A morte do preso cubano Orlando Zapata Tamayo, logo após uma longa greve de fome, tem provocado uma grande polémica internacional. É que as circunstâncias do caso e a sua repercussão internacional têm demonstrado de forma chocante a actuação do governo cubano e qual deve ser a atitude das organizações de esquerda em casos como este. O debate obriga-nos a aprofundar o tema e leva-nos a responder a pergunta sobre o que é actualmente o Estado cubano.
Quem era Orlando Zapata Tamayo?
A maioria das organizações de esquerda saiu em defesa intransigente do governo cubano e denunciou que a repercussão dos media é uma nova campanha imperialista contra o que considera “o último bastião do socialismo”. O primeiro argumento neste sentido é que ele não era um “preso político”, mas um marginal, um delinquente anti-social que aproveitou a sua condição de preso para apresentar-se como “dissidente” e começou a ser utilizado pela media imperialista.
Tal acusação falsifica absurdamente a realidade. Por isso, é necessário ver como funciona o sistema penal cubano e quem era realmente Orlando Zapata Tamayo. Porque é a partir dessas questões que se começa a entender o que realmente ocorreu. Os órgãos oficiais de Cuba e quem os apoia tratam de mostrar Zapata Tamayo como um “preso comum”, alegando que foi detido várias vezes nos anos 90, acusado por delitos como “fraude”, “desordem pública” e “agressões”. É nesta ficha jurídico-policial que os órgãos do PC cubano se apoiam para caracterizá-lo como “delinquente”.
Mas o que é preciso ver é que o sistema judicial cubano, por razões que logo veremos, está completamente viciado. Mas vamos supor que Zapata Tamayo tenha cometido esses delitos pelos quais foi preso nos anos 90. Contudo, esses mesmos órgãos oficiais “esquecem” o facto de que, em Dezembro de 2002, não foi detido por nenhum desses delitos, mas por ter se transformado num opositor ao regime. O {Granma}, jornal oficial do PC cubano, diz que ele foi liberado sob fiança em 9 de Março de 2003 e que “voltou a delinquir no dia 20 do mesmo mês”. A que se deveu essa última detenção? O que significa para o {Granma} “voltar a delinquir”?
Um preso de consciência
A última detenção ocorreu porque, junto a outras pessoas, realizava uma greve de fome organizada pela Assembleia para Promover a Sociedade Civil. Depois, é julgado e condenado por “desacato, desordem pública e desobediência ao Estado” e recebe uma pesada condenação. Desde então, vinha realizando diversos protestos exigindo a sua liberdade (e ao mesmo tempo melhores condições na prisão) que culminaram com a greve de fome que o levou à morte.
A Comissão Cubana de Direitos Humanos e Reconciliação Nacional (CCDHRN), encabeçada pelo advogado e dissidente político Elizardo Sánchez, reivindicava-o como preso político, e desde 2004 a Amnistia Internacional o reconhecia como “preso de consciência” (quer dizer, por suas convicções e não por delitos comuns), exigindo a sua liberdade.
É muito provável que Zapata Tamayo (ou a organização à qual estava ligado) tivesse posições pró-capitalistas. Não temos nenhum compromisso com as suas reivindicações políticas nem ideais. Ele, porém, não foi detido por estar a favor de restaurar o capitalismo, mas sim por exigir liberdades democráticas no país. O choque real que houve entre ele e o governo cubano, e que o levou à morte, foi que o regime político cubano não aceita a realização de actividades contra si. É necessário perguntar-se o que ocorreu em Cuba nas últimas décadas para que um operário especializado, como era Zapata Tamayo na década de 80, seja condenado a longos anos de prisão só por protestar contra o regime. Em segundo lugar, por que o governo cubano preferiu deixá-lo morrer a fazer qualquer concessão a um preso de consciência para não servir de “mau exemplo”?
