Uma insurreição de hackers?

A revelação de centenas de milhares de documentos secretos norte-americanos suscitou, entre várias outras, uma objecção mais difundida: não será tudo isto um grande quixotismo, quando é sabido que não há guerra nem política sem segredos, e que uma fuga de informação, mesmo a maior da História universal, nunca irá mudar a natureza profunda da diplomacia? Pior ainda: não se arrisca Wikileaks a entravar negociações de paz, que só podem ser conduzidas a bom porto enquanto houver confiança e cumplicidade entre os interlocutores?

 

 

O argumento é errado: o secretismo da política, da diplomacia, da geoestratégia, do planeamento militar, não serve para fazer a paz, e sim, somente, para preparar a guerra ou para levá-la a cabo. Tão-pouco serve para preparar cimeiras, do G-8 ao G-20, de Copenhaga a Cancún, destinadas a libertar e desenvolver os países dependentes, a combater a pobreza, a criar emprego ou a defender o ambiente. Pelo contrário, o secretismo serve para que os poderosos escondam dos olhos do mundo as suas manigâncias e conspirações.

 

Em Portugal tivemos uma pequeníssima amostra do que isso significa com os despachos sobre voos da CIA, até agora mal esclarecidos. Bem mais interessante vai ser, se e quando Wikileaks divulgar documentos norte-americanos sobre a Cimeira da Lajes! Claro que aí não faltará algum detalhe picante, como o de Bush ter pensado, talvez, que estava em África, ou o de ter perguntado aos seus assessores quem era aquele palafreneiro tão solícito, a dar-se ares de familiaridade tratando-o por “George”, e de ter obtido dos mesmos assessores a resposta de que também ele, “George”, deveria tratar o homem com indulgência por ser o primeiro-ministro anfitrião. Enfim, gaffes como a de o embaixador norte-americano em Brasília escrever aos seus patrões de Washington que Lula da Silva “cacareja” sobre as realizações ambientalistas do Governo a que preside.

 

Mas gaffes destas, por muito desagradáveis, resolvem-se facilmente com uma ou outra transferência de embaixadores a quem falta tento na língua e na pena. Os donos do mundo estão habituados a dar palmadas amistosas nas mesmas costas que apunhalam. Eles dormem melhor para o lado do cinismo do que para qualquer outro. O grande problema estará, ainda no exemplo da Cimeira das Lajes, quando forem expostos à luz do dia os documentos comprovativos de que os três protagonistas, mais o inevitável Wally da fotografia, tinham sobre a inexistência das armas de destruição massiva no Iraque a mesma plena consciência que já vem transparecendo no debate britânico dos últimos anos e que o próprio Tony Blair já implicitamente admitiu.

 

De qualquer modo, a publicação de documentos do Pentágono tem mostrado o rosto autêntico do imperialismo norte-americano na intimidade – em cuecas, em ceroulas, em barrete de dormir ou com as olheiras do despertar. E a imagem que ele dá de si é a de um gigante envelhecido e decadente, mas ainda assim perigoso e sanguinário. Os documentos que revelaram a existência de esquadrões da morte organizados pela CIA com a cobertura do Pentágono, assassinando civis afegãos pela calada da noite, não podiam ser mais eloquentes.

Os apelos, vindos de tão alto como um conselheiro do Governo canadiano, para que Julian Assange seja liquidado pela CIA, mostram bem como aqui se tocou num dos nervos essenciais do sistema. O segredo é a alma do sistema. Quem lhe toca, mesmo que seja apenas movido por um salutar desejo de transparência, condena-se a enfrentar imediatamente um vendaval de reacções que pode parecer-lhe desproporcionado. Inversamente, quem luta por uma transformação revolucionária da sociedade tem de apontar, obrigatoriamente, a esse nervo.

 

É fácil confundir uns e outros: os detractores da plataforma digital de Assange crismaram-na por isso de “Bolchewikileaks”. E a confusão não é mera maledicência: uma das primeiras medidas dos bolcheviques, ao tomarem o poder, foi publicarem todos os tratados secretos em que o governo czarista se tinha envolvido. O movimento que agora se desencadeou não é uma moda passageira e a defesa desse movimento não é um simples dever democrático – embora se deva aplaudir quem, como o BE, albergou a informação de Wikileaks num site-espelho. O que está em causa é muito mais do que isso. Esta não é uma insurreição pós-moderna de hackers: é uma insurreição nossa – contra as arcas encoiradas dum sistema que tem muito para esconder e que só sobrevive escondendo os seus crimes.

António Louçã

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