Dias antes da divulgação pela imprensa internacional, no fim de Julho, de 91.731 documentos secretos sobre a guerra no Afeganistão, a comprovar que as forças de ocupação da Nato estão a ser derrotadas no terreno e desmascaradas pelos seus próprios combatentes, o governo português anuncia a ampliação da sua presença militar neste país. A pedido do governo Obama, o governo PS/Sócrates decidiu aumentar de 160 para 253 o número de militares no Afeganistão. Já em Janeiro deste ano, o governo tinha anunciado o reforço das verbas previstas no Orçamento de Estado destinadas às missões militares portuguesas no estrangeiro. O completar do 9º ano da invasão do Afeganistão pelos Estados Unidos, no dia 7 de Outubro, e a contra-cimeira anti-Nato, marcada para os dias 15 a 21 de Novembro próximos, em Lisboa, são uma excelente oportunidade para reforçar a campanha pela retirada de Portugal da Nato e das tropas portuguesas no Afeganistão.
Dezenas de milhares de civis, entre homens, mulheres e crianças, já foram mortos no Afeganistão desde a invasão militar dos Estados Unidos, a 7 de Outubro de 2001. A maioria foi vítima dos ataques das tropas da Nato, designadas por ISAF (International Security Assistance Force), composta por cerca de 119.000 homens de 41 países, dos quais cerca de 2/3 são americanos (cerca de 78.000). Esse foi o caso do bombardeamento na aldeia de Garani, no Afeganistão, em Maio de 2009, quando 140 civis teriam sido mortos, entre os quais muitas crianças.
Um vídeo com imagens desse massacre poderá estar disponível em breve no site WikiLeaks , o mesmo que repassou aos jornais Guardian, New York Times e Der Spiegel os tais 91.731 documentos secretos sobre a guerra no Afeganistão que estão a deixar a administração Obama em estado de choque. Esses documentos são relatórios detalhados feitos entre Janeiro de 2004 a Dezembro de 2009 a comprovar, desta vez com fontes oficiais, que centenas de centenas de civis afegãos foram mortos em mais de 140 incidentes que as tropas da Nato têm negado e que os americanos e os seus aliados estão a perder a guerra contra os talibãs. Estes, apoiados pelos serviços secretos paquistaneses, estariam mais fortes do que no início da ocupação, apesar de os americanos até possuírem uma unidade especial para assassinar talibãs sem qualquer travão legal.
Segundo o New York Times: “Os documentos ilustram, com abundância de detalhes, o modo como os Estados Unidos gastaram quase 300 mil milhões de dólares na guerra no Afeganistão para os talibãs se encontrarem hoje mais fortes do que em qualquer outro momento desde 2001”. Esta é considerada a maior fuga de informação militar nos Estados Unidos. Numa entrevista à Der Spiegel, o fundador do site, o australiano Julian Assange, declarou: “Estes ficheiros são a mais global descrição de uma guerra no decurso de uma guerra. (…) Mudarão a nossa perspectiva, não apenas sobre a guerra no Afeganistão, mas sobre todas as guerras modernas”. E concluiu: “Adoro esmagar patifes”.
Acto heróico
Um dos suspeitos, segundo o governo dos EUA, de repassar esses documentos ao site WikiLeaks é o soldado Bradley Manning, um jovem norte-americano de apenas 22 anos. Teria sido ele, de acordo com a ISAF, o responsável pela entrega, ao mesmo site WikiLeaks, de um vídeo a mostrar o bombardeamento ocorrido a 12 de Julho de 2007 num subúrbio de Bagdad, Iraque, em que dois helicópteros Apache dos EUA dispararam e mataram cerca de 12 pessoas, entre as quais dois jornalistas da Reuters. Esse vídeo, baptizado “Collateral murder”, com imagens colhidas pela câmara de um dos helicópteros, desmentiu a versão oficial de que o incidente teria sido provocado por um combate contra rebeldes iraquianos.
