O governo da direita começou a desmascarar-se com o corte no subsídio de Natal dos assalariados, reformados e pensionistas. Por mais que tente, não consegue convencer nem os mais ingénuos de que este novo imposto é justo e equilibrado.
Se todos, como diz a ladainha do governo, devem dar o seu contributo, porque ficaram de fora os rendimentos de juros de aplicações de capitais e os dividendos de acções, assim como os lucros das empresas? Todo mundo percebe que serão poupados os grandes empresários e a banca, enquanto os trabalhadores serão penalizados mais uma vez.
Já se sabe que parte do valor arrecadado com esse imposto servirá para cobrir o buraco provocado pela redução da Taxa Social Única, já anunciada pelo governo, a taxa devida pelos empresários à Segurança Social por cada trabalhador de sua empresa. Mais uma vez, serão os trabalhadores a pagar pelos benefícios dados aos patrões.
Mesmo o discurso de que os mais pobres – aqueles que têm um salário igual ou inferior ao salário mínimo – serão poupados não convence. Não passa de demagogia barata, pois o corte no subsídio de Natal, aliado aos aumentos de impostos e tarifas e cortes de salário impostos pelos sucessivos PECs, reduz ainda mais o poder de compra da população e tem um impacto brutal na economia que acaba por prejudicar também os assalariados com menores rendimentos. Basta verificar dados recentes dando conta que o consumo das famílias caiu, em Junho passado, para o valor mínimo dos últimos 27 anos.
O próprio governo admite que a recessão vai aumentar este ano além do previsto (-2,3%), com o desemprego a atingir, em 2012, 13,2%.
Lixo é a resposta do mercado
Mas as medidas de austeridade da troika e o programa do governo, com o corte no subsídio de Natal, de nada serviram para acalmar os mercados. Dias depois de Passos Coelho tê-lo anunciado, a agência de notação Moody’s baixou a nota de Portugal em quatro níveis, colocando a dívida do país na categoria de “lixo”. Isso significa que esta agência considera que o país dificilmente pagará o que deve no prazo fixado, o que obriga o governo a pagar juros ainda mais altos para rolar a dívida. Conclusão: o plano de austeridade de Passos Coelho e da “troika” não serviu de nada, a não ser para nos deixar mais pobres e aprofundar a recessão em que se encontra o país.
E tem mais: a Moody’s disse também que aumentou o risco de um segundo pedido de “auxílio” financeiro ao FMI e à União Europeia por parte do Estado português, o que aponta para um novo plano de austeridade. Qualquer semelhança com o que está a acontecer com a Grécia não é mera coincidência. Tanto lá como cá, planos após planos (nós já vamos no quarto!), a dívida não pára de crescer, o desemprego a aumentar e as riquezas dos país a serem vendidas a preço de saldo.
Polémica na burguesia
A crise europeia agravou-se ainda mais nesta última semana com a entrada em cena de um peso-pesado da zona euro, a Itália. Os juros da dívida italiana atingiram o seu maior índice desde a entrada do país no euro, um sinal de que os mercados (isto é, os grandes capitalistas) consideram que a terceira economia da zona euro também pode ser atingida pela crise. A Itália tem uma dívida equivalente ao dobro das dívidas da Grécia, Irlanda e Portugal juntas, correspondente a 120% do seu PIB. Segundo os economistas, seria impossível resgatá-la, isto é, injectar dinheiro para que ela não entrasse em default (incumprimento), o que significa que, caso isso acontecesse, o euro estaria com os dias contados.
A crise económica iniciada em 2008 nos Estados Unidos evoluiu para uma crise da dívida na Europa e ameaça hoje a moeda única. A burguesia europeia está completamente em crise, sem saber o que fazer e a disparar para todos os lados. A chanceler alemã, Angela Merkel, preocupada com as próximas eleições e o descontentamento dos alemães em, supostamente, financiar a dívida de outros países europeus, defende que os credores (bancos, seguros e fundos de pensões) assumam parte do prejuízo, recomprando títulos da dívida grega que possuem e alargando o seu prazo de pagamento. O que significa, na prática, admitir que a dívida grega não pode ser paga e a sua reestruturação é a saída frente a um incumprimento inevitável. Contra esta solução já se pronunciou, entre outros, o Banco Central Europeu, classificando-a de incumprimento. A mesma opinião das agências de rating, que aproveitaram para aumentar os juros de vários países da zona euro, entre os quais Espanha e Itália.
Polémica na esquerda
Se não há consenso entre a burguesia europeia sobre a forma de enfrentar a crise, do lado da esquerda também não há. Há a “esquerda” que defende directamente os interesses da burguesia, como os governos social-democratas do Pasok, na Grécia, do PSOE, na Espanha ou até bem pouco tempo do PS, em Portugal. Esses governos ficaram completamente queimados diante da população justamente por impor os planos de austeridade exigidos pela UE e FMI. Um outro sector da esquerda denuncia e combate os planos de austeridade, mas se nega a defender a suspensão do pagamento da dívida, propondo a sua reestruturação e auditoria.
