Os cortes decretados pelo governo de Pedro Passos Coelho alteraram muito a vida dos centros de saúde – para pior. Agora, um terço da consulta é passado a explicar ao doente que perdeu direitos. Quem nos conta como está a ser o impacto desses cortes é a médica Mara Carvalho, do Centro de Saúde da Amadora, um polo de saúde fundamental para a população desse concelho.
Quais foram as principais alterações que sentiste no Centro de Saúde com os cortes do governo?
A principal alteração tem a ver com as taxas moderadoras. Foram todas aumentadas, mas a grande alteração foi ter-se começado a pagar as consultas de enfermagem. Estas consultas eram uma porta aberta para a população e contribuíam muito para a comunidade. Hoje todos os atos de enfermagem são pagos, todos os tratamentos, até o ato de medir a tensão passou a ser pago. Para se ter noção do ridículo, quando um doente vai levar pontos a taxa moderadora aumenta com o número de pontos dados.
E as alterações em relação aos doentes crónicos?
Aí surgiram mudanças também drásticas e injustas. Com efeitos a partir de abril, deixou de haver a “declaração médica definitiva por doença crónica”, que mais de metade dos doentes com mais de 65 anos tinham. Era uma declaração para os doentes com doença crónica que os isentava do pagamento de taxas moderadoras e exames complementares de diagnóstico. Agora essa declaração foi substituída por outra que exige uma junta médica que declare que o doente tem uma incapacidade funcional superior a 60%. Esta declaração implica uma consulta de Saúde Pública que custa 50 euros. Isso cria situações muito injustas. Por exemplo: um doente com um cancro, que seja operado e que corra bem, pode não ter uma incapacidade de 60%, mas continua a ter que fazer muitos exames de seguimento e muitos tratamentos, sendo injusto que tenha que os pagar. Surgiu ainda uma declaração de “insuficiência económica”, ou seja, os doentes têm de preencher e enviar pela Internet ou pelo correio uma declaração para provar que não têm dinheiro para os cuidados de saúde. Como a maioria dos doentes é muito idosa e não sabe usar a Internet – nem tem possibilidades para tal –, isso obriga-os a ir aos correios. É a estigmatização social e a burocratização dos cuidados de saúde.
Mas a tua prática enquanto médica mudou?
Sim, agora um terço da consulta é passado a explicar ao doente que perdeu direitos. Isso é muito complicado, porque as pessoas têm dificuldade em entender porque é que, mantendo as mesmas doenças, não têm isenções. Como é que se explica a um doente que sofre com uma doença há 10 anos que tem de ir provar outra vez que a tem para ter isenção?
E em termos de queixas dos doentes, quais foram as mudanças?
Nota-se que vêm muitos doentes com ansiedade, com insónias. O agravamento das condições sociais trouxe verdadeiros dramas à comunidade. Despedimentos, filhos que regressam para casa dos pais, que por si só já têm más condições. Há emigrantes que regressam para os seus países e pessoas de cá que também têm de emigrar. Há muitos casos de fome, pura e dura. Posso dizer que uma doente minha com cancro do estômago fez 10 quilómetros a pé para vir à consulta por não ter dinheiro para o passe.
E achas que essas medidas do governo também prejudicam o Serviço Nacional de Saúde?
Claro, além da deterioração do SNS com essas medidas, para doentes com certos subsistemas, paga-se mais no Centro de Saúde do que no privado, ou seja, é um estímulo ao abandono do SNS e para que as pessoas façam seguros. No Centro de Saúde da Amadora há uma dificuldade imensa em contratar pessoas no sector administrativo e de enfermagem devido ao congelamento de contratações. Há falta de auxiliares, enfermeiros, médicos, psicólogos, assistentes sociais, de tudo. Não há qualquer investimento no SNS, estas medidas não são reorganizativas, são o corte pelo corte.
E os doentes ficam revoltados com essas medidas?
Sim, claro. Primeiro ficam incrédulos e depois ficam completamente revoltados. Mesmo os que votaram neste governo!
Entrevista de Manuel Neves (médico)