Portugal teve ontem a sua segunda greve geral num período de apenas quatro meses. Razões para isso não faltam: aumento recorde do desemprego, cortes de salário, cortes na saúde e educação, subida de impostos e tarifas, aumento da pobreza, tudo isso para cumprir a meta de reduzir o défice e pagar a dívida com a banca. Foi uma greve forte em alguns setores, como o dos transportes, mas não parou o país. Mais precisamente, foi uma greve que ficou aquém do que seria necessário para enfrentar com força a violência dos ataques que o governo da direita e a troika têm desferido sobre a classe trabalhadora e a juventude.
As razões da insuficiente adesão à greve merecem uma reflexão por parte dos ativistas. Entre elas devem estar, certamente, o temor de perder o emprego, amplificado pelo elevado número de vínculos laborais precários; ou até a falta de disponibilidade em perder um dia de salário. Deve restar, ainda, alguma ilusão na cantilena do governo sobre ser este o único caminho possível para acabar com a crise. Mas há, com toda a certeza, a sensação para a imensa maioria de que não há alternativa. Ainda não há confiança na luta suficiente para superar o medo, ainda são poucos os que acreditam que seja possível mudar.
A responsabilidade por essa falta de confiança não é dos trabalhadores, mas das suas direções. A UGT acabou de cometer uma grande traição ao assinar, com o governo e os patrões, um acordo que facilita os despedimentos, aumenta a precariedade, rouba dias de férias, acaba com o pagamento de horas extraordinárias e cria um banco de horas de 150 horas anuais que prejudica a vida privada e familiar dos trabalhadores. A CGTP, pelo contrário, recusou-se a assinar esse acordo e convocou uma greve geral. Mas não é consequente com essa política ao não mobilizar e organizar os trabalhadores pela base, nos seus locais de trabalho; ao não organizar plenários para auscultar a base; ao não promover métodos democráticos para que esta possa participar das decisões; ao ignorar os trabalhadores precários e desestimular ou mesmo dificultar a sua organização.
A imensa desconfiança dos trabalhadores e da juventude nas direções sindicais – e nos partidos políticos – tem uma base real. Foi por fora do controlo dessas direções que aconteceu a maior manifestação desde o 25 de Abril, a da Geração à Rasca, a versão portuguesa de um fenómeno mundial. No dia 12 de março de 2011, faz pouco mais de um ano, centenas de milhares de pessoas encheram as ruas de Lisboa, Porto, Coimbra, Braga, Faro e muitas outras cidades do país para agarrar o destino com as próprias mãos. Deixaram claro que estavam fartas de ser enganadas, que não se reviam na política tradicional, que queriam outra coisa, uma vida melhor, uma “democracia verdadeira”.
A Geração à Rasca morreu? Não, ela – ou melhor, uma pequena parte dela – esteve acampada no Rossio no Verão passado; depois organizou uma manifestação a 15 de outubro que se transformou na primeira resposta ao pacote do governo que eliminou os subsídios de férias e de Natal da Função Pública, aumentou o IVA e cortou na saúde e educação. Foi dessa manifestação que surgiu a Plataforma 15 de Outubro (15O), um espaço democrático que tenta dar continuidade à luta da Geração à Rasca. Ontem, no dia da greve geral, assim como acontecera na greve geral de 24 de novembro passado, o 15O realizou uma manifestação a partir do Rossio. A CGTP realizou outra, iniciada pouco antes, partindo do mesmo local e em direção à mesma Assembleia da República.
Por que não houve apenas uma manifestação? A resposta a essa pergunta está relacionada com a primeira: por que, com razões tão fortes, houve uma greve a meio gás? A resposta à primeira pergunta é que a CGTP não tem uma política de unidade, mas de submissão. Ignorou a gigantesca manif da Geração à Rasca e, muito menos, teve uma política para estimular a sua continuidade. Ignorou o 15O, e muito menos teve uma política para incorporar os seus ativistas às suas atividades. Tanto na greve de 24 de novembro do ano passado quanto na de ontem coube ao 15O, uma estrutura incomparavelmente menor que a CGTP, a iniciativa de propor encontros, que se revelaram infrutíferos, para organizar manifestações comuns.
Mas tem mais: essas manifestações unitárias só o seriam realmente se, em vez da exclusividade dos discursos dos dirigentes da CGTP, também tivessem lugar intervenções de outros setores; se, em vez de comícios, houvesse assembleias democráticas; se a participação sem constrangimentos fosse assegurada a todas as organizações presentes na manif, e não só às controladas pela CGTP. Não foi isso, mais uma vez, que se viu ontem, em frente ao Palácio de São Bento. A coluna dos Precários Inflexíveis, que optou por participar da manif da CGTP em detrimento da manif do 15O, acabou por ser agredida pelo serviço de segurança da CGTP que queria impedi-la de carregar as suas próprias faixas.
O 15O – ou melhor, o fenómeno que essa plataforma expressa, independente do nome que adote – é justamente a negação desse tipo de método antidemocrático; expressa o inconformismo de uma “geração à rasca” que não confia no regime e na política parlamentar; que luta como pode contra esse governo e as suas medidas de austeridade; que procura construir algo diferente e sem os vícios do passado. Participar dessa tentativa e buscar o seu êxito é fundamental para que possamos sair do impasse em que nos encontramos, para trazer mais gente para a luta, para gerar confiança e uma nova alternativa para lutar.
Esse artigo não poderia terminar sem denunciar a violenta carga policial sobre os manifestantes da manif dirigida pelo 15O, que deixou dois fotojornalistas feridos, José Sena Goulão, da Lusa, e Patrícia Melo, da France Press, numa demonstração de como o governo de Passos Coelho reage à contestação social. Nossa solidariedade aos trabalhadores covardemente agredidos e repúdio à repressão policial.