De repente, na histeria da recepção a Bento XVI, os nossos fazedores de opinião puseram-se a zurzir forte e feio nos preconceitos laicistas, jacobinos e maçons. Que são preconceitos esquemáticos, que pretendem separar hermeticamente o que é de deus e o que é de césar, que confundem um Estado laico com uma sociedade laica e assim por diante.
Acontece que todo este palavreado é, ele próprio, esquemático, porque toma como alvo o laicismo republicano e burguês da Primeira República. Esse laicismo burguês há muito que está morto e enterrado. Ele é um alvo fácil porque fracassou. Concebia o combate ao obscurantismo religioso como revolução cultural, quando na realidade esse combate só é possível mediante uma revolução social.
Compreende-se que o laicismo republicano, burguês como era, não pudesse admitir esta ligação e nos tenha deixado em herança um alvo de fácil para a demagogia pró-clerical.
À falta de argumentos, os burgueses laicos do nosso tempo, os Soares e os Alegres, mimetizam-se portanto com a grande maré patrioteira e anfitriã. Sobram, assim, para um laicismo socialista – socialista, digo bem, nem soarista, nem alegrista – várias elementaridades para serem ditas, daquelas que antes faziam parte do senso comum e agora parecem estar esquecidas.
O que se esconde por trás da metáfora “o que é de deus e o que é de césar”? Claro que é de reivindicar a separação, se por ela se entende que o Estado não deve meter o nariz na religião. Todas as pessoas têm o direito a uma irrestrita liberdade religiosa. E é de reivindicar a separação, se por ela se entende que a Câmara de Ourém não tem de subsidiar a visita papal em meio milhão de euros dos contribuintes.
Mas, se se considera “de deus” o imenso património imobiliário da igreja, já nada disso pode ficar fora da lei ou acima da lei. Quando vigora a lei burguesa, o património da igreja deve ser tributável e pagar impostos como qualquer outro. Quando vigorar uma lei revolucionária, de reforma agrária, de reforma urbana, ou do que for, deve ser expropriável como qualquer outro. Nada deverá colocar um burguês de mitra e sotaina ao abrigo das medidas que atingem um burguês de fraque e cartola.
Hoje vigora a lei burguesa e nada deveria colocar o papa e o seu clero acima das obrigações que ela impõe. Diz-se que, ao tomar conhecimento dos casos de pedofilia na igreja, o então cardeal Ratzinger tentou pôr-lhes cobro. Talvez. Tentou talvez meter na ordem os padres pedófilos e abafar o escândalo. Mas os padres pedófilos não tinham de ser metidos na ordem – tinham de ser metidos na cadeia, como qualquer abusador de menores. Toda a acção de Ratzinger foi para evitar que isso acontecesse e para não entregar à Justiça de césar o que pretendia reservar ao foro – indulgente, e quanto! – da igreja.
Entretanto, há que notar que as crianças recém-nascidas sofrem também o abuso de serem baptizadas numa idade em que nada podem dizer. Não se trata aqui de comparar um tal abuso simbólico e relativamente benigno com os criminosos abusos sexuais. Mas ainda assim este é mais um terreno em que, com o estafado discurso do país “maioritariamente católico”, a igreja considera aquelas ovelhas como propriedade sua, para efeitos estatísticos e não só, acha que pode fazer delas o que quiser e marca-as com um ferro em brasa só anulável através de uma declarada e militante apostasia.
Enfim, a igreja pode ter as suas opiniões sobre a sexualidade dos católicos e dos não-católicos. Mas não pode fazer dessas opiniões o trampolim para uma fronda contra as leis que protegem a saúde pública. Não pode, por exemplo, incitar os médicos à objecção de consciência perante as interrupções voluntárias de gravidez, nem pode boicotar o uso do preservativo. E não pode fazê-lo, porque esses incitamentos e boicotes são simplesmente criminosos.
Deus só existe para quem acredita e, à face da lei, nada tem. Césares, tem havido muitos e todos eles incapazes de colocarem a igreja no seu lugar. A capacidade de falar claro perante a igreja e de dizer, em momentos destes coisas impopulares, seria a marca de água duma esquerda sem césares, disposta a transformar a sociedade.
António Louçã