Uma atitude que indigna
As circunstâncias de sua morte, e a atitude do governo de Raúl Castro de negar qualquer responsabilidade, indigna aqueles que lutaram ou lutam contra as perseguições aos militantes de esquerda e que, nos cárceres das ditaduras ou dos países imperialistas, muitas vezes tiveram que recorrer a esse tipo de medida. As declarações de Lula, presidente do Brasil, também nos indignam. Ele saiu em defesa da repressão do Estado cubano e atacou os que fazem greve de fome, comparando-os com “bandidos brasileiros”. Lula “esquece” a própria experiência de luta do povo brasileiro contra a ditadura militar e as muitas vezes que, nessa época, os presos políticos utilizaram essa ferramenta, inclusive quando ele próprio esteve preso.
Algo mais grave ainda quando, neste momento, o imperialismo e os governos capitalistas usam as acusações de “criminosos” ou “bandidos” contra lutas sociais, como as ocupações de terra, e atacam os activistas operários, camponeses ou indígenas que lutam contra o latifúndio ou o saque das empresas multinacionais. Assim, Lula serve os argumentos do governo cubano na bandeja para que a direita possa utilizá-los no resto dos países do mundo.
A revolução cubana e a restauração
É impossível entender a morte de Orlando Zapata Tamayo sem localizá-la no marco de um processo económico-social muito mais profundo: a restauração do capitalismo que Cuba viveu do final dos anos 80 e meados dos 90, impulsionada pelo regime do Partido Comunista. O processo aberto com a revolução de 1959, ou seja, a expropriação das empresas do imperialismo norte-americano e da burguesia cubana e, principalmente, o início de uma economia planificada transformaram Cuba no primeiro Estado operário do continente latino-americano.
A revolução conseguiu avanços imensos em áreas como Educação e Saúde, a melhoria geral do nível de vida da população e a eliminação da pobreza extrema e da miséria. Cuba converteu-se num símbolo do que uma revolução socialista era capaz de fazer, e os dirigentes do processo, Fidel Castro e Che Guevara, adquiriram imenso prestígio e se transformaram em uma referência política para milhões de lutadores e revolucionários do mundo.
Contudo, desde o próprio início da revolução, a direcção castrista se constituía numa burocracia governante que, poucos anos depois, se integrou ao aparato estalinista mundial, centralizado desde a casta governante na ex-URSS. Tal ligação política expressou-se no apoio de Fidel Castro à invasão do exército soviético à Checoslováquia em 1968, ou em sua orientação, depois que a FSLN (Frente Sandinista de Libertação Nacional) derrotou a ditadura de Somoza, em 1979, de não fazer da Nicarágua “uma nova Cuba” (ou seja, não avançar a uma revolução socialista).
Em Cuba, impediu o exercício da democracia operária e perseguiu não só os agentes dos “gusanos” de Miami como também os opositores de esquerda. No final dos anos 80 e começo dos 90, a restauração capitalista no Leste europeu e a queda da URSS significaram um duro golpe à economia cubana, centrada na exportação de açúcar e na sua troca por petróleo e tecnologia com esses países. Nesse contexto, a direcção castrista começou a desenvolver uma política de restauração capitalista e de desmonte das bases do Estado operário.
Os pilares fundamentais de uma economia planificada (o planeamento central estatal e o monopólio do comércio exterior) já não existem, e a economia funciona segundo as leis capitalistas de mercado. A restauração significou a perda ou a deterioração extrema da maioria das conquistas da revolução e a volta dos males que haviam sido eliminados ou reduzidos ao mínimo, como o desemprego, a prostituição, a marginalidade, as drogas e a delinquência (dados que são reconhecidos, inclusive, pela própria direcção cubana).
O governo de Raúl Castro continua atacando uma após outra as conquistas que restaram: restaurantes populares, redução do orçamento da Saúde e Educação. Os salários dos sectores operários de base são miseráveis, não existe o direito de greve nem de organização de forma independente do Estado. Assim como na China, os países estrangeiros buscam aproveitar os baixíssimos salários e as condições propícias para a acumulação de capital e assim extrair lucros extraordinários: crescem os investimentos imperialistas da Europa, Canadá e, inclusive, de sectores burgueses do Brasil.
