calúnias e sectarismo. Hoje Francisco Louçã explica por que… porque tínhamos razão!

Durante estes anos o Bloco seguiu a política que Louçã hoje renega, mas que sempre apadrinhou. Alianças ao centro: Rui Tavares, Fernando Nobre (mandatário das europeias de 2009), António Barreto (mandatário das europeias de 2004), José Sá Fernandes, são exemplos menores. António Costa, Manuel Alegre e José Sócrates são os exemplos maiores da política de alianças de Louçã, que levou o Bloco à perda de metade do eleitorado e a uma crise profunda.

A lição grega

Claro que há pedras de tão duras que são não se furam com qualquer água. Se é verdade que o MAS deu o seu contributo, a verdade é que foi o tsunami grego que fez Louçã dar razão ao MAS.

O previsível – e depois confirmado – resultado do Syriza, congénere grego do Bloco de Esquerda, que obteve 17% nas eleições gregas, foi o que fez Louçã mudar radicalmente. “A Grécia tem sido o futuro de Portugal”, disse Louçã ao Diário de Notícias. Daí é que Louçã conclui o óbvio: aqueles que aplicam a austeridade são brutalmente penalizados – aconteceu ao PS grego, o PASOK, e acontecerá ao PS e PSD portugueses. Demonstra ainda que aqueles que se insurgem contra a troika e propõem alternativas de governo contra a austeridade saem a ganhar. Foi o que aconteceu com o Syriza, que baseou a sua candidatura em duas propostas: um governo da esquerda antitroika e a suspensão, auditoria e renegociação do pagamento da dívida… Nada mais, nada menos do que aquilo a que Louçã fugiu como diabo da cruz e que agora se vê obrigado a aceitar.

É verdade que mantemos diferenças com o Bloco e o Syriza quanto ao que fazer após a suspensão do pagamento e auditoria da divida, mas a verdade é que a questão que fraturou o Bloco foi continuar ou parar de pagar, ainda que temporariamente. Nessa questão o Syriza e agora Louçã dão razão ao MAS: sem suspender o pagamento não há resposta à dívida.

Assim, o MAS não tem, por si só, o mérito de ter mudado a mente de Louçã. Tem apenas o mérito de ter traçado a política certa com anos de antecedência, de ter dado oportunidade ao BE de se fortalecer e se preparar para combater com tempo a ditadura dos credores, para evitar as derrotas das últimas legislativas e presidenciais. Todos sabemos como nos agradeceram por isso, pondo-nos praticamente fora do partido…

As hesitações de Louçã

“Nem tudo o que reluz é ouro” é outra grande verdade popular. E a nova política de Louçã ainda tem pechas a ultrapassar – dizemos isto com a humildade de quem defende a unidade da esquerda há mais de meia década…

Primeiro: dar o dito por não dito. Faz falta humildade e sentido de autocrítica na proposta de Louçã. O coordenador bloquista diz que o “centro é um buraco negro”. O que não diz é que conduziu o Bloco para esse buraco que quase o sugou… Não diz tão pouco que esteve enganado todos estes anos quando defendeu o oposto ao que defende hoje e repudiou a sua proposta atual, hostilizando quem a propunha. (3)

Não é um pedido de desculpas que queremos, não era o MAS que beneficiaria da assunção dos erros, mas o BE e a esquerda em geral. São os dirigentes infalíveis, que “nunca erram” e que, quando erram, revêm a história para apagar os seus erros, que descredibilizam a esquerda e que fazem lembrar regimes onde os chefes eram omniscientes e onde aos opositores se respondia não com argumentos mas com violência. Além disso é com o erro que se aprende: assumir os erros e as lições que deles decorrem forma as novas gerações e desenvolve o espírito crítico e autocrítico de que a esquerda tanto precisa.

