Acima de tudo, um escritor original!
Entre o fim dos anos 60 e o início dos anos 70, Saramago escreveu largas dezenas de crónicas para o diário A Capital e para o semanário Jornal do Fundão. Em algumas, como “Retrato de Antepassados”, “Moliére e a Toutinegra” ou “Carta para Josefa, minha avó”, incidia particularmente na memória da genealogia e da infância. O bisavô berbere que carregava a mancha de um crime de sangue. O avô posto na roda da Misericórdia e guardador de porcos, mas que casara com a rapariga mais bela da aldeia. A casa de terra batida dos avós maternos, camponeses humildes e analfabetos numa aldeia perdida no meio do Ribatejo. A água-furtada de um sexto andar lisboeta onde vivia com os pais e havia apenas dois livros, um guia de conversação de português-francês e a Toutinegra do Moinho, de Émile de Richebourg, ambos pertencentes a outrem. Tudo isso era então tornado público por José Saramago e serve hoje de fonte incontornável para situar a sua entrada na vida entre os desfavorecidos da sociedade portuguesa. Daí virá provavelmente o “comunismo hormonal” reivindicado pelo próprio Saramago.
E isso talvez não tenha sido também alheio aos três aspectos essenciais da obra saramaguiana. O primeiro constitui a marca distintiva do escritor no campo literário internacional e tem a ver com uma original oralização da escrita, onde o narrador atuava como se estivesse de viva voz numa roda de comparsas, desrespeitava ostensivamente as regras sintácticas e a pontuação, espraiava-se em longuíssimos períodos sem pontos finais onde barrocamente comentava, intercalava e repetia situações, falas e personagens. Levantado do Chão (1980) marcou o início de tal oralização da escrita e não foi acaso nenhum o fato de o mesmo ter parcialmente decorrido do convívio direto com os trabalhadores rurais alentejanos e as suas estórias.
O segundo reporta-se a uma inesperada versão ao revés da historiografia oficial dos poderosos, dos feitos militares e das relações político-diplomáticas, incorporando as lições da nouvelle histoire e tendo um laivo marxista nos seus anti-heróis do povo miúdo. Memorial do Convento (1982) foi o grande exemplo desta reconstrução do discurso histórico. O evangelho segundo Jesus Cristo (1991) também pode ser aqui situado na medida em que humanizou Cristo e afrontou as versões consagradas pela Igreja, o que valeu ao escritor a discriminação estatal do governo de Cavaco Silva.
O terceiro relacionou-se com a capacidade para reconfigurar alegórica e elipticamente um mundo votado à irracionalidade do neoliberalismo, da guerra infinita e do “pensamento único”. Ensaio sobre a cegueira (1995) terá sido a sua melhor concretização.
O reconhecimento internacional de Saramago adveio principalmente destas raízes literárias mais ou menos originais, salientando-se muito provavelmente a inusitada prosódia ficcional de que dotou os seus romances e que ninguém antes praticara deste modo.
Saramago e o PCP
Dificilmente haverá escritores de relevo que se deixem disciplinar ferreamente a ideologias, regimes e partidos. A sua actividade criadora comporta basicamente transfiguração, imaginação e ruptura. E isso transporta-se também para a sua intervenção cívica e mundivisão. Fernando Pessoa era um homem da direita autoritária e apoiou inequivocamente a ascensão fascista ao poder, mas nunca alinhou pelo proteccionismo económico, pelo conservadorismo moral e pelo catolicismo. Para o fim da vida, chegou mesmo a fricções com Salazar e o Estado Novo no quadro de um certo individualismo refractário à estabilização de certos aspectos do regime. Gorki era uma espécie de porta-voz artístico do proletariado revolucionário, mas teve vários atritos com os bolcheviques, e a versão que defendia do “realismo socialista” não veiculava nenhuma arte estatal a castrar a liberdade criadora.
Obviamente, Saramago também não se poderia deixar reduzir a uma figura descaracterizada e reprodutora do discurso e das práticas de outrem.
Portanto, a sua relação com o PCP nunca poderia ser o lugar de uma ortodoxia acomodada ou de uma subordinação anódina ao aparelho. Daí a marginalização que sofreu na ressaca dos acontecimentos no Diário de Notícias em 1975, onde actuou de acordo com as suas convicções próprias bem mais próximas da linha gonçalvista da tomada do poder rumo ao socialismo do que da concepção etapista da “revolução democrática e nacional” então defendida por Álvaro Cunhal e pela direcção do PCP, e suspendeu mesmo os contactos partidários para preservar tanto quanto possível a autonomia do jornal.