Uma ditadura capitalista
À diferença do que ocorreu na ex-URSS ou nos outros estados do Leste da Europa, onde os responsáveis do processo de restauração capitalista (os regimes e partidos estalinistas) foram logo depois derrubados pelas massas, o processo cubano seguiu o “modelo chinês”. Isto é, as massas não conseguiram derrubar o regime de partido único dos PC’s, que continuam à cabeça do agora Estado capitalista (ainda que continuem falando de “socialismo” e usando sua simbologia).
A maioria da esquerda já começou a reconhecer o que ocorreu na China, mas se nega a fazer o mesmo em Cuba e a reivindica como “o último bastião do socialismo”. É certo que a permanência da direcção dos irmãos Castro, a mesma que encabeçou a revolução, pode gerar confusão. É um facto também que o reconhecimento da restauração e da realidade cubana actual resultam dolorosos para quem viu na revolução cubana uma grande esperança. Mas isso não pode justificar a negação da realidade e, menos ainda, uma política totalmente equivocada baseada nessa negação.
A realidade nos indica que hoje em Cuba se dá uma péssima combinação para os trabalhadores. Por um lado, um sistema económico capitalista de exploração, a volta dos seus piores males e a recolonização da ilha, realizada pelos imperialismos europeu e canadense. Por outro lado, um regime ditatorial e antidemocrático transformado em sócio, impulsionador e defensor da restauração capitalista e das suas consequências. Nesse sentido, o regime cubano é semelhante ao chinês: os mesmos que antes defendiam os seus privilégios como burocracia agora defendem os novos capitalistas e os seus negócios a qualquer custo.
Uma ditadura que impede a liberdade de expressão e reprime qualquer corrente política que discorde de sua linha (qualquer que seja sua posição), que, segundo o informe da CCDHRN (ligada à oposição), mantém ao menos 200 presos políticos. A Amnistia Internacional, por sua vez, reconheceu 58 presos políticos em 2008. Mais ainda, em Cuba não há processos judiciais públicos, as audiências são fechadas e se pode perseguir de forma implacável trabalhadores como Zapata Tamayo e condená-los a 30 anos pelo “crime” de “desacato à autoridade”.
Uma ditadura que teme como a peste à liberdade de manifestação: para evitar que se transformasse num evento político, o próprio enterro de Zapata Tamayo foi objecto de um cerco policial na pequena cidade de Banes, sem nenhum respeito pela dor dos amigos e familiares. Mais de 60 detenções em todo o país foram realizadas, para que os activistas mais próximos a ele não estivessem presentes. Há outros activistas de oposição que lutam pela liberdade dos presos políticos: um dissidente, o jornalista Guillermo Fariñas entrou em greve de fome em sua casa, em repúdio à morte de Orlando e pela libertação de outros detentos. Novamente, a resposta do regime foi a de não se responsabilizar por sua possível morte, além de acusá-lo de “agente dos Estados Unidos”.
Um programa de liberdades democráticas
Na época em que era um Estado operário burocrático, já havia um intenso debate sobre Cuba na esquerda. Para a maioria das organizações, a defesa da revolução implicava também no apoio incondicional à direcção castrista e ao seu regime. Para a corrente que hoje constitui a Liga Internacional dos Trabalhadores – Quarta Internacional (LIT-QI), a defesa dessas conquistas significava (assim com na ex-URSS ou na China) a realização de uma revolução política que derrotasse a burocracia e impusesse um verdadeiro regime de democracia operária. Do contrário, a manutenção do regime e da burocracia castrista acabaria levando à restauração do capitalismo, como de fato ocorreu.
Naquele momento, não defendíamos as liberdades para os burgueses ou pequeno-burgueses que buscavam restaurar o capitalismo. Exigíamos democracia operária, mas não estávamos a favor de dar liberdades às fracções políticas que queriam o retorno do imperialismo ou conspiravam para derrubar o Estado operário, como os “gusanos” (“vermes”) de Miami. A realidade, porém, mudou: Cuba não é mais um Estado operário com um regime burocrático, mas um Estado capitalista governado por uma ditadura.
