A 15 de Setembro de 1979, o então ministro da Saúde, António Arnault, assinava o decreto-lei nº 56/79 que dava vida ao Serviço Nacional de Saúde (SNS). Apesar de ter surgido cinco anos após a Revolução de Abril, foi esta que lhe deu origem e forçou o então governo PS a criá-lo. Foi ainda no calor da revolução que os redactores da Constituição de 1976 escreveram o artigo 64 que previa um “serviço nacional de saúde universal, geral e gratuito”.
No entanto, o SNS vinha em contracorrente com a situação politica mundial, marcada pelo início da implementação da ideologia neoliberal “mais privado, menos estado”, ou seja, transformar os serviços públicos em fonte de lucro para os grandes grupos financeiros, aumentado o nível de exploração dos trabalhadores e os custos para os utentes.Já nos anos de governação de Cavaco de Silva o ambiente político em Portugal era outro, profundamente marcado tanto pelas derrotas nacionais dos trabalhadores, quanto pela contra-ofensiva ideológica do imperialismo, que se aproveitava da queda do regime burocrático soviético para propagar o “fim da história”. Assim, iniciaram-se os ataques ao SNS.
O início da privatização
Em 1989 é feita a 2ª revisão constitucional, e o artigo 64º foi alterado para “universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito”, o que permitia cobrar pelos serviços. Esta mudança permitiu que Cavaco lançasse a Lei de Bases da Saúde que instituía as taxas moderadoras e abria de par em par as portas do SNS aos privados, dizendo que o “Estado apoia o desenvolvimento do sector privado”, apoio esse que se traduzia “na facilitação da mobilidade de profissionais de saúde que deseje trabalhar no sector privado, na criação de incentivos à criação de unidades privadas” e também no estabelecimento de convenções com privados (até então inexistentes).
Nas últimas duas décadas o sector privado foi florescendo muito à custa das convenções, de tal modo que o próprio Observatório Português de Saúde, ligado ao Ministério da Saúde, disse no seu relatório de Primavera de 2008 que “o sistema privado de saúde em Portugal continua, quase na sua totalidade, apenas a ser viável se financiado pelo Estado” e que, em consequência disso, o Estado acaba por “não investir no sector público”. É fácil de perceber que, se o Estado investisse nos seus próprios meios técnicos em vez de promover a utilização dos meios privados, ajudando assim aos lucros destes, já há muito que todas as tomografias (TACs) e afins seriam feitas em instituições públicas, não havendo espaço “no mercado” para os privados.
Os Hospitais SA
Mas seríamos ingénuos se pensássemos que os grandes grupos financeiros ficariam satisfeitos se as coisas ficassem por aqui. A tendência mundial, já na década de 90, era de diminuição ao máximo do papel do Estado nos serviços públicos, nomeadamente na saúde. Para isso, era também necessário que a gestão dos hospitais também estivesse nas mãos dos grandes grupos financeiros. Assim, em 1995, Cavaco assinou o contrato que entregava a gestão do Hospital Amadora-Sintra à sociedade José de Mello, através do novo modelo de gestão hospitalar, os Hospitais SA.
Mas o clima social começava a mudar, e a contestação à gestão privada dos hospitais públicos foi tanta que, durante quase quinze anos, a gestão privada de hospitais foi posta de parte. Quando terminou o contrato com os Mello, em 2008, o Amadora-Sintra passou à gestão pública.
PPPs para lucrar com a saúde
Mas as conquistas sociais sempre podem ser alvos de novos ataques, especialmente quando o ataque é global como no caso dos serviços públicos. Um dos modelos criados para esse ataque foi a Parceria Público-Privada, ou PPP. Como funciona esta parceria? Fácil: as despesas são públicas, do Estado, mas os lucros são dos privados. Criadas em 1992 pelo governo conservador do Reino Unido, entraram em grande expansão nos últimos dez anos. Depois do estalar da actual crise económica, a Comissão Europeia chegou a lançar um comunicado para estimular a criação de PPPs como uma saída para a crise (dar dinheiro público a grandes grupos financeiros para que estas façam obras que o Estado sozinho poderia fazer).