Daí a convivência com a orientação crítica do chamado grupo da “Terceira Via” para a obtenção de democracia interna e a experiência fracassada como presidente da Assembleia Municipal de Lisboa. Daí a persistência de atritos e desacordos vários, avultando entre eles a demarcação face aos processos jurídicos pouco claros que o regime castrista utilizou para fuzilar três pessoas e prender dezenas de dissidentes em 2003. Contudo, é importante ressalvar que se tratou sempre de diferenças no marco de uma unidade global e que o escritor nunca se decidiu a jogar a função de um quadro de direcção. Em rigor, a consagração literária e o amor às letras terão levado a que durante a maior parte do tempo ele fosse mais um observador político atento do que propriamente um militante partidário consequentemente empenhado nas alterações consideradas pertinentes.
Em toda a sua trajectória de militante do PCP transpareceu a marca da unidade e da diferença, da continuidade e da mudança, da aversão aos trânsfugas de direita e da indisponibilidade para os fenómenos de recomposição anticapitalista à esquerda dos antigos partidos comunistas. Certamente, estes reagrupamentos são os mais interessantes para pensar e fazer um outro Mundo para lá do capitalismo, em nada invalidados por se desenvolverem por fora dos partidos comunistas, social-democratas ou trabalhistas tradicionais e ganhando mesmo uma dinâmica apreciável a expensas da sua base social de apoio, conforme acontece com o Bloco de Esquerda em Portugal ou com o PSTU e o PSOL no Brasil. Na sua idiossincrasia e coerência, concorde-se ou não, esta foi a opção de Saramago e merece todo o respeito!
A posição face à realidade política contemporânea
Na luta dos povos para impedir a agressão militar dos EUA ao Iraque em 2003 esteve corretamente em sintonia com o sentimento generalizado de repúdio a Bush, Blair, Aznar, Berlusconi e Durão Barroso. Na sua coerência de homem da esquerda anticapitalista que não abandonou as convicções quando muitos debandaram após os acontecimentos de Leste em 1989-1991, permaneceu tranquilamente no quadro de uma minoria para a qual o abandono da tradição marxista e do referencial da Revolução Russa de 1917 assume foros de capitulação à ordem reinante.
Na denúncia do esgotamento dos mecanismos de legitimação dos governos recorrentemente sequestrados pelo poder financeiro concentrado, na aprendizagem do direito inalienável do pluralismo e na proposta de substancialização socio-económica dos formalismos legais, Saramago assumiu corajosamente o distanciamento da democracia burguesa. Na oposição a alguns atos repressivo do regime cubano, ganhou legitimidade acrescida na reinvenção de uma democracia basista e substancial para lá da plutocracia ocidental e de todas as ditaduras. Na defesa do povo palestiniano contra a ocupação sionista e planos de paz que apenas consagram o lugar de Israel enquanto vigia do imperialismo para todo o Médio Oriente, ousou uma dissidência bem minoritária na opinião pública ocidental.
Obviamente, o Saramago polémico, avesso ao consenso maioritário e criativo que está em liça em algumas destas tomadas de posição nem sempre se manifestou. Por vezes, o escritor até assumiu posições pouco compreensíveis à luz dos marxismos em que se inscreve a sua mundivisão. Por exemplo, no patrocínio do balanço positivo dos exercícios presidenciais de Mário Soares, no apoio ao PS de António Costa nas últimas eleições municipais em Lisboa, no alinhamento ao lado de Zapatero e do PSOE em Espanha ou na tendência a uma certa visão idealista da problemática das nacionalidades no interior do Estado Espanhol. Por mais respeitáveis que sejam certas razões de política conjuntural ou certos laços pessoais, não eram posições propriamente muito aceitáveis para a esquerda transformadora e combativa que resiste ao rotativismo ao centro.
Porém, o mais importante é salientar que Saramago fica para a posteridade essencialmente devido a razões literárias de renovação do género romanesco via um inusitado estilo de oralização da escrita, um reequacionamento do passado nacional pela óptica da nouvelle histoire (da “arraia-miúda” ) e uma capacidade de construção de poderosas alegorias distópicas. Social e ideologicamente, tais razões literárias transformam-se numa espécie de admoestações aos donos do poder acerca da podridão e da inestabilidade das relações sociais de produção em que assenta o seu domínio. Tal como acontece com a família dos trabalhadores rurais alentejanos dos Mau-Tempo em Levantado do Chão, ou com a mulher do médico em Ensaio sobre a cegueira e em Ensaio sobra a lucidez, é necessário organizar, resistir e revolucionar rumo a um outro mundo para lá do capitalismo.
João Marques Lopes
Autor do livro Biografia José Saramago,editado pela Guerra e Paz e pela Edições Pluma.