O Ruptura/FER tem vindo a travar uma polémica com Francisco Louçã (FL) sobre as soluções da esquerda contra o saque da Troika. Mas o nosso debate não é, em particular, com FL. Não personalizamos, porque FL mais não é que o porta-voz de toda a esquerda institucional. Jerónimo de Sousa e o PCP, bem como o resto da direção do Bloco, todos têm a mesma resposta para o mais candente problema da atual situação política: pagar a dívida. Mesmo a substituição de Carvalho da Silva por Arménio Carlos (ler entrevista recente ao Diário de Notícias), na direção da CGTP, não levou a qualquer inflexão da orientação da central sobre o problema da dívida.
Ninguém na esquerda tradicional (BE e PCP) afirma que é pelo pagamento da dívida. Ou não o dizem desta forma, claro. A defesa do pagamento da dívida surge sob a forma de renegociação ou reestruturação, mas se lermos bem é reestruturar para pagar, para alargar prazos e negociar juros, mas pagar. E pagar é, sem sombra de dúvida, a orientação dos últimos governos, quer do PS quer do PSD/CDS, o que implica a guerra social contra o mundo do trabalho que está em curso e sem fim à vista.
Ainda assim, alegramo-nos por ver que FL, no seu novo artigo “Grécia e Portugal: os povos contra o terrorismo financeiro”(http://esquerda.net/opiniao/gr%C3%A9cia-e-portugal-os-povos-contra-o-terrorismo-financeiro), voltou atrás. Ou fez um pequeno recuo ainda que o não assuma de forma evidente. Se antes dizia que qualquer política que pusesse em causa o euro e o pagamento da dívida era tabu, hoje FL já nos diz que “a ideia merece ser discutida”. Já é qualquer coisa.
FL muda de posição
Ao contrário de antes, FL defende agora uma “anulação muito substancial da dívida” e afirma ainda que também o BCE deve “cortar a dívida”. Embora procure aproximar-se da posição defendida por nós e por alguns dos principais economistas da esquerda europeia, como Costas Lapavitsas, Éric Touissant ou Michel Husson, FL continua preso ao seu tabu. Quer o melhor de dois mundos: anular parte substancial da dívida, mas nunca suspender o pagamento, enfrentar Merkel, mas permanecer no euro… Nem os credores privados aceitariam voluntariamente a anulação de que FL fala nem é provável que um corte com a troika permitisse a permanência no euro.
Mais grave ainda: perante a situação de emergência que vivemos, como impedir o “aumento do preço dos transportes”, das “taxas moderadoras”, dos “impostos” e das “propinas”, sem suspender o pagamento dos juros? E, ainda, como investir no emprego sem mobilizar os milhares de milhões absorvidos pelo pagamento do serviço da dívida? FL não nos responde, pois a sua solução, crente no “melhor de dois mundos”, permite pagar a dívida e romper com a austeridade. A solução de FL é, sem dúvida, a melhor que se pode imaginar. Porém ela só existe nos artigos do esquerda.net, na realidade é impossível.
Onde é que o Bloco defende a anulação da dívida?
É por ser impossível que o Bloco não a defende. FL pode defender a “anulação” nos seus artigos, mas em que comício, em que outdoor, em que campanha eleitoral, em que projecto lei, ou em que movimento social o Bloco defendeu a “anulação muito substancial da dívida”? Vejamos a resolução da Mesa Nacional de Dezembro do Bloco. Aqui defende-se a troca de 60% da dívida por eurobonds (que não existem) e a troca dos restantes 40% por títulos com juros mais baixos. Defende por isso sim pagar 100% da dívida. Reivindica, é certo, o direito a não pagar dívida ilegítima, reivindica ainda o exemplo da Argentina, que antes criticava, mas nada propõe nesse sentido.
Já na resolução da sua Mesa Nacional de 4 Fevereiro, nada de concreto se tira. A solução para a dívida é auditá-la e, embora se reconheça que “estamos numa corrida contra o tempo”, propõe-se continuar a pagar a dívida durante os longos meses – talvez anos – de duração da auditoria.
Há ainda outra contradição incontornável entre o que FL que responde ao Ruptura/FER e o que o fala ao país. A nós diz-nos que “o BCE deve ser o primeiro banco a cortar a dívida”, porém ao país diz que a solução imediata para a crise da dívida é o “Uma intervenção imediata do BCE como emprestador em última instância aos Estados” (resolução da Mesa Nacional de Dezembro, pág.4). Ora anular a dívida para contrair mais empréstimos não é uma solução mas um truque. Um truque que a Troika também usa. A reestruturação em curso na Grécia cumpre as exigências de FL: “corta” na dívida ao BCE. Se com o “ataque” ao BCE queria distanciar-se de Merkel, FL conseguiu, na verdade, o efeito oposto.