Em Abril de 2010, este vídeo estava no site WikiLeaks; em Maio, o soldado Manning foi detido no Kuwait e, a 29 de Julho, transferido para um prisão militar na Virgínia, EUA. Julian Assange não assume, como é lógico ter ligações com o soldado Manning. Seja como for, caso Manning seja realmente responsável pela revelação de vídeos sobre o Iraque e Afeganistão, ou dos documentos secretos, está a prestar um grande serviço à luta contra a opressão e a ocupação do Afeganistão e do Iraque. Facto semelhante aconteceu durante a guerra do Vietname, com a revelação dos “Papéis do Pentágono”, documentos secretos do governo dos EUA sobre a guerra, retirados e entregues ao jornal The New York Times por um funcionário do Pentágono, Daniel Ellsberg. E também no Caso Watergate, com o informador “Garganta Profunda”, na verdade Mark Felt, subdirector do FBI.
Reacção da Casa Branca
O governo Obama e o Pentágono adoptaram a táctica de tentar desvalorizar os documentos revelados pelo WikiLeaks, alegando que já eram factos sabidos. Não é verdade. A revelação dos documentos teve o efeito de uma hecatombe na Casa Branca, pois deixou patente a fragilidade do sistema de segurança dos EUA. Não é por outra razão que o soldado Manning está preso e o porta-voz da Casa Branca, Robert Gibbs, “implorou” a Julian Assange que não divulgue os milhares de documentos que ainda tem em seu poder – a reproduzir negociações políticas de bastidores “quase criminosas” – alegando que comprometem a segurança nacional e colocam em risco a vida dos informantes afegãos e soldados do EUA. Obama chegou a ir à TV para explicar o caso.
O presidente norte-americano alega que os documentos divulgados referem-se a um período anterior à sua chegada ao poder, mas a verdade é que os factos revelados condenam a actual política da Casa Branca, isto é, a sua, que é a de reforçar a presença militar do ISAF no país, com o argumento de que desta forma mais cedo sairiam daquele atoleiro. Os factos também jogam por terra a táctica divulgada pelos EUA de transferir a responsabilidade da ocupação para o Paquistão, cujo serviço secreto, o ISI, está fortemente envolvido na manutenção e armamento dos talibãs, que, como todos sabem, é uma criação conjunta da CIA e do próprio ISI.
Em Dezembro de 2009, Obama anunciou um reforço de 30 mil soldados no Afeganistão e, no fim de Julho deste ano, o Congresso aprovou o financiamento desse aumento de tropas, mais 33 mil milhões de dólares para as guerras americanas, cuja maior parte irá para a frente afegã. Só que houve, também nesse caso, “efeitos colaterais” provocados pelos documentos do site WikiLeaks, pois 102 deputados democratas votaram contra a medida, o triplo dos 32 democratas que votaram contra o financiamento da guerra em 2009. Obama teve de se apoiar nos republicanos para poder ver o financiamento aprovado. “A divulgação dos documentos da guerra secreta no WikiLeaks deu-nos 92 mil razões para acabar com a guerra. Escolham uma”, disse o deputado democrata Dennis Kucinich.
Os documentos revelados no WikiLeaks reforçam as razões para exigirmos o fim imediato da ocupação militar do Afeganistão. A convicção de que esta é uma guerra perdida, inútil e criminosa cresce avassaladoramente nos EUA e nos demais países que participam da ocupação e fortalece a campanha anti-guerra. Nos EUA, uma sondagem recente mostra que 76% dos americanos defende uma retirada militar completa, o mais tardar até ao Verão do próximo ano, independentemente da situação militar no terreno.
Não é só o crescimento do número de baixas da ISAF – quase 2 mil soldados mortos, a metade nos dois últimos anos – que demonstra que a guerra está a correr mal para os EUA e aliados, é também o facto destes não poderem confiar mais nos seus próprios soldados. A demissão do general Stanley McChrystal do comando do ISAF por ter criticado Obama e o vice-presidente Joe Biden foi uma demonstração da profunda desmoralização das tropas de ocupação. A divulgação dos documentos e dos vídeos no site WikiLeaks, tenha sido Manning ou quaisquer outros militares os autores desse vazamento de informação, é mais uma demonstração desse facto.