Apesar de analisar, correctamente, que o crescimento descomunal da dívida soberana portuguesa nos últimos anos tem origem na transferência de gigantescas massas de dinheiros públicos para salvar o sector financeiro durante a crise de 2008; na recessão provocada por essa medida; na especulação feita pelos mercados com os juros da dívida e na política económica implementada pelos governos PSD e PS nos últimos anos (como as Parcerias Público-Privadas (PPP), a compra dos submarinos ou a insistência em poupar o sistema financeiro de impostos), Bloco e PCP recusam-se a propor a suspensão do pagamento da dívida.
A suspensão do pagamento só é proposta por uma pequena parcela da esquerda europeia, entre a qual se encontra Éric Toussaint, presidente do Comité pela Anulação da Dívida do Terceiro Mundo(CADTM), membro da Attac e do Comité Internacional da Quarta Internacional. Durante a sua passagem por Portugal em Junho/Julho deste ano, para participar de um seminário sobre a dívida organizado pelo Centro de Estudos Sociais (CES), ele defendeu uma orientação clara com a exigência da suspensão ou o repúdio da dívida ilegítima de um país, e que o caso de Portugal e Grécia eram emblemáticos.
O Ruptura/FER defende a suspensão imediata do pagamento da dívida, para que os recursos destinados a alimentar a especulação financeira sejam redireccionados para investimentos no país, com o objectivo de retirá-lo da recessão em que se encontra. A suspensão seria seguida de uma auditoria para que se investigue com rigor a sua formação e legitimidade. Com este resultado, o povo português poderia decidir, através de um referendo, se devemos ou não pagar a parcela da dívida considerada ilegítima, isto é, utilizada para fins outros que não o interesse da maioria da população. Se o Estado português continuar a pagar a dívida não haverá recursos para investir em actividades produtivas, que gerem emprego e riquezas.
A suspensão significa um acto soberano de um Estado que se recusa a continuar a alimentar a especulação financeira, tão vantajosa para alguns, mas extremamente ruinosa para o povo português. Como admitiu o presidente do Fundo Europeu de Estabilização Financeira (FEEF), Klaus Regling, em entrevista a um jornal alemão no dia 17 de Julho: “Até hoje, só houve ganhos para os alemães, porque recebemos da Irlanda e de Portugal juros acima dos refinanciamentos que fizemos, e a diferença reverte a favor do orçamento alemão”.
Defesa do euro e da UE
O Bloco de Esquerda assume também um discurso em defesa da UE e do euro, ameaçados pela crise da dívida, propondo medidas como a criação de agências de rating europeias e a emissão de eurobonds pelo BCE. Em projecto de resolução apresentado ao parlamento, o Bloco avalia que “a crise da dívida soberana só se conseguirá resolver com mecanismos de política monetária capazes de criar crescimento económico e de responder às necessidades de financiamento dos países”. Esses mecanismos seriam a mutualização da dívida dos Estados Membros através da criação de um mecanismo de emissão da dívida pública europeia conjunta, os eurobonds; e a desvalorização cambial do euro face o dólar, “promovendo a competitividade das economias periféricas”.
Todas essas medidas não resolvem o problema da crise da dívida pela simples razão de que esta crise tem origem numa outra bem mais profunda, que é a crise do próprio capitalismo. Mesmo na hipótese de que o BCE adopte os eurobonds – uma proposta já defendida, por exemplo, por Jean-Claude Juncker, presidente do Eurogrupo – isso não significa que a crise será resolvida da única forma que deve interessar a esquerda, isto é, em benefício dos trabalhadores europeus. O mesmo se deve dizer da desvalorização do euro – proposta defendida, por exemplo, pelo presidente Cavaco Silva. Se é verdade que o euro valorizado é vantajoso para economias como a alemã – que não precisa de uma moeda fraca para garantir superavit da balança comercial – e a sua desvalorização poderá ser benéfica para países como Portugal, isso não significa que esta fórmula deva ser um dos centros das propostas da esquerda para a crise.
Não cabe à esquerda fazer propostas para retirar o capitalismo da crise ou para salvar o projecto da UE e criar a ilusão de que medidas de reforma do euro poderão beneficiar os trabalhadores. O projecto da UE realmente existente – um projecto imperialista e de exploração dos países periféricos da própria UE – está a desmoronar. O papel da esquerda é explicar porque isso acontece e propor uma alternativa que seja de ruptura com esse projecto e com o euro. Devemos propor a saída do euro, que deve ser acompanhada por uma série de medidas, como a suspensão do pagamento da dívida, a sua auditoria e renegociação; e nacionalização da banca e dos sectores estratégicos da economia.