Mas dado que o BE decidiu iniciar uma nova campanha “contra o governo da troika”, temos nova oportunidade de ser convencidos. Esperamos ver uma grande campanha nacional pela “anulação substancial da dívida”. Se o fizer, seremos os primeiros a aplaudir e lutaremos juntos. Ficará apenas entre nós que essa política significaria um giro de 180º no rumo do Bloco. Seria um giro à esquerda, como está bom de ver.
Como não cremos neste giro do Bloco, e é legítimo pensar que se trata de uma “adaptação táctic” na sua orientação de fundo (continuar a pagar a dívida para que o país permaneça no euro), há outras contradições a esclarecer.
Contradições e justificações
Algumas são óbvias. FL reivindica a solidariedade com o povo grego, mas votou a favor do empréstimo que abriu as portas à entrada da troika neste país. Tem ainda o desplante de criticar as esquerdas que debatem a solução para o problema grego. Chama-nos “pedantes” e “doutrinários”. Mas não é também ele próprio que propõe soluções para a Grécia, nesse artigo? A crise grega é a crise de todos os trabalhadores e povos europeus, o nosso destino é também jogado na praça Syntagma.
Mas há mais. FL cita o relatório de Costas Lapavitsas (http://issuu.com/bits_n_bytes/docs/final_rmf3/1), para fazer crer que este defende o mesmo que FL. Porém quem o ler sabe que não: Lapavitsas defende a suspensão do pagamento da dívida, a saída do euro e a nacionalização da banca. Que é a nossa proposta política e que fundamenta a necessidade de uma outra força política à esquerda no nosso país (como já o referimos o PCP, sobre esta matéria, tem a mesma posição de FL) confirmando as insuficiências actuais da esquerda tradicional (BE e PCP) para cumprir a missão que na origem estava destinada ao Bloco: ter sido efectivamente uma nova alternativa. Pois teremos que a construir de novo.
Porém, como activista e economista sério, Lapavitsas não anuncia uma panaceia que resolve todos os males, sem dificuldades inerentes. Isso é o que faz FL. Lapavitsas assinala alguns dos problemas a curto prazo da sua solução, como nós mesmos fizemos antes. No relatório do economista grego, FL não encontrou nem as vantagens, nem as críticas à sua posição. Só os problemas. É como quem, perante o nascimento de uma criança, só consegue ver as dores de parto, defendendo assim que a criança deva permanecer no ventre da mãe. Calculamos que FL saiba o que aconteceria tanto à mãe como à criança – não é muito diferente da sua solução para a crise da dívida. É aliás contra esse tipo de raciocínio enganoso que Lapavitsas alerta: “o termo de comparação não pode ser o do estado de coisas anterior à crise. A comparação correcta seria, em vez disso, com o estado do país se continuasse sob as medidas de austeridade, dentro da zona euro, mesmo depois de um incumprimento liderado pelos credores”(pág. 75).
O economista prevê que com uma reestruturação da dívida gerida pelos devedores, sem suspender o pagamento da dívida, a Grécia terá ainda em 2020 um endividamento de 130% do PIB e continuará insolvente até 2030 (pág.75). O cenário grego é de um cataclismo social cada vez mais conhecido, a reestruturação da sua dívida só resultará no aprofundamento da destruição. Portugal estará em breve na mesma situação. Falamos de décadas de desemprego estrutural, da destruição completa dos serviços de ensino e de saúde, a privatização generalizada dos serviços e recursos. É com este cenário que se deve comparar as dificuldades da suspensão do pagamento da dívida.
Éric Toussaint responde às “cassandras da dívida”.
Felizmente não somos os únicos “pedantes” que discutem a crise da dívida. Éric Touissant, economista Belga, porta-voz do Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM) tem caído na mesma tentação e escreve uma artigo junto com Damien Milltet, presidente do CADTM Belga, no Le Monde Diplomatique de Julho de 2011 que parece feito para responder a Francisco FL. Na verdade responde ao Governador do Banco de França, que comparou a suspensão dos pagamentos a um “filme de terror”. Algo semelhante ao cenário catastrófico pintado por FL.
Por isso Éric Touissant levanta a questão “não faria sentido suspender os pagamentos, senão mesmo denunciar as dívidas ilegítimas?” E dá, mais uma vez o exemplo da Argentina e do Equador que suspenderam (ainda que de forma tímida e parcial) as suas dívidas o que lhes permitiu registar crescimentos de 8% durante 7 anos. Já prevenido contra aqueles a quem chama as “cassandras da dívida” cita Joseph Stiglitz, que demonstra que a teoria do fechamento do crédito num cenário destes é “provavelmente exagerada”.