Segunda e mais grave: a unidade tem de ter um programa. A de Louçã tem programa, mas ainda não é o necessário, não renega a dívida e mantém-se refém da ditadura da dívida e da moeda única. Louçã ainda só nos diz que o governo de esquerda de Bloco e PCP deve “anular toda a dívida ilegítima”. Concordamos. Porém que dívida é ilegítima? Os juros? Os juros agiotas? Aquela que advém de práticas criminosas? A dívida contraída ao BCE, FEEF e FMI, aos bancos privados ou a ambos? Ou toda dívida que tenha servido para alimentar um modelo económico baseado na finança, na especulação e no betão, que destruiu a produção e nos trouxe até aqui?

Louçã diz-nos que “a política deve ser sempre clara”, mas a sua não é. Não sabemos se, quanto à dívida, a questão central da política económica hoje, Louçã defende o programa atual do BE – “renegociar juros e prazos” para poder pagar a dívida – ou suspender, auditar, anular tudo menos o que é devido aos contribuintes e mobilizar esses recursos para investir no emprego? Neste dilema reside o âmago do governo de esquerda… Aqui se decide se o governo das esquerdas visa uma rutura sistémica ou se visa amenizar os males do capitalismo “austeritário”. E é precisamente aqui que Louçã é menos claro. Ainda assim nada que não possa ser superado se o coordenador do Bloco e o seu partido resolverem a última contradição do rumo estratégico de Louçã: passar das ideias à prática.

Ainda no âmbito do programa. Louçã, ao imitar o Syriza, copia também as suas insuficiências. O Syriza vive ainda preso à ilusão da benevolência da moeda única. O seu líder, Alexis Tsipras, diz que governar à esquerda, nacionalizar os recursos estratégicos do país, renegar os tratados de Lisboa e Maastricht, expulsar a troika, suspender o pagamento da dívida pública e anular parte dela não implica a saída do euro. Há aqui muita ingenuidade.

A história nos dirá se, caso consiga formar um governo de esquerda – e esperamos que o faça – o Syriza levará o seu programa até ao fim, mesmo que acarrete romper com a moeda única como cremos que acarreta. A questão aqui não é agitar permanentemente a saída do euro como o centro da política à esquerda, mas, sim, se confrontado com o dilema de cumprir o seu programa ou manter-se no euro (dilema inevitável, insistimos…), o Syriza escolherá a coerência ou o euro.

Do Syriza não sabemos a resposta, mas de Louçã já sabemos. Tsipras diz querer manter a Grécia no euro, mas não faz a apologia da moeda única. Louçã faz. Louçã confunde a moeda que faz da Europa o quintal da Alemanha com o europeísmo de esquerda. Louçã escreveu um livro e convidou para o apresentar um dos pilares do regime, o espúrio Marcelo Rebelo de Sousa, para dizer a todo o mundo que a política do BE inclui a defesa do euro. Entre o seu programa e o euro Louçã já nos disse que prefere… o euro. E isso anula, não a dívida, mas toda a “coerência”, “clareza” e “ousadia” da nova estratégia de Louçã.

Confundir causa com consequência é outras das eternas falhas de Louçã. O dirigente bloquista diz que, para haver possibilidades de um projeto de governo de esquerda, baseado na unidade entre BE e PCP é “preciso que o Bloco e o PCP estejam a subir e que isso se reflita claramente nas sondagens. É ainda condição decisiva que haja vozes consistentes e credíveis dentro do PS a rejeitarem o caminho da austeridade e da troika”.

Para Louçã não é a proposta correta que faz a esquerda crescer, mas sim o crescimento da esquerda que trará as propostas corretas. Porém, assim cria-se uma pescadinha-de-rabo-na-boca: como irão BE e PCP crescer se continuarem divididos? Como ganharão a confiança da maior parte da população, que quer soluções de governo, que só se podem conseguir com base numa política unitária, até, pelo menos o BE, defender um projeto unitário? Mesmo as vozes dentro do PS que “rejeitem o caminho da austeridade e da troika” não rompem com o centrão se não houver um projeto credível, capaz de governar, que se baseie nesse programa?