Dado que a adesão à União Europeia praticamente dizimou o sector industrial em Portugal, as PPPs tornaram-se extremamente apetecíveis para a burguesia nacional. Assim, em 2002, é promulgada a lei que viabiliza as PPP em saúde em Portugal. Já em 2008/2009, dois hospitais (Cascais e Braga) estavam nas mãos de privados, estando outras oito PPPs em concursos.
O ataque ao SNS já está a ser feito pelo PS
Os Orçamentos de Estado do governo PS/Sócrates para a saúde são cada vez mais apertados. Em 2010, as transferências do orçamento para o SNS foram, em termos reais (tendo em conta a inflação), inferiores às de 2005 em 216 milhões, e as dívidas dos hospitais, das quais tanto se fala, devem-se simplesmente aos menores orçamentos disponibilizados para os mesmos. Só nos últimos três anos houve cortes nas despesas com pessoal a rondar os 8%, enquanto o recurso a serviços privados (por exemplo, a empresas de médicos tarefeiros) custou neste período mais 133 milhões. Ao mesmo tempo, houve os fechos de urgências e maternidades públicas, o que provocou a revolta das populações afectadas.
Como seria de esperar a crise veio agravar ainda mais a situação do SNS. O défice e a divida pública aumentaram exponencialmente com as medidas de salvamento da banca no ano passado. Este ano, o “PEC-Saúde” do PS apresentou a factura aos trabalhadores da saúde e ao conjunto da população: diminuição em 5% nas horas extraordinárias dos trabalhadores da saúde; contratação de pessoal pelos hospitais EPE (Entidades Públicas Empresariais) com dívidas (ou seja, todos) sujeita à aprovação pelo ministério; e cortes na comparticipação de medicamentos.
Mas a crise não afectou os privados, pelo contrário, só no último ano o seu volume de negócios aumentou cerca de 100 milhões. Os lucros dos maiores grupos privados de saúde (BES, Mello e CGD) ascenderam a cerca de 635 milhões, dos quais a maior parte vem directamente dos cofres do Estado através das convenções.
Pedro Passos Coelho anunciou a propostas de revisão constitucional do PSD, que incluem mais uma alteração ao artigo 64, substituindo a já nefasta formulação do SNS “tendencialmente gratuito” por uma que, sem qualquer prurido, transforma a saúde num negócio privado: um “serviço nacional de saúde universal e geral que tenha em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, não podendo, em caso algum, o acesso ser recusado por insuficiência de meios económicos”.
Sócrates e o PS aproveitaram-se da frontalidade do adversário e tentam agora esconder todos os ataques que têm feito ao SNS e que colocam em prática a proposta do PSD, vestindo uma capa de defensores do Estado Social. Manuel Alegre aproveitou também a deixa e disse que o SNS é uma das suas principais bandeiras. No entanto, nem uma palavra lançou contra qualquer um dos últimos ataques ao SNS por parte do governo PS, que apoia a sua candidatura, e ainda fez questão de deixar claro que as medidas de austeridade são necessárias: “Ninguém gosta de medidas que vão penalizar os portugueses como o imposto sobre o trabalho e sobre o consumo e a redução de algumas prestações sociais como o subsídio de desemprego. O problema está em saber se havia alternativa”. (DN 16-05-2010). E não há mesmo alternativa? Pois há.
Por um Serviço Nacional de Saúde universal, geral e gratuito!
Pode-se começar pela extinção de todas as PPPs. Para além disso, no ano passado, milhões foram para o salvamento dos bancos, os mesmos que usam o dinheiro do depósito dos nossos salários para investir em hospitais privados, para depois viver às custas das convenções pagas com os nossos impostos e ainda nos cobrarem consultas. Os grandes grupos financeiros que monopolizam o negócio da Saúde (BES, Mello, CGD) devem ser nacionalizados de imediato, sem indemnização, incluindo os hospitais e clínicas que estão nas suas mãos.
A saúde não pode ser um negócio, mas, sim, um direito da população. Só a mobilização social pode trazer de volta o artigo 64 original, escrito pela força da revolução de Abril.
Diana Curado