Hoje, o centro de nosso programa de reivindicações para Cuba é o de luta frontal contra a ditadura e pela defesa das mais amplas liberdades democráticas (sindicais, civis e políticas). Todo revolucionário que luta contra o capitalismo e pelo poder da classe operária sabe que é necessário diferenciar os diferentes regimes de um Estado capitalista, como, por exemplo, uma ditadura burguesa de um regime democrático-burguês.
Frente às ditaduras burguesas, lutamos pelas liberdades para diferentes sectores sociais. Por exemplo, na Argentina, entre 1976 e 1982, ou no Brasil, de 1964 a 1984, havia sectores burgueses opositores aos regimes ditatoriais. Naqueles momentos, qualquer militante de esquerda estava contra a repressão desses sectores pelas ditaduras. Nessas situações, lutamos pelas mais amplas liberdades democráticas para todas as correntes opositoras, incluídas as burguesas, para permitir que o povo se organize e se mobilize contra esses regimes.
Isso não significava nenhum compromisso com essas correntes burguesas, como o Radicalismo argentino ou o MDB brasileiro, partidos que combatíamos politicamente. Nesses casos, os revolucionários chamavam uma ampla unidade de acção, inclusive com esses sectores, para combater as ditaduras, mas sempre mantendo a mais absoluta independência de classe e construindo uma alternativa que apontasse para a democracia operária. Essa unidade de acção responde ao fato de que a classe operária necessita das mais amplas liberdades democráticas para avançar em sua organização.
No caso actual de Cuba, estamos diante de uma situação semelhante, para além das aparências e dos discursos. Os revolucionários devem lutar para conseguir as liberdades democráticas que facilitam a organização dos trabalhadores e a luta pela revolução socialista (no caso cubano, devamos dizer “novamente”). Por isso, reivindicamos amplas liberdades democráticas, inclusive para os opositores burgueses e pequeno-burgueses, e repudiamos a repressão aos dissidentes políticos, como faríamos frente a qualquer regime ditatorial burguês latino-americano.
Por isso, a nossa posição no caso de Orlando Zapata Tamayo é que, independentemente das posições pró-burguesas que provavelmente tivesse, reivindicamos sua liberdade e a dos demais presos políticos que lutam pelos direitos humanos e civis no país. Ao mesmo tempo, condenamos a actuação do governo cubano, responsável por sua morte.
Defender as liberdades democráticas em Cuba é a melhor forma de apresentar uma alternativa contra as manobras do imperialismo.
Muitas vezes, o imperialismo utiliza as campanhas de exigência de liberdades democráticas para defender seus interesses políticos e económicos. Em muitas ocasiões, isso o leva a questionar ditaduras. Assim o fez, por exemplo, o ex-presidente norte-americano, Jimmy Carter, no final da ditadura argentina. Obama tenta vender uma imagem similar. O fato de Carter defender as liberdades democráticas na Argentina deveria nos levar a defender essa ditadura?
A esquerda deve levantar mais do que nunca as bandeiras democráticas e da defesa dos direitos humanos em Cuba. Caso contrário, essa bandeira ficará nas mãos do imperialismo e da direita, que ganharão prestígio aos olhos dos trabalhadores, dos povos do mundo e do próprio povo cubano como os representantes da “democracia”. Se a maioria da esquerda continuar apoiando a ditadura cubana, vai facilitar a política do imperialismo de identificar a esquerda e o socialismo com a falta de democracia.
A restauração do capitalismo já se produziu em Cuba, pelas mãos do castrismo a serviço do imperialismo europeu e canadiano. Reivindicar a actuação do governo cubano no caso de Orlando Zapata (e toda a acção do regime) não significa hoje defender a “última fortaleza do socialismo”, mas sim defender uma ditadura capitalista. Defendê-la não contra o sistema capitalista e o imperialismo, que já voltaram à ilha, mas contra as necessidades dos trabalhadores e do povo cubano. A opção para Cuba é construir uma alternativa operária independente que enfrente a ditadura castrista e o imperialismo e que lute por uma nova revolução socialista.