Louçã aprendeu muito com as eleições gregas mas não o principal. O Syriza cresceu por propor um governo de esquerda – e o KKE tende a perder por o rejeitar, por esperar por condições e parceiros ideais que nunca virão. E foi o crescimento do Syriza que tornou a proposta de um governo de esquerda palpável. Se o Syriza seguisse a lógica de Louçã, se esperasse por ter 17% para propor um governo de esquerda… nunca teria tido 17%. E a troika voltaria a governar através do centrão.

Passar à prática

Por fim: “de boas intenções está o inferno cheio”. O inferno e a história da esquerda. Por isso, Marx dizia que “a prática é o critério da verdade”. Como se concretizaria a nova política de Louçã, quais os passos rumo a uma Frente de Esquerda, a um Governo de Esquerda? Escrever e proclamar não chega. Aqui há que recuperar uma proposta que o MAS fez na última Convenção do Bloco: um Congresso das Esquerdas. Convocar um espaço democrático para as esquerdas se ouvirem, para trabalharem e dialogarem em prol de soluções. Um Congresso que apelasse a toda a esquerda que não se revê no memorando da troika e nas políticas do governo para que se reunisse, para preparar as lutas de hoje e as soluções de amanhã.

Aí, mais do que em reuniões de cúpulas, como as ensaiadas com o PCP, se poderia dar um sinal ao país e preparar uma governação alternativa. Aí todas as divergências existentes à esquerda, sobre a dívida, sobre o euro, sobre o PS, sobre as eleições e sobre as lutas, podiam ser dirimidas e democraticamente resolvidas. Seria algo histórico, um exemplo para a Europa e uma esperança para os trabalhadores e a juventude. O único passo coerente a dar pelo Bloco e por Louçã, na sequência deste novo rumo estratégico, é convocar esse congresso, preparar uma Frente de Esquerda, para derrotar a troika e o seu governo, de forma a os substituir por uma alternativa socialista contra a “dividadura”. Se o BE não empreender este caminho todo o “novo” rumo estratégico que Louçã propõe ao BE não passará de … nova retórica. Esperemos que nãom mas a ver vamos.

O CE do MAS (Movimento de Alternativa Socialista)

Lisboa, 18/05/2012

(1)Aqui http://www.esquerda.net/artigo/esquerda-contra-d%C3%ADvidadura e aqui http://www.esquerda.net/opiniao/gr%C3%A9cia-e-portugal-os-povos-contra-o-terrorismo-financeiro os textos de Francisco Louçã; aqui http://mas.org.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=288;o-bloco-preso-a-ditadura-da-divida-resposta-a-francisco-louca&catid=86;nacional&Itemid=537, aqui http://mas.org.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=306;vitor-bento-merkel-e-lapavitzas-de-que-lado-esta-francisco-louca&catid=86;nacional&Itemid=537 e aquihttp://mas.org.pt/index.phpoption=com_content&view=article&id=317:francisco-louca-e-a-divida-quando-as-contradicoes-sao-autojustificacoes&catid=86:nacional&Itemid=537 , as respostas do MAS.

(2) APSR- XVI Congresso, Projecto de Teses Políticas, Dezembro de 2008, pág.7: “Ao recusar uma orientação política que favoreça aproximações ou a participação num governo PS, a APSR rejeita também a transformação do Bloco num clone do PCP (…)”. Esta orientação fixada por Louçã no BE significava precisamente o contrário: aproximações ao PS – apoio a Alegre enquanto candidato presidencial do PS e de Sócrates – e rejeição de unidade com o PCP, para uma aliança e um governo à esquerda conforme nós defendíamos.

(3) Caderno de Debates 2, VI Convenção Nacional do Bloco de Esquerda, 07/08 de Fevereiro, artigo de Jorge Costa, pág. 60: “Valorizar a convergência das esquerdas e portanto recusar o senso comum jornalístico que tudo reduz a arranjos de aparelhos ou a exercícios de aritmética eleitoral. No debate desta convenção, valorizar a convergência das esquerdas é recusar a facilidade da proclamação fantasmagórica de um governo alternativo (v. Moção C, texto de João Delgado em 6cn.bloco.org).”

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