Esperar por um “governo progressista” ou lutar por ele?
FL despacha facilmente a questão, para ele estas propostas só fazem sentido perante a existência (ou a possibilidade) de um governo progressista. Esta é de facto a visão defendida no relatório de Lapavitsas. Mas também por nós e por toda a esquerda consequente. Porque também o fim da precariedade, a manutenção dos serviços públicos e a criação de emprego só são possíveis com outro tipo de governo. E com a suspensão do pagamento da dívida, entre outras medidas.
Nós não adiamos essa solução para um horizonte longínquo. Recentemente o esquerda.net anunciou que as sondagens indicavam que os três principais partidos da esquerda grega podiam alcançar os 38% nas próximas eleições (http://www.esquerda.net/artigo/gr%C3%A9cia-bloco-central-afunda-esquerda-dispara).
Em 2009 justificava-se a inexistência de resistência à austeridade na Europa com os maus resultados da esquerda grega, à volta de 11%, abaixo da soma de BE e PCP. Este é apenas um exemplo de como há possibilidades para a esquerda. Um governo de esquerda e o fim do regime de austeridade não tem de ser um cenário adiado para o tempo dos nossos netos. Tal visão serve apenas para justificar atalhos, para justificar uma “frente única” não se sabe com quem. O que tem sido lamentável por parte do Bloco foi ter seguido e aceite o conselho de Jerónimo de Sousa em vésperas das eleições legislativas de Junho de 2011: ‘cada um devia ir na sua bicicleta’. E como cada partido desta velha esquerda tem ido, de facto, há demasiados anos, na sua bicicleta, o mesmo é dizer apresentando-se divididos e sem pontes de diálogo sério, quem tem ganho sempre, invariavelmente, tem sido ou o PS (de Sócrates) ou o PSD/CDS (de Passos Coelho e Paulo Portas) depois. Esta foi a razão profunda porque o Bloco nos empurrou para fora do seu seio, o que tornou mais urgente a formação de um novo movimento de alternativa socialista.
A encruzilhada do Bloco
Aqui reside a encruzilhada do Bloco. Como defender os salários, as pensões, os serviços públicos e um emprego pagando a dívida? Como fazer a anulação “muito substancial” da dívida sem suspender o seu pagamento? Romper com a troika, com a austeridade e com Merkozy ou defender o euro? Como fazer o “juntar forças” contra a austeridade sem unir a esquerda que se diz adversária da austeridade?
A cada uma destas questões FL responde com um “o melhor de dois mundos”. Anular e auditar a dívida sem suspender o seu pagamento; anular a dívida ao BCE e pedir-lhe dinheiro depois; romper com a troika e não romper com o euro. E fazer uma frente única contra austeridade não se sabe (ou não se diz) com quem, em torno de um programa que não toca no cerne da austeridade, a dívida. Essas contradições não podem ser resolvidas em artigos escritos, mas pela história recente e futura. Por o melhor de dois mundos não ser possível e na hora da verdade o Bloco fica sempre com o pior. Por isso não defende a unidade de esquerda mas antes uma unidade preferencial com o PS (a proposta de Miguel Portas à SIC Notícias) sob a forma de ‘congresso de todas as oposições’, insistindo no mesmo erro do passado recente (aliança com o PS na Câmara de Lisboa e apoio ao candidato presidencial do derrotado governo Sócrates).
As contradições de Francisco FL servem para justificar uma escolha, passada e futura, a que o Bloco fez e continua a fazer: nem suspender o pagamento da dívida nem unidade de esquerda e que é a razão de ser da sua crise. Em “alternativa”, um sector da direcção do Bloco ensaia a defesa de uma unidade “esquerda” BE, PC e PS, o tal congresso de todas as oposições. Seria mais um erro. A história recente do país já nos ensinou, vezes sem conta, que qualquer PS, qualquer António José Seguro, quando chegar ao governo, sozinho ou acompanhado com o apoio do BE e/ou do PC teria o programa da actual ou futura troika e seria o impulsionador do actual ou futuros programas de austeridade. Faz falta um movimento de alternativa socialista, com um novo programa, com novas causas fracturantes, aquelas que FL e o Bloco abandonaram: unir a esquerda que se reivindica adversária da austeridade, exigindo uma imediata suspensão do pagamento da dívida (na verdade dos juros da dívida), única forma de travar a catástrofe social em curso.
Lisboa, 9/02/2012
Gil Garcia, Cristina Portella, João Pascoal e Manuel Afonso